sábado, 28 de janeiro de 2012

IV DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano B – 29 de janeiro de 2012)
   
I Leitura: Dt 18, 15-20
Salmo Responsorial: Sl 94 (95), 1-2.6-7.8-9 (R/.8)
II Leitura: 1Cor 7,32-35
Evangelho: Mc 1,21-28 (Início do Evangelho)

Queridos irmãos,

A Liturgia da Palavra de hoje nos leva a contemplar o profetismo de Jesus. Assim sendo, muito mais do que falar em nome de Deus, Jesus, esperado no Antigo Testamento, dentre tantos atributos, como o “Profeta das Nações” (Jr 1, 5), é Deus mesmo quem fala, já que Ele é o Verbo, a Palavra encarnada.
Numa disciplina teológica chamada Cristologia, temos um capítulo bastante interessante acerca do ministério profético de Jesus: Ele, na sua condição de Deus e Homem, traz para a humanidade a Plenitude da Revelação. As atitudes de trazer e ser se confundem em uma harmonia perfeita. Ele não apenas traz a revelação, mas o é de fato, pois em Jesus “habita corporalmente toda a plenitude” (Cl 2,9) da graça e da verdade. Ele não fala da Palavra; é a Palavra. Não fala da parte de Deus, como se fosse um porta-voz divino; ele é a divindade, Deus Conosco que se comunica conosco, falando a nós.


Na Primeira Leitura, contemplamos a promessa que Moisés, como profeta, faz ao povo da parte de Deus. O povo, transeunte pelo deserto, rumo à Terra Prometida, ainda amedrontado pela teofania (manifestação de Deus) no Horeb onde o próprio Senhor entrega a Moisés as Tábuas da Lei, pede a este, que intermedeie junto a Deus, dizendo: “Eis que o Senhor, nosso Deus, nos mostrou a sua glória e a sua grandeza, e ouvimos a sua voz do seio do fogo. Hoje vimos que Deus pode falar ao homem sem que este morra. Por que, entretanto, nos exporemos à morte? Esse grande fogo nos devorará. Se continuarmos a ouvir a voz do Senhor, nosso Deus, morreremos” (Dt 5, 24-25); e, como o trecho que lemos hoje, a recordação de Moisés acerca do pedido do povo: “Não quero mais escutar a voz do Senhor meu Deus, nem ver este grande fogo, para não acabar morrendo” (Dt 18, 16).


Eis que Moisés transmite aos seus a mensagem do Senhor: “O Senhor teu Deus fará surgir para ti, da tua nação e do meio de teus irmãos, um profeta como eu: a ele deverás escutar” (Dt 18, 15). Por que Moisés afirma que o Profeta que Deus enviará será como ele mesmo? Será que não suspeitava que a mensagem do Profeta seria mais eloquente e sublime do que a sua profecia intermediária? Com certeza, Moisés sabia da magnitude da Profecia do “Esperado”, daquele que com máxima dignidade iria sucedê-lo na condução do povo de Deus, o próprio Messias, ainda que tais termos (Esperado, Messias) não sejam usados pelo Pentateuco para designar o Cristo. Moisés também era cônscio da dureza de coração dos seus e das gerações futuras, Deus já o alertara em vários momentos: “Este é um povo de cabeça dura” (Ex 32, 9; 33, 3.5; 34, 9; Dt 9, 6.13). Isto também é provado, agora no Novo Testamento, quando Jesus reprova os incrédulos: “Pois se crêsseis em Moisés, certamente creríeis em mim, porque ele escreveu a meu respeito. Mas, se não acreditais nos seus escritos, como acreditareis nas minhas palavras? (Jo 5, 46-47).


Ainda que seja proveniente, pelo menos enquanto humanidade, do meio do povo de Israel, a profecia de Jesus completa integralmente a de Moisés, e culpado será quem não lhe der ouvidos: “Farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos, um profeta semelhante a ti. Porei em sua boca as minhas palavras e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe mandar. Eu mesmo pedirei contas a quem não escutar as minhas palavras que ele pronunciar” (Dt 18, 18-19). Assim, com palavra à nossa altura de compreensão, Jesus revela-nos os mais altos mistérios da divindade. O que antes era velado, por Ele torna-se obviamente claro à nossa humana condição. Neste processo de ‘abaixamento’ dos mistérios do Senhor, vindo na Palavra do Cristo, não temos mais o que temer.   


“Mas o profeta que tiver a ousadia de dizer em meu nome alguma coisa que não lhe mandei ou se falar em nome de outros deuses, esse profeta deverá morrer” (Dt 18, 20). Logicamente, este versículo não se refere mais a profecia de Jesus, mas a outros profetas. Quem são estes? Profetizam independentemente do Profeta Jesus? Estes somos nós. Lembremo-nos que, no Batismo, fomos ungidos sacerdotes, reis e profetas. Não independentes do Cristo (cuja tradução em grego designa ‘O Ungido’), mas por ele, participamos do seu sacerdócio, da sua realeza, bem como da sua profecia. Não que com a nossa mísera participação estes três âmbitos sejam enriquecidos no Cristo. Não! Participamos pelo beneplácito da vontade divina para levarmos adiante uma missão, tal como Jesus, porém em menor grau, já que Ele é Deus. Mas, quando é que falamos em nome de outros deuses, ou mesmo, quando é que adulteramos a Palavra de Deus? Em muitas ocasiões: seja quando adotamos o ter, o prazer e o poder como soberanos em nossa vida; seja quando anunciamos nossos caprichos e esquecemos Deus; seja quando eu ajo fora da apostolicidade da única e verdadeira Igreja de Cristo, que é a Igreja Católica Apostólica Romana, pois aqueles que assim fazem anunciam um deus ao seu modo, independendo-se da Tradição ensinada pelo Sagrado Magistério da Igreja, fora da comunhão com os Apóstolos, cujos sucessores são os bispos e o Papa, Bispo de Roma. Quem assim profetiza não o faz em nome de Deus e recebe a condenação eterna. Lembremo-nos o que diz o Senhor Jesus: “Guardai-vos dos falsos profetas. Eles vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos arrebatadores” (Mt 7,15). 


O Salmo de Resposta nos incita a agirmos diferentemente daqueles que fecharam o seu coração a Deus e não o ouviram. O Salmo chega a recordar daqueles que, no caminho do deserto, rumo à Terra Prometida, não somente fecharam o coração, não ouvindo o Senhor, como também o maldisseram em Meriba e em Massa (cf. Sl 94, 8-9).


Para facilitar a nossa reflexão, podemos dividir o Evangelho de hoje em três trechos. No primeiro, contemplamos Jesus, cumprindo o preceito mosaico acerca do sábado. Na sinagoga, Jesus ensina, exercendo, desta forma, o seu múnus profético, que ainda estava velado como tal. São Marcos precisa, comparativamente, a forma do ensino de Jesus: “ensinava como quem tem autoridade, não como os mestres da Lei” (Mc 1, 22). Neste sentido, acorre-nos São Beda, o Venerável: “Os escribas ensinavam também às pessoas o que está escrito em Moisés e nos profetas. No entanto, Jesus, como Deus e Senhor do mesmo Moisés, com vontade livre, aludia à Lei o que lhe parecia faltar, ou variando-a pregava ao povo, segundo lemos em São Mateus (Mt 5, 21-44): ‘Se disse aos antigos; porém, eu vos digo’”. Auxilia-nos também a reflexão de Teofilato: “A Lei mandava celebrar o sábado reunindo-se todos para consagrar-se à leitura. Cristo ensinava argumentando, não a lisonjeando [a Lei] como os fariseus. E continua: ‘E se admiravam de sua doutrina, porque os ensinava como tendo poder, e não como os escribas’. Ensinava com poder, convertendo os homens ao bem e advertindo com penas os que não criam”.


No segundo trecho, vemos que o ensinamento de Jesus era tão potente que admirava os homens e aterrorizava os espíritos maus. Esta idéia nos remete à Primeira Leitura: se lá, no Deuteronômio, o povo não quer que Deus lhes fale diretamente por medo de morte; aqui, no Evangelho, as palavras de Jesus, Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem, são insuportáveis ao Demônio. Por isso, o Demônio, pela boca do homem possuído, diz: “Que queres de nós, Jesus Nazareno? Vieste para nos destruir? Eu sei quem tu és: tu és o Santo de Deus” (Mc 1,24). Ao que Jesus, com autoridade replica: “Cala-te e sai dele!” (v. 25). O que significa esta repreensão de Jesus? É vontade de Deus estabelecer comunicação com os homens e nunca com o Diabo, porque este nunca poderá se converter, pois já fez a sua escolha imutável e a sua sentença é irrevogavelmente implacável.


No terceiro momento, vislumbramos o espanto e as indagações dos que viram aquela cena: “O que é isto? Um ensinamento novo dado com autoridade: Ele manda até nos espíritos maus, e eles obedecem!” (v. 27). Ora, às doces e potentes palavras de Jesus, tudo se lhe faz submisso. Cristo, ao expulsar o demônio, libertando aquele homem, traduz para os seus ouvintes que, assim como a Palavra de Deus cria tudo ex nihilo (do nada), de igual forma ela tem a força de dissipar todo poderio mortal do mal. Logo, todas as vezes que resistimos ao que as Sagradas Escrituras nos ensinam, estamos sendo aliados do Demônio e adversários de Deus. Uma reflexão: se até mesmo o Diabo reconhece o poder do Filho de Deus, por que muitos não aceitam Jesus? Ironicamente, será que pretendem ser mais hostis ao Cristo do que Satanás?


Na Segunda Leitura, São Paulo, não desfazendo da união matrimonial, aconselha que aquele que quer entregar-se inteiramente ao serviço do Senhor e da sua Igreja deve guardar o celibato, pois, em uma vida marital, agrada ao Senhor o que se entrega em doação mútua ao cônjuge, como que com um coração dividido. Interessante é notarmos que no termo latino “cælibatus” contém o prefixo “cæli”, do céu. Tal partícula nos faz remeter ao texto do Evangelho “Na ressurreição, os homens não terão mulheres nem as mulheres, maridos; mas serão como os anjos de Deus no céu” (Mt 22, 30). Portanto, alusivamente, o que guarda um estado celibatário, já expecta a vida do céu. Neste sentido, o Papa João Paulo II, na Exortação Apostólica Pós-sinodal Pastores Dabo Vobis, no número 29, escreve, ao referir-se à castidade e a virgindade: “Entre os conselhos evangélicos - diz o Concílio – ‘brilha este precioso dom da graça divina, dado pelo Pai a alguns (cf. Mt 19, 11; 1Cor 7, 7), de se dedicarem unicamente a Deus, mais facilmente e com um coração indiviso (cf. 1Cor 7, 32-34), na virgindade e no celibato. Esta continência perfeita pelo Reino dos céus foi sempre tida em grande estima pela Igreja, como sinal e incentivo da caridade e como fonte privilegiada de fecundidade espiritual no mundo’(LG 42). Na virgindade e no celibato, a castidade mantém o seu significado originário, o de uma sexualidade humana vivida como autêntica manifestação e precioso serviço ao amor de comunhão e de entrega interpessoal. Este mesmo significado subsiste plenamente na virgindade, que realiza, mesmo na renúncia ao matrimônio, o ‘significado nupcial’ do corpo mediante uma comunhão e uma entrega pessoal a Jesus Cristo e à Igreja, que prefiguram e antecipam a comunhão e entrega perfeita e definitiva do além: ‘Na virgindade o homem está inclusive corporalmente em atitude de espera das núpcias escatológicas de Cristo com a Igreja, dando-se integralmente à Igreja na esperança de que Cristo a ela se entregue na plena verdade da vida eterna’(Exort. Ap. Familiares consortio, 16).


Queridos irmãos, que, inseridos no múnus de Cristo Profeta, o Casto por excelência, “zeloso pelas coisas do Senhor” (cf. Sl 69, 10; Jo 2, 17), possamos testemunhá-lo com vigor e, trilhando o caminho da santidade, possamos agradá-lo sempre e sempre mais.

sábado, 21 de janeiro de 2012

III DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano A – 22 de janeiro de 2012)


I Leitura: Jn 3, 1-5.10
Salmo Responsorial: Sl 24(25), 4ab-5ab.6-7bc.8-9 (R/. 4a.5a)
II Leitura: 1Cor 7, 29-31
Evangelho: Mc 1, 14-20 (Inícios em Cafarnaum)


Queridos irmãos,


Neste domingo, a Liturgia da Palavra enfatiza a brevidade do tempo. Como dizem os antigos em sua sabedoria: “Estamos aqui, nesta terra, como que passando uma garoa, uma chuva rápida”. Olhando para trás, para nossa história, percebemos que a nossa existência passa “em um piscar de olhos”; assim sendo, por mais ‘maduros’ que sejamos nunca olhamos para o nosso passado como uma época remotamente distante. Pois bem, nas três leituras proclamadas, temos, como já dissemos outrora, um realce para a temporalidade.


Na Primeira Leitura, vemos o Senhor que envia o profeta Jonas a caminho de Nínive para que, com um discurso eminentemente catastrófico, trouxesse corações para Deus: “Ainda quarenta dias, e Nínive será destruída” (Jn 3, 4). Na numerologia bíblica, o número quarenta indica uma ocasião para purificação de coração, conversão. O povo de Nínive deveria converter-se ao Senhor, crendo Nele e fazendo reparação pelas suas faltas cometidas. Muito mais do que jejuns, holocaustos que visassem alcançar a misericórdia de Deus, os ninivitas deveriam mudar de vida, abandonando o seu caminho de pecado, fazendo uma opção sincera por Deus. Logicamente, os ninivitas não deveriam tomar esta atitude pelo temor (tampouco o Senhor se agradaria se assim o fizesse), mas ao reconhecê-lo, crendo Nele, os ninivitas, naturalmente abandonariam os seus crimes horrorosos, pois, numa atitude primária, creriam em Deus.


Possivelmente, muitas vezes agimos para com Deus com atitudes comerciais de comportamento e, portanto, de vida. Temerosos pelo juízo divino, nos sentimentos no direito de sermos levados por um falso sentimento de coação. Muitas vezes somos observadores dos preceitos divinos pelo medo e não pela fé. Não! Quem assim age, vive equivocadamente. O que deve motivar a pessoa a agir de acordo com a vontade de Deus deve ser, de modo eminente, o amor que sentimos por ele. É a nossa profissão de fé que deverá nos proporcionar um estilo de vida e não o inverso. Se Deus se agradasse do nosso vão temor, não seríamos livres, mas escravos, submissos a uma pseudo-divindade que, arbitrariamente, nos oprimiria com a sua vontade.


A atitude de crer automaticamente dever-nos-á levar a uma natural obediência, cujo termo original latino nos remete a atitude de escuta. Somente damos ouvidos às pessoas a quem depositamos confiança. Crer, obedecer, mudar de vida: três atitudes constantes e intermitentes que brotam de um coração livre e, por isso, sempre inconformado com a sua condição. Por isso o Apóstolo Pedro afirma: “Comportai-vos como homens livres, e não à maneira dos que tomam a liberdade como véu para encobrir a malícia, mas vivendo como servos de Deus” (1Pd 2,16). Portanto, ser servo de Deus implica em obter a liberdade e nunca, como muitos implicam em dizer (tal como Nietzsche) que a moral cristã é escravagista. Se assim não o fosse, não teria sentido sermos chamados da escravidão do pecado tornando-nos livres para a vida da graça em Cristo Jesus, Nosso Senhor.


E, por falar em tempo e chamado, temos a vocação que Jesus faz à beira do Mar da Galileia. O Evangelho de hoje possui uma dupla cena que nos remete a um só contexto: em um primeiro momento, vemos Jesus, após a prisão de João Batista, percorrendo a Galileia afirmando a completude do tempo e propondo o Reino: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!” (Mc 1, 15). Qual tempo se completou? O da salvação; e, por meio desta certeza, alcançamos o Reino, total pertença a Ele. Quem é que nos traz a salvação? O Cristo. O tempo se completou porque ele está no meio de nós para salvar-nos.


Como sabemos, a salvação trazida pelo Cristo é universal. Ele faz esta proposta a todos! Cabe, por meio de uma resposta sincera, que implica em vivência, responder-lhe. Conversão e fé; fé e conversão: uma fórmula de vida cujos elementos se implicam sem prejuízos. Observamos que, no segundo momento do Evangelho, Jesus passa chamando os que ele quer na orla do Mar da Galileia. Interessante o chamado: “Segui-me e eu farei de vós pescadores de homens” (Mc 1, 17). Este momento pode aparentar uma desconexão do primeiro instante, mas não o é. Jesus chama os que ele quer para um seguimento iniciado por uma opção que caracterize uma mudança de vida. E somente a partir daí é que se faz urgente uma remetência a outrem. Para sermos mais claros, recorremos a um dito popular: “Somente podemos dar o que temos”. Dessa forma, se eu quero que outros percebam a chegada do Reino, devo, por primeiro, reconhecer individualmente a sua chegada; se quero que outros se convertam e creiam no Evangelho, esta atitude firmemente deverá ser vivida por mim. É uma vocação pessoal que não para em mim, mas que se expande como testemunho.


Como já tivemos a oportunidade de esclarecer em outras ocasiões, vocação é chamado. E isto é bem óbvio. Aceitamo-la ou não, conforme a nossa vontade. Porém, mesmo não aceitando, o chamado permanece. Por isso São Paulo afirmar: “Eras escravo, quando Deus te chamou? Não te preocupes disto. Mesmo que possas tornar-te livre, antes cuida de aproveitar melhor o teu chamamento. Pois o escravo, que foi chamado pelo Senhor, conquistou a liberdade do Senhor. Da mesma forma, quem era livre por ocasião do chamado, fez-se escravo de Cristo” (1Cor 7, 21-22). Logo, pelo chamamento do Senhor somos livres, e este deverá imperar em anúncio para os outros. No entanto, ao tempo em que nos tornamos livres perante Cristo e o mundo, tornamo-nos, concomitantemente, escravos de Cristo, não com grilhões e jugos, mas com o doce e agradável mistério de pertença a Ele.


Somos cônscios de que a vida dos primeiros chamados por Jesus foi transformada radicalmente. Esta mudança foi perceptível de tal maneira que outros se sentiram impelidos ao Senhor por meio de suas existências: “E eles, deixando imediatamente as redes, seguiram a Jesus […] Eles deixaram seu pai Zebedeu na barca com os empregados, e partiram, seguindo Jesus” (Mc 1, 18. 20). Este deixar tudo implica muito mais do que locais de trabalho e de convivência. Esclarece-nos, sobretudo, à certeza de que largaram, incomodados pelo chamado do Senhor, toda a quinquilharia que os impedia de reconhecer Deus, crer nele, e, porque O seguem, de trilhar conforme a Sua vontade, numa vida convertida, ou pelo menos na tentativa de conversão.


A este deixar tudo também se associa a idéia de, assim como a Simão e André, Tiago e João, devemos deixar as improváveis seguranças que o mundo oferece à nossa vida. Neste sentido, a Segunda Leitura, também acorrendo ao brevíssimo tempo que nos resta para abraçarmos definitivamente o Reino, aconselha-nos a não confiarmos no mundo nem nas coisas que ele oferece “Pois a figura deste mundo passa” (1Cor 7, 31). Com este conselho, São Paulo não demoniza o mundo, tampouco a nossa estadia nele, mas quer nos alertar acerca da transitoriedade de tudo quanto ele oferece. Com isso, não significa dizer que devemos estar mergulhados em uma passividade de vida, como que embasbacados esperando a Parusia. Muito pelo contrário! Devemos nos ater numa atividade que nos leve a ser senhores das coisas que nos rodeiam, e não seus escravos. Os prazeres, as decepções, as alegrias, o ter e o poder devem ser orientados para a eternidade: “A nossa presente tribulação, momentânea e ligeira, nos proporciona um peso eterno de glória incomensurável. Porque não miramos as coisas que se vêem, mas sim as que não se vêem. Pois as coisas que se vêem são temporais e as que não se vêem são eternas” (2Cor 4,17).


Então, certos de que ainda estamos em tempo hábil para uma radical mudança de vida, ainda que este projeto exija paciência e disponibilidade, não adiemos a nossa total adesão ao Cristo que passa, chama e anuncia: “Convertei-vos e crede no Evangelho! O Reino está próximo. O tempo completou-se”. Mas repletos de nobres expectativas, trilhemos neste mundo, arrastando, pelo nosso testemunho de vida em conversão, muitos para o Senhor “assim como fostes chamados pela vossa vocação a uma só esperança” (Ef 4,4). Sejamos, pois, pregoeiros da conversão. Façamos de nossa vida o chamado de Cristo para outros: “Ele fez na minha vida. Poderá também fazer na tua: ‘Converte-te e crê no Evangelho! O Reino chegou’”.   

POR QUE A LITURGIA? O QUE ELA SIGNIFICA? (CIC 1066-1070)


Rubrica de teologia litúrgica aos cuidados do Pe. Mauro Gagliardi
Juan José Silvestre*


A profissão de fé, abordada na primeira parte do Catecismo da Igreja Católica, é seguida pela explicação da vida sacramental, por cujo meio Cristo está presente e age, continuando a edificação da sua Igreja. Se na liturgia, aliás, não se destacasse a figura de Cristo, que é o seu princípio e está realmente presente para torná-la válida, nem sequer teríamos a liturgia cristã, que depende do Senhor e é sustentada pela sua presença.


Existe, então, uma relação intrínseca entre fé e liturgia, ambas intimamente unidas. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não teria eficácia, pois careceria da graça que alicerça o testemunho dos cristãos. “Por outro lado, a ação litúrgica nunca pode ser considerada genericamente, prescindindo-se do mistério da fé. A fonte da nossa fé e da liturgia eucarística, de fato, é o mesmo acontecimento: o dom que Cristo fez de si mesmo no mistério pascal” (Bento XVI, Sacramentum Caritatis, 34).


Se abrirmos o catecismo na sua segunda parte, leremos que a palavra “liturgia” significa, originariamente, “serviço de e em favor do povo”. Na tradição cristã, significa que o povo de Deus faz parte da “obra de Deus” (CIC, 1069).


Em que consiste essa obra de Deus da qual fazemos parte? A resposta do catecismo é clara e nos permite descobrir a íntima conexão que existe entre a fé e a liturgia: “No símbolo da fé, a Igreja confessa o mistério da Santíssima Trindade e o seu desígnio benevolente (Ef 1,9) para toda a criação: o Pai realiza o "mistério da sua vontade" dando o seu Filho Amado e o Espírito Santo para a salvação do mundo e para a glória do seu nome” (CIC, 1066).


“Cristo, o Senhor, realizou esta obra da redenção humana e da perfeita glorificação, preparada pelas maravilhas que Deus fez no povo da antiga aliança, principalmente pelo mistério pascal da sua bem-aventurada paixão, da ressurreição dentre os mortos e da sua gloriosa ascensão” (CIC, 1067). É este o mistério de Cristo, que a Igreja “anuncia e celebra na sua liturgia a fim de que os fiéis vivam dele e dêem testemunho dele no mundo” (CIC, 1068).


Por meio da liturgia, “exerce-se a obra da nossa redenção” (Concílio Vaticano II, Sacrosanctum Concilium, 2). Assim como foi enviado pelo Pai, Cristo enviou os apóstolos para anunciarem a redenção e “realizarem a obra de salvação que proclamavam, mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno dos quais toda a vida litúrgica gira” (ibidem, 6).


Vemos assim que o catecismo sintetiza a obra de Cristo no mistério pascal, que é o seu núcleo essencial. E o nexo com a liturgia se mostra óbvio, pois “por meio da liturgia é que Cristo, nosso Redentor e Sumo Sacerdote, continua na sua Igreja, com ela e por ela, a obra da nossa redenção” (CIC, 1069). Assim, esta “obra de Jesus Cristo”, perfeita glorificação de Deus e santificação dos homens, é o verdadeiro conteúdo da liturgia.


Este é um ponto importante porque, embora a expressão e o conteúdo teológico-litúrgico do mistério pascal devam inspirar o estudo teológico e a celebração litúrgica, isto nem sempre foi assim. “A maior parte dos problemas ligados às aplicações concretas da reforma litúrgica têm a ver com o fato de que não foi suficientemente considerado que o ponto de partida do concílio é a páscoa [...]. E páscoa significa inseparabilidade da cruz e da ressurreição [...]. A cruz está no centro da liturgia cristã, com toda a sua seriedade: um otimismo banal, que nega o sofrimento e a injustiça do mundo e reduz o ser cristãos a ser educados, não tem nada a ver com a liturgia da cruz. A redenção custou a Deus o sofrimento do seu Filho e a sua morte. Daí que o seu exercitium, que, segundo o texto conciliar, é a liturgia, não pode acontecer sem a purificação e sem o amadurecimento que provêm do seguimento da cruz” (Bento XVI, Teologia della Liturgia, LEV, Vaticano, 2010, págs. 775-776).


Esta linguagem conflita com aquela mentalidade incapaz de aceitar a possibilidade de uma intervenção divina real neste mundo em socorro do homem. Por isso, “quem compartilha uma visão deísta considera como integrista a confissão de uma intervenção redentora de Deus para mudar a situação de alienação e de pecado, e este mesmo juízo é emitido a propósito de um sinal sacramental que torne presente o sacrifício redentor. Mais aceitável, aos seus olhos, seria a celebração de um sinal que correspondesse a um vago sentimento de comunidade. Mas o culto não pode nascer da nossa fantasia; seria um grito na escuridão ou uma simples auto-afirmação. A verdadeira liturgia pressupõe que Deus responde e nos mostra como podemos adorá-lo. “A Igreja pode celebrar e adorar o mistério de Cristo presente na eucaristia precisamente porque o próprio Cristo se entregou antes a ela no sacrifício da cruz” (Sacramentum Caritatis, 14). A Igreja vive desta presença e tem a difusão desta presença no mundo inteiro como a sua razão de ser e de existir” (Bento XVI,Discurso de 15 de abril de 2010).


Esta é a maravilha da liturgia, que, como o catecismo recorda, é culto divino, anúncio do evangelho e caridade em ato (cf. CIC, 1070).  É Deus mesmo quem age, e nós nos sentimos atraídos por esta sua ação, a fim de sermos, deste modo, transformados nele.


* Juan José Silvestre é professor de Liturgia na Pontifícia Universidade da Santa Cruz (Santa Croce) e Consultor da Congregação para o Culto Divino e para a Disciplina dos Sacramentos, além das Celebrações Litúrgicas do Sumo Pontífice.

Este texto foi extraído da edição de www.zenit.org de 11 de janeiro de 2012.

domingo, 15 de janeiro de 2012

II DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 15 de janeiro de 2012)


I Leitura: 1Sm 3, 3b-10.19
Salmo Responsorial: Sl 39 (40), 2.4ab.7-8a.8b-9.10 (R/. 8a.9a)
II Leitura: 1Cor 6,13c-15a.17-20
Evangelho: Jo 1, 35-42 (Testemunho de João)

Queridos irmãos,

Uma palavra marcante na Liturgia deste domingo é o verbo ir, cujo sinônimo também poderá se associar o termo seguir. Samuel e os dois discípulos de João, cada qual no seu tempo, foram ao encontro do Senhor porque se sentiram tocados pelo chamado divino, seja direta (“Samuel, Samuel!” – 1Sm 3, 4.6.8), seja indiretamente, pela presença do Senhor, ou pelo testemunho acerca dela (cf. Jo 1, 35-37).


Referente ao Evangelho, Santo Agostinho faz uma reflexão bastante interessante acerca do prorromper de João ao identificar Jesus como “Cordeiro de Deus”. Diz-nos o Bispo de Hipona: “Cristo é o cordeiro por excelência, o único sem mancha, sem pecado; e não porque as suas manchas foram canceladas e sim porque nunca as teve. O que significam estas palavras de João acerca do Senhor: ‘Eis o Cordeiro de Deus’? João não poderia ser tido como um cordeiro também? Não era um homem santo? Não era o ‘amigo do esposo’? Cristo é o cordeiro por excelência: este é o Cordeiro de Deus: porque unicamente pelo sangue deste cordeiro os homens puderam ser redimidos” (Comment. in Ioan., 7, 5-6.14).


Aqueles dois sabiam que o testemunho de João não era à toa. O Batista é apresentado nos Evangelhos como alguém que vivia na expectativa daquele que viria e que era maior do que ele, do qual não seria digno nem de abaixar-se para desamarrar as sandálias (cf. Lc 3, 16; Jo 1, 15). E se João dava testemunho acerca daquele que viria, ao apontá-lo, os seus discípulos o abandonam para seguir ao que João afirmava ser o maior. Não teria sentido para os discípulos continuar com João se o Cordeiro de Deus, o ‘Prometido’ e ‘Esperado’ estava ali, diante deles. Naquele dia, não bastou um longo discurso do Batista, mas uma frase breve: “Ecce Agnus Dei!” – Eis o Cordeiro de Deus! Até porque, no dia anterior João já havia clarificado a identidade de Jesus, que até então era desconhecida, mas o que já havia explicitado já era mais do que suficiente para dois de seus discípulos: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. É este de quem eu disse: Depois de mim virá um homem, que me é superior, porque existe antes de mim. Eu não o conhecia, mas, se vim batizar em água, é para que ele se torne conhecido em Israel. (João havia declarado: Vi o Espírito descer do céu em forma de uma pomba e repousar sobre ele.) Eu não o conhecia, mas aquele que me mandou batizar em água disse-me: Sobre quem vires descer e repousar o Espírito, este é quem batiza no Espírito Santo. Eu o vi e dou testemunho de que ele é o Filho de Deus” (Jo 1, 29-34).


O Evangelista João situa esta passagem como ocorrida às margens do Jordão, na cidade de Betânia. O Evangelho prossegue dizendo que Jesus sentiu que o estavam seguindo. Para Jesus não foi uma surpresa, ainda que, no relato de João, os dois que o seguiam eram os primeiros. Jesus já esperava pela eficácia do testemunho de João Batista. Ao perguntar-lhes “O que estais procurando?” o Senhor não quer saber o motivo do seguimento (pois ele bem o sabia da motivação), mas quais são as perspectivas daqueles homens. Ao que eles respondem ao Senhor com uma outra pergunta: “Rabi, onde moras?” As perspectivas dos dois que ali estavam diante de Jesus é a de permanecer com ele. Seguir não é mais uma atitude passiva, mas passa a ser coadunada a ação de permanecer com o Mestre. Mas por que os discípulos o apelidam Mestre? Porque Jesus iria ensiná-los acerca das verdades eternas, as quais seriam o norte de suas vidas a partir de então.


O Doutor Angélico, Santo Tomás de Aquino, acerca desta cena do voltar-se de Jesus, bem como do diálogo com os dois discípulos, afirma: “‘Jesus voltando-se’: estas palavras estão a dizer que Jesus havia estado com João, porque ‘a lei não levou nada à perfeição’ (Hb 7, 19). Cristo examina e instrui os discípulos ‘disse-lhes: Vinde e Vede’. Cristo os examina e esses respondem: ‘Mestre, onde habitas?’ E o evangelista diz: ‘Jesus voltando-se e visto que o seguiam, disse-lhes’. O sentido literal diz que Cristo andava diante de dois discípulos, que o seguiam, mas não viam o seu rosto. Por isso, Cristo, para encorajá-los, voltou-se para eles. Isto faz entender que Cristo dá esperança de misericórdia a todos aqueles que se propõem a segui-lo com coração puro. Jesus se volta para nós, para que o possamos ver. Isto acontecerá naquela beata visão […] Voltou-se, ainda, Jesus aos discípulos de João, que propuseram-se a segui-lo, para mostrar-lhes o seu rosto e infundir-lhes a sua graça neles. Examina-os quanto à intenção. Aqueles que seguem o Cristo não o fazem todos com a mesma intenção: alguns o seguem com a perspectiva dos bens temporais; outros com a perspectiva dos bens espirituais, por isto, o Senhor disse-lhes: ‘O que procurais?’, não certo para vir a saber, mas porque, dando-lhes ocasião de manifestar qual seria a intenção, quisesse tê-los mais próximos a si, julgando-lhes dignos do seu interesse” (Ev. sec. Ioan., 1, 15, 1 s.).


A intenção real dos discípulos é evidenciada na fala de André a seu irmão Simão (que posteriormente seria Pedro, o ‘Príncipe dos Apóstolos’): “Encontramos o Messias” (Jo 1, 41). Complementando esta frase de André, a Liturgia da Igreja para este domingo canta juntamente com o Aleluia, na Aclamação ao Evangelho: “Encontramos o Messias, Jesus Cristo, de graça e verdade ele é pleno; de sua imensa riqueza graças, sem fim, recebemos”. Assim sendo, conseguintemente ao encontro com o Senhor, os que fazem a experiência com ele recebem um cabedal de graças.


Muito mais comovente do que a vocação de André e do discípulo desconhecido é a de Simão que também é relatada neste texto. Alcuíno, tendo em vista a locução de Jesus a Pedro, afirma: “Não lhe pôs em seguida o nome, mas que já designa o que depois se lhe havia de impor, quando lhe disse Jesus: ‘Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’. Quando Jesus ia trocar o nome, queria demonstrar também qual era o nome que havia recebido de seus pais, porque a sua significação não carece de mistério. Simão quer dizer obediente, Ioanna quer dizer graça, e Ioná, pomba, como dizendo: tu és obediente e filho da graça, ou filho da pomba, isto é, do Espírito Santo. Porque havias recebido a humildade do Espírito Santo, para que desejasses ver-me quando André te chamasse. E não desdenhou, sendo maior, seguir ao menor, porque não existe razão de idade quando existe mérito de fé”.


Vocação, termo cunhado do latim: Vocare, chamar. Todos, assim como André, o outro discípulo, como Samuel na Primeira Leitura de hoje, e Pedro, fomos e somos continuamente chamados. Fomos, porque o primeiro chamado se deu quando o Senhor nos confiou a vida e, com esta, o compromisso da santidade. Somos, porque cotidianamente ele nos chama para junto de si através das diversas vocações específicas proporcionadas pelo estado de vida que possuímos. Pelo chamado do Batismo, adentramos na Igreja, cuja etimologia grega se dá pelo termo ekklesia: a “convocada”, a “eleita”, a “chamada”. Por fazermos parte da Igreja, somos povo de Deus, e por isso chamados a realizar com a nossa vida o projeto que o Senhor tem para toda a humanidade: a salvação. Invade-nos uma pergunta: Como, com as minhas limitações, posso ser chamado pelo Senhor para auxiliá-lo no seu projeto de salvação da humanidade? Ele quer precisar de nós. A obra da salvação já está garantida pela vitória de Cristo na cruz, caberá a nós possuir a mesma atitude de André e afirmar para o mundo o resultado de nossa procura: ‘Encontramos o Cristo, esperança e salvação dos homens’. É num santo complexo de resposta (“Fala, que teu servo escuta” – 1Sm 3, 9), de procura (“Mestre, onde moras?” – Jo 1, 38) e de encontro com o Senhor, que procederemos com a sua manifestação-testemunho ao mundo. Tudo isto é fazer a vontade de Deus, como nos diz o Salmo Responsorial: “Eu disse: Eis que venho, Senhor! Com prazer faço a vossa vontade” (Sl 39, 8a.9a).


Sim, somos inteiramente vocacionados pelo Senhor. Ao respondê-lo, não nos pertencemos mais: “E, portanto, ignorais também que vós não pertenceis a vós mesmos? De fato, fostes comprados, e por preço muito alto” (1Cor 6, 19-20). Já que não nos pertencemos mais, poderemos, tal como o profeta Jeremias, bradar: “Seduzistes-me, Senhor; e eu me deixei seduzir! Dominastes-me e obtivestes o triunfo” (Jr 20,7).


Que o bendito e contínuo chamado do Senhor nos interpele e nos inquiete. Que diariamente renovemos o nosso compromisso com ele, tal como ele renova o seu chamado em nós. Tenhamos também a certeza de que “O Senhor sabe trabalhar com instrumentos suficientes” (Bento XVI), e assim sendo, saberá trabalhar conosco. Não nos intimidemos e respondamos-lhe, fazendo dele o único sentido de nossa existência.      

domingo, 8 de janeiro de 2012

SOLENIDADE DA EPIFANIA DO SENHOR


(Ano B – 08 de janeiro de 2012)





I Leitura: Is 60, 1-6
Salmo Responsorial: Sl 71 (72), 1-2. 7-8. 10-11. 12-13 (R/. cf. 11)
II Leitura: Ef 3, 2-3a.5-6
Evangelho: Mt 2, 1-12


Queridos irmãos,


Hoje, respirando o tempo litúrgico do Natal do Senhor (cujo término se dará amanhã, com a Festa do Batismo de Jesus), a Igreja, solenemente, celebra a manifestação de Jesus. Esta celebração (que durante muitos séculos fora comemorada em 06 de janeiro, e ainda o é em muitos países do mundo, exceto no Brasil, quando, por motivos pastorais, é transferida para o domingo entre 02 e 08 de janeiro) aparece inicialmente no Cristianismo – ainda no século IV – com características mescladas da Natividade do Senhor e recordação do Batismo de Cristo.

O termo Epifania é cunhado do grego que designa manifestação divina. Mas, por que, em geral, celebramos a Epifania do Senhor tendo em vista o dia 06 de janeiro? Através de uma carta de Santo Epifânio temos a notícia de que em muitas cidades do Egito e da Arábia os pagãos celebravam uma festa em honra de Aion, deus-sol e filho virginal da deusa Kore, e que esta festividade gentia estava relacionada ao solstício de inverno. Com a cristianização desta data, tanto o Oriente quanto o Ocidente solenizam a liturgia reservada para este dia com enfoques diferentes: os cristãos ortodoxos celebram a festa da Encarnação e Nascimento do Salvador, ou seja, celebram o Natal; os católicos orientais acentuam o Batismo de Jesus; nós, os católicos latinos, celebramos hoje três realidades que manifestam o Senhor: a visita dos Magos ao Menino Jesus, o Batismo do Senhor (evento que possui uma data própria no Calendário Litúrgico) e as Bodas de Caná. Essas três realidades vivenciadas na Solenidade da Epifania do Senhor são ressaltadas na Antífona do Cântico Evangélico das Laudes (“Hoje a Igreja se uniu a seu celeste Esposo, porque Cristo lavou no Jordão o pecado; para as núpcias reais correm Magos com presentes; e os convivas se alegram com a água feita vinho. Aleluia”), e das II Vésperas (“Recordamos neste dia três mistérios: Hoje a estrela guia os Magos ao presépio. Hoje a água se faz vinho para as bodas. Hoje Cristo no Jordão é batizado para salvar-nos. Aleluia, aleluia”). É o que a Sagrada Liturgia denomina tria miracula, ou seja, os três milagres, os três sinais.

Tendo em vista a manifestação do Senhor, logicamente a Liturgia da Palavra primará pelo fato da revelação de Cristo às nações, ou seja, Deus que se manifestando, não somente aos judeus, mas, em Jesus, a toda humanidade, quer salvar-nos, dando-nos o acesso ao céu. As manifestações de Jesus como Deus Verdadeiro (as chamadas Teofanias), é, ao mesmo tempo, conhecimento da salvação proveniente dele ao homem prostrado pelo pecado. Daí, vermos atestada na Oração de Coleta: “Ó Deus, que hoje revelastes o vosso Filho às nações, guiando-as pela estrela, concedei aos vossos servos e servas que já vos conhecem pela fé, contemplar-vos um dia face a face no céu”. Em suma, a revelação de Jesus aos diversos povos de distintos tempos sucessivos ao evento da Encarnação é a certeza da visão beatífica (conhecimento pleno de Deus) para os que, pela fé, já o reverenciam, adorando-o (conhecimento pela fé).

Na Primeira Leitura, temos Isaías vislumbrando o retorno dos filhos de Israel que estavam no Exílio da Babilônia. Na releitura cristã, numa dimensão mais ampla e profunda, vemos, com este texto, a chegada dos pagãos à Nova Jerusalém (cf. Ap 3, 12; 21, 2), à Igreja, provenientes do exílio do Pecado e da Morte, guiados pela luz do Senhor: “Este povo, que jazia nas trevas, viu resplandecer uma grande luz; e surgiu uma aurora para os que jaziam na região sombria da morte” (Is 9,1; Mt 4,16); ou, no dizer da leitura: “Levanta-te, acende as luzes, Jerusalém, porque chegou a tua luz, apareceu sobre ti a glória do Senhor. […] Levanta os olhos ao redor e vê: todos se reuniram e vieram a ti; teus filhos vêm chegando de longe com tuas filhas, carregadas nos braços” (Is 60, 1.4). Quem proporcionou a chegada dos filhos da Nova Jerusalém, a Igreja, senão a glória do seu Divinal Esposo e Senhor, a sua luz? Interessante notarmos que Isaías tinha algo mais em vista do que um simples retorno dos filhos do antigo Israel de um exílio, ainda que fosse o da Babilônia: “Pois com eles virão as riquezas de além-mar e mostrarão o poderio de suas nações; será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor” (v. 5b e 6). Madiã, Efa e Sabá são cidades estrangeiras que sequer ficam próximas da Babilônia. Logo, podemos concluir que, mediante a luz do Senhor e a sua glória, a riqueza da Igreja é os seus filhos que, espalhados pelo mundo e por diversas culturas, se achegam ao seu seio. Nós, que estávamos sem rumo, fomos atraídos pelo Senhor para o seu Corpo, isto é, a sua Igreja, ganhamos, um rumo o céu, a Igreja Triunfante, a “Jerusalém do Alto” (cf. Hb 12, 22), o próprio Senhor; somos o seu povo multíplice, mas único.

A idéia da universalidade do reinado do Senhor também nos é apregoado pelo Salmo que, dentre tantos figurativos, nos apresenta: “De mar a mar estenderá o seu domínio, e desde o rio aos confins de toda a terra” (Sl 71, 8).

Na Segunda Leitura, São Paulo, escrevendo aos efésios fala de um mistério divino, antes oculto, porém, imediatamente, revelado a nós como novidade pelo Espírito: “Os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do mesmo corpo, são associados à mesma promessa em Jesus, por meio do Evangelho” (Ef 3, 6). Assim, se os judeus se ufanavam em ser o povo da Aliança por meio de Moisés, o servo de Deus, nós, fomos inseridos por Jesus, Verdadeiramente Deus e Homem, em uma Nova e Eterna Aliança. Portanto, somos membros do povo de Deus, não como os judeus, mas pertencemos a um corpo perfeito: o de Cristo. Nossa herança é superior a dos judeus, pois ela é o próprio Senhor que nos veio para nos levar a si. Com esta nossa afirmação, não estamos desmentindo Paulo (Muito pelo contrário! Quem somos nós para irmos de encontro ao Apóstolo dos Gentios?!). Paulo quer dizer que nós, que outrora éramos pagãos, sem dignidade alguma, fomos elevados pelo Cristo à condição de povo de Deus, povo da Aliança, membros do Corpo de Cristo. Teologicamente, comparados ao que éramos, somos co-herdeiros da Aliança juntamente com os judeus; todavia, se compararmos a nossa condição atual a dos judeus, teremos a certeza de que nós temos uma herança maior: o próprio Cristo; somos o povo da Nova e Inextinguível Aliança; enfim, somos o povo de Deus plenamente. Ao ser derrubada a barreira que nos separava dos nossos ‘irmãos mais velhos’, os judeus, não roubamos deles o que são, contudo, fomos sobrelevados, superando-os.

No Evangelho, Mateus nos apresenta a grande manifestação Jesus, ainda recém-nascido, aos Reis-Magos e, por eles, ao mundo inteiro. A sublime revelação de Deus não se dá na atemporalidade, tampouco na abstração e na incorporeidade, mas se dá nas condições de corpo, espaço e tempo. Nesta perícope, também se faz notório um forte contraste de emoções quando da revelação plena de Deus em Jesus: a ansiedade dos Magos que se confunde, neste mesmo trecho, com o sentimento de reverência e adoração quando do encontro com o Menino; a inquietação de Herodes e de toda Jerusalém ao saberem do nascimento do ‘Rei dos judeus que acabava de nascer’ (cf. Mt 2, 2). Os Magos, graças à sua procedência, representam todos os que, outrora estavam longe de Deus, mas que, na ‘Plenitude dos tempos’, foram atraídos pela luz do Cristo. Por tal motivo e com toda a justeza, um dos cognomes do Cristo é “Lumen Gentium”, Luz dos Povos. Assim sendo, poderíamos dizer que os Magos não foram atraídos pela irradiação luminosa de uma estrela, corpo celeste, mas pela Estrela ‘Sol da Justiça’. Percebamos que nem todos viam a luz refulgida, somente os três a viram. Por quê? Por que eles estavam abertos, ainda que distantes de Israel, à salvação trazida por Jesus, bem como a pertença aos seus eleitos. Eles foram conquistados pelo suave e cativante brilho esplendoroso do Menino do Presépio, o Redentor do gênero humano. Nos Magos, nós nos achamos representados; identificamo-nos. Os presentes deles traduzem de modo implícito a identidade Daquele que está nos braços de Maria: o ouro, a realeza; a mirra, perfume fúnebre, quer ressaltar que a sua morte é sinal de vida para os homens; o incenso designa a sua divindade. Os presentes do Reis Magos a Deus são figurativos do nosso e são englobados por ele: “Ó Deus, olhai com bondade as oferendas da vossa Igreja, que não mais nos apresenta ouro, incenso e mirra, mas o próprio Jesus, imolado e recebido em comunhão nos dons que o simbolizam” (Oração sobre as oferendas). Portanto, Jesus, manifestado ao mundo, é o presente da Igreja aos seus filhos e ao Pai, o mesmo Jesus que, na sua infância foi presenteado e adorado com as manifestações de sua divindade, de sua realeza e de seu sacrifício redentor.

E nós, ao contemplarmos a misteriosa manifestação de Jesus, velado como Deus e travestido em nossa natureza, qual o sentimento que nos brota? Estamos agindo como filhos das trevas ou como filhos da luz? Estamos temerosos como Herodes que ojeriza a idéia de um sucessor, há muito já esperado; ou estamos ansiosos por adorar o Salvador de toda a humanidade como os Magos fizeram? Para muitos cristãos a idéia da manifestação de Jesus é encarada com certa superficialidade, pois afirmam com a boca que Jesus já veio, está entre nós e virá, porém não encarnam esta certeza em sua vivência, sendo-lhe alheios. O mundo carece do testemunho de cristãos que manifestem a vida do Senhor em suas vidas e não de pessoas frustradas que traçam sobre si o sinal da cruz auto-afirmando serem seguidoras do Cristo, ao tempo em que deixam transparecer em si as trevas do poder do pecado e da morte. E mediante esta resposta de quem somos, seremos novamente interrogados: Como cristãos, tomamos consciência de que éramos tolhidos como indigentes, mas que fomos sobrelevados de maneira ímpar à condição de filhos de Deus pelo Filho, ao se manifestar ao mundo, principalmente aos que têm um coração sensível e ansioso para acolher o Deus Salvador?

domingo, 1 de janeiro de 2012

DOM DULCÊNIO FONTES DE MATOS: HOMÍLIA PARA A FESTA DE NOSSA SENHORA DO AMPARO, PADROEIRA DE PALMEIRA DOS ÍNDIOS


(01 de janeiro de 2012 – Missa Solene da Festa de Nossa Senhora do Amparo)


            Excelentíssimo e Reverendíssimo Dom Hildebrando Mendes Costa, Bispo Emérito de Estância;
            Reverendíssimos sacerdotes e diácono;
            Caríssimos seminaristas;
            Digníssimas Religiosas;
            Excelentíssimo senhor Prefeito Municipal;
            Excelentíssimos vereadores e demais autoridades civis e militares;
            Queridos irmãos e irmãs

           
            Encerrando os oito dias de festividades do Natal do Senhor, ao tempo em que vivenciamos o primeiro dia do Ano Novo, a Santa Igreja nos propõe a olharmos o mistério da Divina Encarnação e contemplarmos a Bem-Aventurada Virgem Maria como Mãe de Deus. Em nossa Igreja Particular de Palmeira dos Índios, a Virgem Senhora Mãe de Deus é cognominada Nossa Senhora do Amparo, o que não ofusca a Maternidade Divina da Virgem Maria – antes, a endossa, já que a sua veneranda imagem, duas vezes secular, que vela deste altar como sinal de celeste intercessão, representa esta íntima ligação existente entre Maria e o Deus que ela, majestosa e humildemente, porta no seu braço.
           
            Caríssimos, a Senhora do Amparo é a Mãe de Deus. Sua imagem nos remete ao Natal, pois contemplamos uma Virgem parturiente que nos apresenta o seu Doce Rebento, Jesus, o Verbo Encarnado, fruto de uma intimidade espiritual de Maria e o Pai, bem como a eleição de Maria por Aquele que se dignou enviar o seu Unigênito. Na bi-secular imagem de nossa padroeira se acha representado um Divino Mistério que a Igreja não entende, mas piamente crê, e, por este motivo, se curva: uma criatura toda especial, é certo, mas criatura que carrega em seu braço, como que em acalanto, o seu Deus, Senhor e Criador, já que “Por ele tudo foi criado” (Col 1, 16). Que admirável e insondável mistério, meus irmãos!
           
            Nestes dias de Natal – em especial ontem, nas Primeiras Vésperas da Solenidade de Maria, Mãe de Deus, na celebração da Liturgia das Horas, a Igreja (e nós com ela) cantava, exclamando: “Ó Admirável intercâmbio! O Criador da humanidade, assumindo corpo e alma, quis nascer de uma Virgem. Feito homem, nos doou a sua própria divindade!”. Sim, irmãos, o intercâmbio entre Deus e a humanidade, espacialmente, acontece no seio de Maria, Mãe de Deus, a Senhora do Amparo. E mais! Pessoalmente, na vida da “Menina de Nazaré” acontece um “admirável intercâmbio”: Maria, com o seu ‘sim’ e a sua consequente atitude de gestação concretiza em seu corpo, e a partir dele em todo o seu ser, uma entrega a Deus; este, por sua vez, ao ouvir o sim-entrega de sua Criatura Predileta confia-se, em cuidados filiais, àquela que, antes, havia se dignado criar. Acontece, como bem afirma São Bernardo de Claraval em louvor a Virgem Mãe: “Apressa-te, ó Virgem, em dar a tua resposta; responde sem demora ao Anjo, ou melhor, responde ao Senhor por meio do Anjo. Pronuncia uma palavra e recebe a Palavra; profere a tua palavra e concebe a Palavra de Deus; dize uma palavra passageira e recebe a Palavra eterna”. É graças a toda esta multiplicidade e unicidade de mistério que Maria engrandece o Senhor e o seu espírito rejubila em Deus, seu Salvador (cf. Lc 1, 46), ou seja, louva o que a criou e que, naquela hora, porta em seu coração e em seu seio, alegrando-se Nele. E, por tal interferência em sua vida, ainda prorrompe no seu Magnificat: “Bendita me chamarão todas as gerações” (Lc 1, 48).
           
            “Salve, ó Santa Mãe de Deus, vós destes à luz o Rei que governa o céu e a terra pelos séculos eternos”, tal como exclama a Antífona de Entrada trazida pelo Missal para esta celebração. Nesta Solenidade, a Igreja não localiza os seus louvores em Maria, mas no Deus que ela, filial e maternalmente, carrega. E, a partir da Divindade, pelo Deus que ela porta, não por méritos próprios, mas pelos de Cristo, seu amabilíssimo Filho, é que voltamos o nosso olhar para ela, transbordando ternura e devoção.
           
            Na Liturgia da Palavra, mais precisamente na Primeira Leitura, temos a ordem do Senhor que, por Moisés, é transmitida a Aarão e a seus filhos, ou seja, a casta sacerdotal de Israel, para a bênção do povo. Os sacerdotes de Israel abençoavam o povo, invocando sobre ele o nome do Senhor (cf. Nm 6, 27) com uma fórmula ternária em cujo conteúdo e faziam presentes o Santo Nome e votos de graça e de paz: “O Senhor te abençoe e te guarde! O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e se compadeça de ti! O Senhor volte para ti o seu rosto e te dê a paz!” (Nm 6, 24-26). Na literatura bíblica do Antigo Testamento, o nome, não somente evoca, mas simboliza a pessoa. Logo, na mentalidade de Israel Antigo, o Senhor está presente e atua com graça e prosperidade onde quer que O invoquem e na vida de quem O invoca. Este pensamento não está de per si errado. Porém, não achando suficiente o simbolismo que o seu nome embute, nome este que traz bênção, proteção, misericórdia, paz, enfim, tantas outras benesses de espírito para quem o pronuncia, Ele quer fazer-se muito mais próximo a nós; num escandaloso movimento, ele se encarna, fazendo-se um de nós.
           
            Antes, se tantas maravilhas o seu nome já operava, o que diremos agora em que está presente, não simbolicamente, mas de fato? Ele, o Deus-Conosco, garante a humanidade todas as riquezas que a salvação possa abarcar, inclusive a filiação adotiva: “Quando se completou o tempo previsto (ou seja, na “plenitude dos tempos” – Ef 1, 10), Deus enviou o seu filho nascido de uma mulher, nascido sujeito à Lei, a fim de resgatar os que eram sujeitos à Lei e para que todos recebêssemos a filiação adotiva” (Gl 4, 4).
           
            Se o nome do Senhor faz maravilhas, como nos diz o Salmo, em paráfrase, o que diríamos de sua presença? Mas como disso tudo? São Paulo nos responderá: “Tudo isso por graça de Deus” (Gl 4, 7). Não porque merecêssemos, mas por graça. E quem é a Graça senão Jesus? “A graça e a verdade nos vieram pelo Cristo” (cf. Jo 1, 17). Maria é portadora desta graça, carregando-a no coração, nos braços, enfim, na vida de maneira única.
           
            Maria-Mestra, a Senhora do Amparo, carrega a Graça-Jesus e a apresenta para nós, filhos pelo Filho, como nos rememora a Carta aos Gálatas. Maria, portadora da Graça Singular, e, por isso Plena de Graça, acopla o seu singelo e doce nome ao Nome do Filho. Aqui, recordo-me do trecho de um canto devocional a Nossa Senhora muito conhecido: “Maria, teu lindo nome é todo encanto e luz. Quando eu te chamo, ó Maria, tu, logo, chamas Jesus”. Assim sendo, para nós católicos, o bem-aventurado nome da bendita Virgem Maria é uma espécie de prefixo que nos remete ao Salvador. Sim, Maria melhor do que ninguém sabe da carga máxima de sentido que o nome de seu Adorável Filho possui. Jesus significa “Deus salva”. Nome e missão se coadunam. E o Evangelho de hoje tem por desfecho: “Quando se completaram os oito dias para a circuncisão do menino, deram-lhe o nome de Jesus, como fora chamado pelo anjo, antes de ser concebido” (Lc 2, 21). Portanto, se no dia 25 de dezembro comemoramos e vivenciamos litúrgica e misticamente o Nascimento do Filho de Maria, o Verbo eterno do Pai, o Salvador do gênero humano, hoje, primeiro de janeiro, litúrgica e misticamente vivenciamos a imposição do nome Jesus sobre o Menino do Presépio, designação que reflete a sua missão recebida do Pai antes de todos os séculos, eternamente presente no desígnio divino.
           
            A ação de circuncidar, na Lei judaica, representava a consagração daquele menino (posteriormente homem) ao Senhor; é sinal de pertença. Na celebração de hoje, recordamos o ofertório que Maria faz de seu filho a Deus, ele que é Deus: Deus é ofertado a Deus, qual profundo é este mistério! O Menino é ofertado, é apresentado como Salvador: Jesus, Deus Salvador, é o seu nome.
           
            Maria é instrumento de Deus que, dentre tantas formas, acena para o Filho. Ao impor o nome em seu Rebento, ela o manifesta, apontando o seu poder salvador para o mundo. O que antes estava escondido e velado no seio da Trindade, ou seja, o rosto salvador do Verbo, Maria nos apresenta, pois ela O recebeu do próprio Deus por meio do Anjo: “Eis que conceberás e darás à luz a um filho, e o chamarás com o nome de Jesus” (Lc 1, 31). Maria, cujo nome significa “amada” apresenta-nos a Salvação, tal como se nos presta a sua imagem a quem, em um profundo misto de carinho filial e devocional, apelidamos “Senhora do Amparo”. Ela expõe o seu “Jesus, Salvador dos Homens”.

            Se temos diante de nós esta figura de Maria, que não apresenta ao mundo apenas o nome divino, mas o traz corporalmente demonstrando-o ao mundo, qual relação poderíamos fazer da Soberana Senhora com a Igreja? Se em Maria, o Senhor torna-se corpo, na Igreja temos o corpo do Senhor, pois ela é o “Corpo Místico de Cristo” (1Cor 12, 12) do qual somos membros. Maria não carrega apenas em si o Nome do Senhor, mas leva, em seu imaculado ventre para isso preparado, o Verbo Encarnado; a Igreja não apenas fala de Deus ou do seu nome, mas ela o gera através dos sacramentos para o mundo. Tanto é grande a ligação existente entre Maria e a Igreja que o Apocalipse já vislumbrava: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores, sentindo as angústias de dar à luz” (Ap 12, 1-2), e ainda: “Ela deu à luz um Filho, um menino, aquele que deve reger todas as nações [pagãs] com cetro de ferro. [Mas seu Filho] foi arrebatado para junto de Deus e do seu trono” (Ap 12,5). A Igreja é como Maria: uma Virgem desposada com o seu Deus e o apresenta para o mundo.
           
            Neste ano de 2012, a nossa Diocese, parcela da Igreja Universal, completará o seu Jubileu Áureo. Cinqüenta anos manifestando Jesus neste agreste e sertão alagoanos. Cotidianamente, pelos seus ministros e fiéis, seja pela liturgia seja pela caridade, a Igreja está prenhe de seu Deus e o dá ao mundo. O “Admirável intercâmbio” também acontece aqui: a Igreja, por meio de seus filhos, se dá ao Pai, e, desta entrega oferente, recebe o Filho que é doado pelo Pai, ao tempo em que este se imola e se entrega ao Pai pela Igreja, e com este ‘divino comércio’, Jesus, pela Igreja, dá “Vida ao mundo”. Quantos leigos, religiosos, sacerdotes e bispos doaram, como membros da Igreja-Esposa de Cristo, e, assim, o manifestaram ao mundo?

            Que a Mãe e Padroeira de nossa Igreja Diocesana, a Imaculada Senhora do Amparo, se antecipe em nos dar o seu exemplo de serviço de amor e proclamação deste Deus que nos advém diariamente pela escuta da Palavra, pela prática da Caridade, pela vida de Sacramentos, enfim por meio de sua Igreja, para que, instruídos por ela, que, tal como Maria, é Mestra e Mãe, possamos gozar da bem-aventurança eterna, onde nos encontraremos definitivamente com nosso Pastor e Deus que vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém!