sábado, 28 de abril de 2012

IV DOMINGO DA PÁSCOA


Queridos leitores,

Neste fim de semana, excepcionalmente, não refletiremos juntos a Liturgia da Palavra do IV Domingo da Páscoa - Domingo do Bom Pastor. Estes dias estão sendo intensos em atividades no nosso Seminário. Por tal motivo, apresento-lhes o texto da autoria do Frei Raniero Cantalamessa referente a este domingo litúrgico. Aproveito para pedir-lhes que, de uma forma especial, por ocasião desta data, rezem por nós seminaristas, futuros pastores do redil do Senhor, bem como por todos aqueles que já exercem o ministério sagrado do Sacerdócio, já que, por decreto pontifício, o Domingo do Bom Pastor é o Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

Desejo, de coração, um santo Domingo!

Seminarista Everson Fontes.

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Este é o domingo do Bom pastor, mas pelo menos dessa vez não é nele que vamos concentrar a atenção, e sim no seu antagonista. Quem é o personagem definido como «ladrão» e «estranho»? Jesus pensa, em primeiro lugar, nos falsos profetas e nos pseudomessias do seu tempo, que faziam de conta que eram enviados de Deus e libertadores do povo, enquanto, na verdade, não faziam nada além de mandar as pessoas morrerem por eles.

Hoje, esses «estranhos» que não entram pela porta, mas que se introduzem no redil às escondidas, que «roubam» as ovelhas e as «matam», são visionários fanáticos ou astutos aproveitadores que abusam da boa vontade e da ingenuidade das pessoas. Eu me refiro aos fundadores ou chefes de seitas religiosas que estão por aí.

Quando falamos de seitas, no entanto, devemos prestar atenção para não colocar tudo no mesmo nível. Os evangélicos e os pentecostais protestantes, por exemplo, além de grupos isolados, não são seitas. A Igreja Católica mantém com eles, há muito tempo, um diálogo ecumênico no âmbito oficial, algo que jamais faria com as seitas.

As verdadeiras seitas são reconhecidas por algumas características. Antes de tudo, quanto ao conteúdo do seu credo, não compartilham pontos essenciais da fé cristã, como a divindade de Cristo e a Trindade; ou misturam com doutrinas cristãs elementos alheios incompatíveis com elas, como a reencarnação. Quanto aos métodos, são literalmente «ladrões de ovelhas», no sentido de que tentam por todos os meios arrancar os fiéis da sua Igreja de origem para torná-los adeptos da sua seita.

Geralmente são agressivos e polêmicos. Mais do que propor conteúdos próprios, passam o tempo acusando, polemizando contra a Igreja, Nossa Senhora e em geral tudo o que é católico. Estamos, com isso, nas antípodas do Evangelho de Jesus, que é amor, doçura, respeito pela liberdade dos outros. O amor evangélico é o grande ausente das seitas.

Jesus nos deu um critério seguro de reconhecimento: «Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes. Pelos seus frutos os reconhecereis» (Mt 7, 15). E os frutos mais comuns da passagem das seitas são famílias destruídas, fanatismo, expectativas apocalípticas do fim do mundo, regularmente desmentidas pelos fatos.

Existes outros tipos de seitas religiosas, nascidas do mundo cristão, em geral importadas do Oriente. Ao contrário das primeiras, não são agressivas; elas se apresentam com «fantasia de cordeiro», pregando o amor por todos, pela natureza, pela busca do eu profundo. São formações freqüentemente sincretistas, ou seja, que agrupam elementos de diversas procedências religiosas, como no caso da Nova Era.

O imenso prejuízo espiritual para quem se deixa convencer por esses novos messias é que perde Jesus Cristo e, com Ele, essa «vida em abundância» que Ele veio trazer.

Algumas dessas seitas são perigosas também no campo da saúde mental e da ordem pública. Os recorrentes casos de sequestros e suicídios coletivos nos advertem até onde pode levar o fanatismo do chefe de uma seita.

Quando se fala de seitas, no entanto, devemos recitar também um «mea culpa». Com freqüência, as pessoas acabam em alguma seita pela necessidade de sentir o calor e o apoio humano de uma comunidade que não encontraram em sua paróquia.

sábado, 21 de abril de 2012

III DOMINGO DA PÁSCOA


(Ano B – 22 de abril de 2012)




I Leitura: At 3,13-15.17-19
Salmo Responsorial: Sl 4,2.4.7.9 (R/. 7a)
II Leitua: 1Jo 2,1-5a
Evangelho: Lc 24,35-48 (Aparição em Jerusalém)



Queridos irmãos,



Diante da Liturgia da Palavra que hoje a Mater et Magistra Ecclesia nos apresenta como reflexão, somos convidados a fazer a seguinte ponderação: se os discípulos de Jesus foram as testemunhas oculares e auriculares da Ressurreição do Senhor, graças as suas manifestações em meio a eles, quem são as testemunhas hodiernas do Senhor Ressuscitado?


Tal indagação deve permear o coração do cristão atual colocando-o, se possível, em xeque. Como já dissemos outrora em nossas reflexões, o mundo sofre por falta de convicções, inclusive não conhecendo o Senhor Jesus. Quem o irá proclamar, afirmando com veemência a sua vitória, levantando as bandeiras da esperança em meio às trevas densas que se sobrepõem ao mundo, obscurecendo-o? Urge, portanto, que a fé que professamos desde o dia do nosso Batismo, quando assumimos como nossa a profissão da Igreja, seja emanada como luz para o mundo que aí está. Faz-se mister que testemunhemos o Ressuscitado com a nossa vida, com as práticas cotidianas, pois a existência e a atuação do cristão no mundo deve ser transparência do Ressuscitado. Se o filósofo Feuerbach afirma que “o homem é aquilo que come”, na lógica cristã de todos os tempos temos: “o cristão é aquilo que crê”; ou melhor: “o cristão traveste-se naquele em quem crê”.


A Primeira Leitura de hoje demonstra o discurso de Pedro no Templo de Jerusalém, após o evento de Pentecostes, dirigindo-se a todo o povo ali presente. E, narrando a trajetória da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus, o Príncipe dos Apóstolos afirma: “Vós matastes o autor da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos, e disso somos testemunhas” (At 3, 15). Assim, São Pedro reconhece, sob influxo do Espírito Santo, que Jesus é autor da vida para o mundo inanimado no mal. Jesus quer dar um sentido às coisas, e qual é este rumo senão o seu Imaculado Coração que vivifica, através de uma experiência de amor, quem se abre à sua graça? Ainda hoje querem matar o Autor da Vida, Jesus Cristo. Como? Com tantas ideologias tronchas e desajustadas, promotora da indignidade e da morte moral e existencial do homem remido pela cruz do Senhor. Sabemos que, ao querer olvidar o Cristo da cultura e do agir humanos, extirpando-o, numa tentativa brusca e defectível, o homem ruirá. E qual a grande saída diante desta miséria que abate o mundo? Os cristãos, testemunhas atuais da Ressurreição do Senhor. Como tais, devemos, inseridos nos diversos meios das atividades humanas, conclamar a humanidade uma conversão de vida que perpasse pelo arrependimento e pelo abraçar a fé em Jesus Cristo nosso Senhor.


Na história dos dogmas da Igreja, há uma curiosidade: não existe nenhuma afirmação dogmática sequer que proclame solenemente a Ressurreição do Senhor. Nenhuma! Por quê? Porque para a Igreja, testemunha privilegiada da Páscoa do Cristo, esta verdade é intrinsecamente inerente à sua vida, missão e fé: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé” (1Cor 15,14). Assim, sendo, percebemos que a Esposa de Cristo nunca cessa de proclamá-lo: “Ele ressuscitou verdadeiramente!” (Lc 24, 34). E nós, com ela, nos momentos difíceis, somos conclamados a fazer coro, dizendo com o salmista: “Muitos há que se perguntam: ‘Quem nos dá felicidade?’ Sobre nós fazei brilhai o esplendor de vossa face!” (Sl 4, 7). O Cristo Ressuscitado que continuamente se mostra e manifesta-se à sua Igreja proporciona-lhe a felicidade autêntica, concede-nos a felicidade verdadeira com a sua face.


Nesta dinâmica testemunhal do Senhor Ressuscitado, na Segunda Leitura, São João, no invitatório de uma vida baseada na santidade, logo no início da perícope, ordena-nos e alenta-nos: “Meus filhinhos, escrevo isto para que não pequeis. No entanto, se alguém pecar, temos junto do Pai um Defensor: Jesus Cristo, o Justo” (1Jo 2,1). Assim, ele quer nos dizer que o pecado é um ‘contra-testemunho’ que damos de Jesus para o mundo. Se a Igreja é Santa porque o seu fundador é santo, por que é que muitos de nós resistimos em uma vida pecaminosa, negando assim a Vida Nova da Graça que o nosso Salvador nos trouxe com a sua cruz e ressurreição? Por isso, coadunando o último versículo da Primeira Leitura com o que acabamos de afirmar, podemos pensar que tal como propomos ao mundo uma vida de conversão, devemos também converter-nos de nossas mazelas e fragilidades. O contrário também faz efeito: assim como a nossa conversão é uma conformação ao Cristo Senhor, devemos propor tal atitude ao mundo.


Um verbo belíssimo e constante na literatura joanina é o ‘conhecer’. Tal termo, no seu âmago, denota amar. O amor a Deus é dado, antes de tudo, pela prática dos mandamentos e, a partir deles, esta ação de amá-lo, de conhecê-lo, preencherá toda a nossa vida. Assim sendo, uma pessoa completada de Deus o transparece, o transborda aos outros, manifestando-o. Com isso, afirmamos que, para um apurado e acurado testemunho do Senhor Ressuscitado a observância dos mandamentos, a prática daquilo que é vontade do Senhor, é indispensável.


No Evangelho de hoje, São Lucas, após apresentar a aparição de Jesus a Cléofas e ao discípulo oculto que caminhavam para Emaús, nos traz uma aparição subsequente a esta. Daí o texto iniciar da seguinte forma: “Os dois discípulos contaram o que lhe tinha acontecido no caminho, e como tinham reconhecido Jesus ao partir o pão. Ainda estavam falando, quando o próprio Jesus apareceu no meio deles e lhes disse: ‘A paz esteja convosco!’” (Lc 24, 35). Acerca desta saudação dominical, já fizemos alusão no domingo passado. E São Lucas continua, narrando os sentimentos dos que ali estavam presentes: “Eles estavam assustados e cheios de medo, pensando que estavam vendo um fantasma”. Quantas vezes, imbuídos pelo pensamento de muitos indiferentes à fé, temos a tentação de arrazoar que Jesus é um espectro, relegando-o a uma figura distante, desencarnada, de apenas um líder ou de alguém especial, ‘iluminada’, que veio a este mundo para exercer uma espécie de filantropia, ou mesmo de um indivíduo que falava coisas bonitas que ainda hoje ressoam na história da humanidade? Tal como naquela época, diante do que nos é apresentado dos discípulos da ‘primeira hora’, o Senhor também nos apresenta sinais suficientes de sua Ressurreição, a nós que somos os seus ‘operários da última hora’. Vemos no texto evangélico de hoje que o Ressuscitado apresenta-lhes as chagas, ao que São Lucas narra: “Mas eles ainda não podiam acreditar, porque estavam muito alegres e surpresos” (v. 41). Inúmeras vezes, em um misto paradoxal de uma alegria transitória, a qual denominamos vulgarmente de ‘oba-oba’, ficamos alegres por causa de Jesus, mas no fim das contas não lhe damos crédito. Jesus Ressuscitado vai mais além, não obstante mostrar-lhes as chagas, assume uma atitude inusitada: “Tendes aqui alguma coisa para comer?”. Jesus come. E não para aí, alerta-lhes sobre o cumprimento das Escrituras em sua Paixão, Morte e Ressurreição: “‘São estas as coisas que vos falei quando ainda estava convosco: era preciso que se cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos. […] Assim está escrito: O Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e no seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas as nações, começando por Jerusalém. Vós sereis testemunhas de tudo isso’” (Lc 24,44.46-47). A Igreja, e nós nela e com ela, quando anuncia a Páscoa do Senhor e implora a sua vinda – “Anunciamos, Senhor, a Vossa Morte e proclamamos a Vossa Ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” – cumpre eminentemente a sua missão que é associada a nós pelo Batismo, quando ela, tocando em nossos lábios e ouvidos, no Éfeta batismal, nos diz: “O Senhor Jesus, que fez os surdos ouvir e os mudos falar, lhe conceda que possa ouvir logo a sua Palavra e professar a fé para louvor e glória de Deus Pai”.


É necessário que sempre nos venha à tona o que Jesus nos ordena: “Vós sois o sal da terra. […] Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,13-14). Se o testemunhamos Vivo, Ressuscitado, Operante na nossa vida, na da Igreja e no mundo, estaremos espalhando o sabor, o clarão, o sentido para o mundo, estaremos espalhando a sua presença nos recônditos da terra.  

sábado, 14 de abril de 2012

II DOMINGO DA PÁSCOA OU DA DIVINA MISERICÓRDIA


(Ano B – 15 de abril de 2012)



I Leitura: At 4, 32-35
Salmo Responsorial: Sl 117 (118), 2-4.16ab-18.22-24 (R/.1)
II Leitura: 1Jo 5,1-6
Evangelho: Jo 20,19-31 (Tomé)



Queridos irmãos,



Com este Domingo encerramos a Oitava Pascal. Também tradicionalmente cognominado Dominica in Albis (Domingo de branco), este dia da Oitava era a data em que os neófitos, já participantes da comunidade dos fiéis, retiravam as suas vestes batismais, as suas roupas brancas, pelo menos enquanto indumentária. Prática que remonta desde os tempos de Santo Ambrósio, ou seja, séculos III-IV. Esta deposição se dava na igreja romana de São Pancrácio que, com a tenra idade de doze anos, deu ao mundo o seu testemunho de fé no Senhor com o seu martírio. Com tal atitude nesta igreja estacional (estacional porque a cada dia da semana da Oitava da Páscoa os que, em Roma, receberam o Batismo na noite pascal eram conduzidos para um determinado templo, daí serem chamados statio), a Mater Ecclesia queria ensinar os seus filhos recém-nascidos para a fé através da graça batismal o quão é necessário confessar o nome do Senhor. Por este motivo, a Antífona de Entrada nos introduz nesta realidade: “Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite para crescerdes na salvação, aleluia!” (1Pd2,2). É deste introito que podemos extrair uma segunda cognominação para este domingo através da sua récita ou canto na língua latina: “Quasi modo géniti infantes, allelúia: rationábiles, sine dolo lac concupíscite, allelúia, allelúia, allelúia”. Logo, um outro nome dado a este domingo é o de Dominica Quasi Modo. É ainda no dia de hoje que a última prece é dirigida a Deus pelos neófitos através da comunidade que apresentou os seus catecúmenos para o batismo na Vigília Pascal: “Acolhei, ó Deus, as oferendas do vosso povo e dos que renasceram nesta Páscoa, para que, renovados pela profissão de fé e pelo batismo, consigamos a eterna felicidade” (Oração sobre as oferendas); ou a que enfatiza o banho batismal: “Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes. E fazei que compreendamos melhor o batismo que nos lavou, e o sangue que nos redimiu” (Oração de Coleta).


Na Liturgia da Palavra, logo na Primeira Leitura, temos o que vulgarmente se apelida nos Atos dos Apóstolos de ‘o retrato das primeiras comunidades’. Interessantíssima a forma com a qual a Igreja, pedagogicamente, nos conduz pelas sendas do mistério através do espírito da Sagrada Liturgia: após fazer novos filhos de Deus pelo Batismo, ela, como Mestra, aponta, não somente para os novos cristãos como também para nós que já trilhamos a fé há tempos relativamente largos, como se fundavam as proto-comunidades cristãs, demonstrando-nos os sentimentos que eram vividos aí: assiduidade em uma oração concorde o que poderíamos chamar de piedade (cf. At 2, 42), partilha e comunhão – em grego koinonia (cf. v. 44-46), audiência à Palavra de Deus e aos ensinamentos da Igreja (cf. v. 42; 1Cor 15, 11). Esta se torna uma fórmula infalível para uma manifesta percepção de crescimento da comunidade dos seguidores de Jesus. Se os novos cristãos adentrarem nas soleiras da Comunidade dos Eleitos já com este pensamento, manifestam o seu desejo íntimo de, como crianças recém-nascidas na fé, desejarem “o puro leite espiritual para o crescimento na salvação”, tal como nos menciona a Antífona de Entrada para esta celebração extraída da Primeira Carta de São Pedro. E se nós perseguirmos fielmente tal intento, como supostos cristãos amadurecidos, estaremos fazendo o que a Carta aos Hebreus nos ordena: “o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que a experiência já exercitou na distinção do bem e do mal” (Hb 5,14).


Neste Domingo da Divina Misericórdia, o Salmo Responsorial ressalta a misericórdia do Senhor. Bondade e misericórdia (tal como entoa o salmo) são atributos do amor do Senhor. E com qual desígnio benevolente o Senhor revelou o seu amor com maior profundidade senão pela regeneração do homem pela Cruz de seu Filho? O mistério de nossa redenção é uma prova estupenda da misericórdia do Senhor. O que fizemos por merecê-la? Nada, absolutamente nada! Por isso, o mistério pascal é ocasião muito mais que propícia para recordar a caridade do Senhor para conosco. Entendamos por caridade aquilo que o termo latino inspira de fato: um amor desinteressado. O Beato João Paulo II, em sua Carta Encíclica Dives in misericórdia, afirma: “Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da misericórdia, com aquela totalidade com que ela foi revelada na história da nossa salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final que, especialmente na linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale (mistério pascal). […] O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e atuação da misericórdia, capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo. Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem crente. Até o homem que não crê poderá descobrir nele a eloquência da solidariedade com o destino humano, bem como a harmoniosa plenitude da dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor. A dimensão divina do mistério pascal situa-se, todavia, numa profundidade ainda maior. A cruz erguida sobre o Calvário, na qual Cristo mantém o seu último diálogo com o Pai, brota do âmago mais íntimo do amor, com que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o eterno desígnio divino” (n. 7). 


São João, na Segunda Leitura, ressalta-nos que a caridade com o próximo é a medida dos mandamentos ao mesmo tempo em que o cumprimento dos mandamentos é medida da caridade. Poderíamos ir mais adiante em afirmar que o amor ao próximo é critério indispensável para averiguarmos a nossa comunhão com Deus: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê. Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão” (1Jo 4, 20-21). A nossa união com Deus e com os irmãos é um produto da fé em Nosso Senhor. A fé abraçada convictamente, pelo Batismo, nos torna filhos de Deus. Somente a fé em Jesus nos é capaz de dar forças para vencermos o mundo e as suas armadilhas. Importante saber que, em síntese, a fé no Cristo gera o amor, e este, conseguintemente, “cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4, 8).


O Evangelho de hoje, riquíssimo em detalhes, apresenta-nos elementos diversos dos quais podemos extrair alguns pontos para a nossa reflexão. Em primeiro lugar, observamos, nesta narrativa, que o Senhor Ressuscitado aparece aos seus (com exceção de Tomé) no dia de Páscoa, ou seja, “ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (Jo 20, 19). Esta prática de Jesus de aparecer primordialmente em tal dia será um marco que perpassará toda a vida da comunidade cristã de todas as épocas. Assim, o ‘primeiro dia da semana’ é o Dies Domini (Dia do Senhor) por excelência, e, portanto, da comunidade. Não é mais o sétimo, mas o primeiro dia da semana, o Oitavo Dia, que será o tempo especial de encontrar-se com Deus e com os irmãos. Posteriormente, temos uma observação premente feita por São João: “estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles […]” (v. 19). Este contraste entre medo dos discípulos e o colocar-se do Senhor no meio dos seus quer nos mostrar que o Cristo ressuscitado não cessará de acompanhar a sua Igreja, conduzindo-a pelos Apóstolos. Dessa forma, o Ressuscitado cumpre o que prometera: “Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais […] Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós. Ainda um pouco de tempo e o mundo já não me verá. Vós, porém, me tornareis a ver, porque eu vivo e vós vivereis” (Jo 14, 3.18-19);  e ainda: “Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver, porque vou para junto do Pai” (Jo 16,16); ou como o Senhor assegura no Evangelho de Mateus: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). Em São João, a presença do Senhor é sinônima de paz, daí a sua saudação: “A paz esteja convosco” (v. 19. 21. 26). Esta mesma presença portadora de paz repelirá o incômodo do medo dos discípulos.


Ao frisar que Jesus mostra-lhes o lado, São João quer sublinhar que há uma continuidade entre o Jesus sofredor da Cruz e o Senhor glorioso que se lhes apresentava naquele instante e que permaneceria junto deles, confortando-os nas diversas agruras que a Igreja e os seus filhos enfrentariam, a começar pelos Apóstolos que se alegraram por se encontrarem com Jesus Ressuscitado. Daqui, poderemos extrair uma formidável lição: se cremos na força de Jesus vivo e ressuscitado, o mesmo Cristo crucificado, teremos as condições essenciais para enfrentar os desafios que a vida nos impõe com alegria e justa satisfação de estar padecendo tudo por amor a Deus, tal como um sacrifício de suave odor: “Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque quando me sinto fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10).


Jesus envia os seus discípulos e lhes sopra o Espírito, o poder do Ressuscitado é transmitido à Sua Igreja. Assim, compreendemos que a missão da Igreja se insere, justamente, na missão de Jesus; a Igreja é continuadora da missão do Senhor. O insuflar do Espírito remete-nos à ideia de que Jesus, com a sua ressurreição, promove uma nova criação, da qual fazemos parte. Aqui, São João utiliza o mesmo verbo grego (ὲνεφύσησεν) que fora utilizado em Gn 2, 7, o que equivale a insuflar: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Esta atitude de soprar o Espírito, doando-lhe para a Igreja, está presente também na cruz, quando o Senhor, expirando, entrega o Espírito. Esta concessão coadunada em dois momentos bastante unidos é o que os estudiosos da Sagrada Escritura apelidam de ‘pentecostes de João’. Assim João quer sugerir que, somente com a sua Páscoa, Jesus pode dar o Espírito ao mundo, a Igreja. O Espírito é poder de salvação que os discípulos manifestarão em comunhão com Jesus, por isso, somente com o Espírito dado por Ele, é que a Igreja é a única que possui o poder de perdoar os pecados, emendando as almas ao seu Senhor.


Um trecho que nos salta aos olhos é o que se refere a Tomé, o mesmo que disse, não acreditando no testemunho daqueles que, por primeiro, viram o Senhor Ressuscitado: “Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (v. 25). Jesus, ao aparecer uma segunda vez –agora Tomé estando presente –, satisfaz-lhe os desejos. Tomé duvida do testemunho daqueles que, juntamente com ele, fazem parte da Igreja. A mesma Igreja que, após tantos séculos anunciando uma verdade que lhe é fundamental, a ressurreição de Jesus, é tantas vezes desacreditada e posta em dúvida, inclusive no seu testemunho pascal, por nossa fé fraca e vacilante.


Diante da repreensão de Jesus ao apresentar-se tal como queria Tomé, o incrédulo exclama: “Dominus meus et Deus meus” – Meu Senhor e meu Deus (Jo 20, 28), reconhecendo a divindade e o senhorio do Ressuscitado. O Senhor não para na censura a Tomé, mas tece um elogio: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (v. 29). A quem se dirigia tal saudação senão a nós, crentes? (Pelo menos supomos que temos fé no Senhor). Assim, ao apresentar-nos tal Evangelho neste Domingo in Albis, a Igreja quer nos mostrar, como batizados, que Ela é a comunidade bem-aventurada dos creem em Jesus morto e ressuscitado, de cuja pertença fazemos parte. Por este motivo, o Evangelista termina esta perícope afirmado: “Jesus realizou muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v. 30-31).


Que a Luz do Ressuscitado sempre nos inspire no testemunho autêntico e existencial da sua e da nossa Páscoa.

terça-feira, 10 de abril de 2012

SENHOR, QUANTO DISPARATE!




Estamos em meados do século XXI. Assombramo-nos quando, observando as culturas espartanas, pré-colombianas e tantas outras, percebemos que estas praticavam o infanticídio e o descarte de crianças deficientes. 


Hoje, luta-se por todo o tipo de direitos, por todos, inclusive por banalidades e extravagâncias. No entanto, luta-se também para que vidas inocentes sejam tolhidas pelo aborto e por uma propaganda contrária à vida e à dignidade das pessoas, inclusive das crianças anencéfalas, o que consideramos uma eugenia moderna. Quantas incongruência, meu Deus.


Olhai, Senhor, para nós, católicos e pessoas de boa vontade que, na noite de hoje, vigiaremos em oração, implorando que a Vossa providência não permita que a Suprema Corte do Brasil aprove o aborto das crianças anencéfalas, tampouco o aborto sob qualquer justificativa. Isto, Senhor, é um crime! A vida é dom Vosso e não dos Ministros do STF e das pessoas que apoiam tal horror: estas pessoas não são proprietárias nem de suas vidas quanto mais da existências alheia.


Tende piedade de nós, Senhor Deus da Vida!

sexta-feira, 6 de abril de 2012

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR


(06 de abril de 2012)



I Leitura: Is 52, 13-53,12
Salmo Responsorial: Sl 30, 2.6;12-13;15-16;17.25
II Leitura: Hb 4, 14-16; 5,7-9
Evangelho: Jo 18, 1-19,42




“Ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura” (Is 53, 5).



Com este sentimento trazido pelo profeta Isaías no cântico do Servo Sofredor, é que relembramos e revivemos este dia em que Jesus nos salva, dando-nos uma nova vida, abrindo para nós os portais do seu Reino. É pelo Cordeiro estirado na Ara do madeiro da Cruz, sacrifício perfeito, que o Senhor nos oferece o penhor da nossa salvação. Os sacrifícios judeus, até então oferecidos como recordação de uma aliança já defasada e figurativa, perde o seu ínfimo valor. Eis que o Cristo, Filho de Deus, se oferece: ele é o sacrifício por excelência. O Seu sangue substitui de maneira plena e eficaz o que antes era representado pela sangria de animais. O que não tinha pecado, assim o fez por nós, entregando-se a morte, sendo-nos infindavelmente propício e benevolente.


Eis que estamos diante do escandaloso e sublime mistério da cruz. Desfigurado, ensanguentado, posteriormente inanimado, vendo o Senhor, calamo-nos, extasiados, emocionados. São Josemaría Escrivá, em uma de suas homilias, afirma: “Convém que meditemos naquilo que nos revela a morte de Cristo, sem ficarmos nas formas estereotipadas. É necessário que nos metamos de verdade nas cenas que vivemos durante estes dias da Semana Santa: a dor de Jesus, as lágrimas de sua Mãe, a debandada dos discípulos, a fortaleza das santas mulheres, a audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor. Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar o recolhimento interior que é sinal de maturidade cristã. Os acontecimentos, divinos e humanos, da Paixão penetrarão desta forma na alma como palavra que Deus nos dirige para desvelar os segredos do nosso coração e revelar-nos aquilo que esperava das nossas vidas”.


Vamos refletir as sete palavras que Jesus pronunciou na cruz. Mesmo sofrendo e agonizando, o Verbo encarnado cumpre até o fim as Escrituras e nos dá um grande exemplo de obediência à vontade do Pai.


No primeiro brado do Senhor, temos: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) – Com esta sua exclamação, o Salvador do gênero humano dá-nos um extremo exemplo de perdão. São João Crisóstomo, meditando esta atitude, afirma: “Como o Senhor disse, rogai pelos que perseguem, o levou à prática quando subiu à cruz. Por isto, dizia: ‘Pai, perdoa-lhes’. Não porque Ele não podia perdoar, mas para ensinar-nos a rogar pelos que nos perseguem, não somente com a palavra, mas também com a obra”. A oração de Jesus leva a sério a lei dos setenta vezes sete.


Na segunda fala de Jesus em seu madeiro – “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43) – vemos que o Senhor promete ao “bom ladrão” o Paraíso, o céu, sua morada eternal. O Cristo não fecha a sua graça àqueles que fizeram coisas más, mas que, num processo de conversão, ainda que seja no final de suas vidas, se abriram a ação de Deus. “Quem teria instruído o ladrão em mistérios tão profundos? Chama Senhor a esse homem a quem percebe desnudo, ferido, desgraçado, insultado, depreciado e pendido em uma cruz ao seu lado, este mesmo que diz que, após a sua morte, quereria entrar no seu Reino. Assim podemos aprender que o ladrão não pensou o reino de Cristo como temporal, como o imaginaram os judeus, mas que depois da sua morte seria Rei para sempre no céu. Quem foi o seu instrutor em segredos tão sagrados e sublimes? Ninguém, por certo, a menos que seja o Espírito da Verdade, que o esperava com as Suas mais doces bênçãos” (São Roberto Belarmino). Assim, percebemos que, mesmo sendo pecadores, se reconhecemos o Cristo como Senhor e o professamos, arrependendo-nos dos crimes outrora cometidos, as portas do Paraíso não nos serão fechadas. Isso é para nós a expectativa da bem-aventurança eterna. Se o antigo paraíso, prefiguração do verdadeiro, foi-nos fechado pelo pecado da desobediência de Adão, as portas do autêntico Paraíso, da morada de Deus, são-nos abertas pelo Cristo pendente no lenho da cruz, o Novo Adão: "Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão". (1Cor 15,22).


Às vezes, formamos uma falsa ideia deste ‘bom ladrão’. Pensamos diversas coisas sobre a sua vida, as quais muitas vezes não condizem com a realidade. Ponderamos sobre os possíveis crimes que ele tenha cometido para chegar ao ápice da cruenta e extenuante morte de cruz, a pior e mais desumana das penas de morte existentes na época. Porém, no fundo, muitos dos nossos pecados são superiores aos que ele, possivelmente, tenha cometido. Sabemos que ele é ladrão. Não porque tenha usurpado algo de outrem, mas porque até na última hora adquiriu o céu. Olhando para ele, temos a certeza que, para nós também, o céu é-nos aberto.


Um terceiro grito é ouvido da cruz e que ressoa doravante os séculos: “Mulher, eis o teu filho; filho, eis a tua mãe” (Jo 19, 26-27). Não achando suficiente a sua morte na cruz para a nossa salvação, ter-nos dado a Eucaristia, perpetuação do seu sacrifício redentor, Jesus oferece-nos a sua Mãe. Imaginemos, pois, Jesus sem forças, na agonia, dizendo esta belíssima frase. Meditemos acerca da dor de Maria, a Virgem das Dores, aos pés da cruz, vendo o seu filho morrer. Mergulhemos no coração de Maria, a Senhora aos pés da cruz, marcada em um misto de dor e de fé em ver o seu amado Jesus, seu Filho e Filho de Deus, em situação tão crítica. Com esta palavra do Senhor da cruz, igualmente somos convidados a olhar João, o Discípulo Amado, que, ao escutar tão grande expressão, foi invadido pela surpresa de que ele haveria de ser o guarda da Santíssima Virgem Mãe de Deus; que foi surpreendido pelo papel a ele reservado pelo Senhor: o de representar toda a humanidade que, a partir daquela hora de agonia, era patrocinado pela Virgem Maria.


Na quarta expressão de Jesus no alto de seu lenho, temos: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? – Eli, Eli, lamá sabactâni?” (Mt 27, 46; Mc 15, 34) – Jesus, em agonia, reza. Este trecho “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é o início do salmo 21. Dor e oração, eis as expressões do Cristo. A crucificação de Jesus coaduna toda a Escritura em si; Jesus encarna a salmodia, as profecias, as Escrituras. Neste sentido, São João Crisóstomo afirmará: “Portanto falou com as palavras do profeta, dando assim testemunho do Antigo Testamento até a última hora; e para que vejam como honra a seu Pai e que não o contraria. Por isso falou em hebraico, para que todos entendessem o que dizia” (Homiliae in Matthaeum, hom. 88,1). Também poderíamos entender tal exclamação do Salvador com outro sentido que não diverge do primeiro, antes, está em íntima consonância. Jesus Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem, ao fazer-se pecado por nós, sente-se como que abandonado pelo Pai. Pode parecer até uma situação paradoxal: “Deus abandonou o seu Filho? Deus se abandona?”. As sombras tenebrosas que cobriam a terra naquele instante testemunhavam o abandono de Deus, ao tempo em que o representa. E Orígenes reflete: “Devemos perguntar-nos: O que se entende quando se diz que Jesus Cristo é abandonado por Deus? Alguns, na insuficiência de explicar, dizem que Jesus a diz por humildade. Porém, claramente, se poderia entender que disse fazendo uma comparação de sua glória, a mesma que tinha junto do Pai, e a turbação que padeceu desprezado na cruz. Depois que viu o Salvador que as trevas se tinham estendido por toda a Judeia, disse estas palavras dando a entender que o Pai o havia abandonado. Isto é, que o havia entregado quando ele já não tinha forças, a tantas calamidades, para aquele povo que tinha sido tão honrado pelo Pai, recebera o que merecia, pelo que se atreveu a fazer com Ele. Isto é, que ficasse privado da luz de sua proteção, já que Ele foi abandonado para a salvação das gentes. Que mérito adquiriram os que creram entre os gentios para que merecessem ser comprados do poder do inimigo pelo sangue precioso de Jesus Cristo derramado sobre a terra? O que haviam de fazer os homem adiante, para serem dignos de que Jesus padecesse por eles toda classe de tormentos? Acaso, vendo os pecados dos homens por quem sofria, disse: Por que me tens abandonado? Para que parecesse àquele que colhe restolhos na ceifa ou cachos na vindima? Não creias que o Salvador disse essas coisas  como costumam dizê-las os homem quando experimentam sofrimentos como Ele padecia na cruz. Porque se o crês neste sentido, não ouvirás a sua grande voz, a que manifesta que algo grande se encerra nela” (In Matthaeum, 35).


O “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é oração, não de desespero, mas de certeza jubilosa do triunfo final, como alude mais adiante o mesmo Salmo 21, 20: “Porém, vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai” (Sl 21,20). Diante da extremada situação vivenciada no Calvário, sentindo-se abandonado por Deus e por seus amigos, sentindo o peso dos nossos pecados sobre si, o Filho não perde a confiança em seu Pai.


“Tenho sede!” (Jo 19, 28), eis a quinta fala do Cordeiro Imaculado. Obedecendo as Escrituras, Jesus sente sede. O suor, o sangue perdido, a poeira, a dor… tudo leva a “Fonte de Água Viva” (cf. Jo 4, 10) a reclamar estar sedento. Que espécie de sede é esta que Jesus sentira? Seria sede física apenas? Ou sede de Deus; ou por almas; ou mesma causada pela humilhação, pelos incontáveis opróbrios que sofreu.


No versículo 34 deste mesmo Evangelho, vemos o soldado romano traspassar-lhe o lado. E, do peito aberto de Jesus, sai sangue e água. A água que purifica é a mesma água do batismo; é a mesma água que sai do seu lado, símbolo dos sacramentos.


Eis que lhe oferecem por bebida o vinagre, o fel. Neste sentido, afirma-nos Santo Agostinho: “Padecia tudo isso o que aparecia homem, e o dispunha tudo o que se ocultava Deus. Por isso diz: ‘Depois, sabendo que tudo se havia consumado, a fim de que se cumprissem as Escrituras’, isto é, o que havia predito a Escritura: ‘E, em minha sede, ofereceram-me vinagre’ (Sl 68, 22), disse: ‘Tenho sede’, como se dissesse: Isto falta fazer, dai o que sois. Como que os judeus eram o vinagre, degenerado do vinho dos patriarcas e profetas. Havia, pois, ali, um vaso cheio de vinagre, como um coração cheio de iniquidade deste mundo, a maneira de esponja, cheia de cavernosas e enganosas tortuosidades. E segue: ‘E eles, colocando uma esponja empapada em vinagre sustentado por um hissopo, aplicaram em sua boca’” (In Ioannem, tract., 119).


Na sexta declaração do Crucificado, temos o imperativo “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30). Assim com autoridade de um Verdadeiro Rei, Jesus declara acabada a sua missão de Redentor, obra que o Pai lhe confiara e que Ele prontamente abraça: “Tunc dixi ecce venio in capite libri scriptum est de me ut facerem voluntatem tuam Deus meus volui et legem tuam in medio cordis mei” -  Então eu disse: Eis que eu venho. No rolo do livro está escrito de mim: fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada, porque vossa lei está no íntimo de meu coração (Salmos 139, 8-9); ou ainda, como alude São João no seu Evangelho: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, até o extremo os amou” (Jo 13,1). O Cristo morre amando. A Palavra do Pai que tudo criou por meio dela ao dizer “Fiat – Faça-se”, melhor do que ninguém cumpre a sua missão, e, por isso, morre amando; ama até a consumação da sua vida. Por isso, diz: “Tudo está consumado”, pois, além do amor perfeitamente cumprido, o Cordeiro de Deus leva a feito tudo o que as Escrituras afirmam acerca de si. Ele, no escândalo da cruz, como ovelha diante do tosquiador não abriu a boca, mas o pouco que falou foi para que toda a Escritura se cumprisse. Por este motivo serem sete as exclamações do Senhor na cruz. Sete na Bíblia é a conta da perfeição: Jesus, até a consumação, foi perfeito, inclusive nas suas ditosas palavras dirigidas ao Pai, dirigidas aos que estavam presentes, dirigidas a nós.


Por fim, caríssimos irmãos, chegamos a sétima e última das benditas palavras pronunciadas pelo Cristo em sua cruz: “Pai, em tuas mãos, eu entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). O Senhor reza, pronunciando, em agonia de morte, o salmo 30, 6. Interessante notarmos que o Filho de Deus encerra o setenário de suas palavras da mesma forma que iniciou: clamando pelo Pai, dirigindo-se a Ele. Se no primeiro brado de Jesus tivemos: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), agora temos o grande grito “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito” (v. 46), tal como, costumeiramente, fazia em suas orações, chamando Deus de Pai, fazendo jus à sua filiação.


Aquele que veio do Pai para Ele retorna. Nesta Hora, a missão de Jesus se encerra definitivamente. Jesus morre, é certo, mas não é o fim. A morte de Cristo é a sua libertação nas mãos de Deus, por quem foi enviado, da parte de quem veio. É também a nossa libertação, pois com a sua obediência “até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8), rompe os grilhões da nossa escravidão com o poder do pecado e da morte. Jesus desce à mansão dos mortos, tal com o afirmamos no Credo; lá há de libertar os justos que também precisavam de salvação: Moisés, Abraão, os patriarcas e profetas. Entregando-se ao Pai, o Cristo declara a sua confiança em Deus, seu Pai.


O Senhor Jesus Cristo é rei, seu trono é a cruz: é rei pela Santa Cruz. Assim como, prefigurativamente, Moisés levantou a serpente de bronze no deserto, curando os que eram feridos pelas serpentes, quando estes olhavam para a estátua erguida em uma vara, o Cristo, estendido na haste cruz e desfalecido, é remédio de vida para a humanidade morta pelo pecado. Por isto, dizemos: ‘Bendita e louvada seja a Paixão e Morte de Jesus Cristo, nosso Senhor. Que quis padecer e morrer na cruz por nosso amor!’