sábado, 30 de julho de 2011

XVIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano A - 31 de julho de 2011)


I Leitura: Is 55, 1-3
Salmo Responsorial: Sl 144 (145), 8-9. 15-16. 17-18 (R/. cf. 16)
II Leitura: Rm 8, 35. 37-39
Evangelho: Mt 14, 13-21 (Multiplicação dos pães)


Queridos irmãos,


            Dentro de todo o decorrer da Escritura Sagrada, vemos o pão como um nutrimento bastante presente no hábito alimentar dos povos do Mediterrâneo. Por Israel podemos verificar tal afirmativa. E, quando nos referimos a ideia deste alimento, um dos trechos que de imediato nos vem à tona é o do Evangelho de hoje: a multiplicação dos pães.
              Jesus, ao receber a notícia da morte de João pela boca dos discípulos deste, entristecido, entra numa barca, rumando para um lugar deserto. A este sentimento do Salvador, contemplamos que Ele é verdadeiramente homem, sem deixar de ser verdadeiramente Deus. Jesus entristece-se. O Mestre tinha consciência da importância que o Precursor teve nos preparativos da obra da redenção da humanidade, ao tempo em que sabia que, dentro em breve, iria sofrer, tal como João, ser condenado e morto.
              O Evangelista Mateus deixa-nos no suspense: “Mas, quando as multidões souberam disso, saíram das cidades e o seguiram a pé” (Mt 14, 13). Souberam do quê? De que Jesus havia embarcado? Não. Saíram porque, com certeza, souberam que Jesus havia ficado acabrunhado com a morte de João. Queriam confortá-lo. Esta atitude da multidão apresentada por Mateus se contrapõe a dos habitantes de Nazaré, apresentadas pelo mesmo evangelista, os quais não haviam crido na mensagem de Jesus (cf. Mt 13, 55-58).
Ao desembarcar, vendo Jesus que a multidão grandiosa estava à sua espera, enche-se de compaixão. Vemos aí, novamente, São Mateus demonstrando Jesus, o Filho de Deus, como alguém dotado de sentimentos. Mateus é uníssono com Marcos ao apresentar a compaixão do Senhor na cena da multiplicação dos pães: “porque era como ovelhas que não têm pastor” (Mc 6, 34); porém, aquele é mais incisivo em apresentá-lo como tal, ao tempo em que a sua exposição da turba como consolo para o Senhor seja algo inédito. Em seu comentário ao Evangelho segundo Mateus, São João Crisóstomo afirma: “Porém nem ainda assim o deixam as turbas, senão que o seguem e lhe aderem, sem que a morte de João lhes causasse medo. Assim é o carinho, assim é o amor: supera e põe de lado tudo o que lhe pesa e molesta. E por este motivo receberam seu prêmio” (Sobre Mateus, 49).
           Jesus retribui a comiseração daquela gente, muito mais do que com as curas ou com o milagre da multiplicação. Jesus paga-lhes com o seu gesto de acolhimento, de afabilidade. À compaixão (cum passio = sofrer com) do povo é restituída com o mesmo sentimento, por isso cura os seus enfermos e alimenta essas pessoas.
            Esta cena evangélica faz-nos reportar ao povo de Israel que, no deserto, murmurava contra Moisés, Aarão e até mesmo contra o próprio Deus querendo pão e carne (cf. Ex 16). Deus lhes envia aquilo que eles ansiavam. Na perícope de hoje, temos o contrário: um novo povo no deserto que nada desejava a não ser estar com o próprio Deus, o qual mais tarde se autonomeará “Pão”: “Ego Sum Panis vivus” (Jo 6, 51); “Hoc est corpus meum” (Mc 14, 22; Lc 22, 19).
Se compararmos a atitude de Jesus com a dos discípulos, perceberemos a atitude de insensibilidade destes, pois dizem a Jesus para que despedisse aqueles fiéis que já se saciavam espiritualmente com os seus valorosos sinais e palavras; o Mestre que lhes abastecia a fé. Ora, parece que os discípulos (discipulus = aprendiz) não estavam aprendendo do Senhor o acolhimento àqueles crentes que já se satisfaziam em escutá-lo. A fome material era o mínimo para aquela multidão. Com certeza, os discípulos já haviam sido vencidos pelo cansados do dia, daquele local deserto, das atividades. Será que estavam prioritariamente preocupados com o sustento do povo ou isso apenas era um pretexto? Não sabemos ao certo. O que de fato sabemos é da lição oferecida pelo Cristo; “Eles não precisam ir embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14, 16). O que significa este ordenamento? Que o milagre iria acontecer; operado por Jesus, mas coadjuvado pelos seus. Não que o Senhor tivesse necessidade de tal auxílio, pois ele poderia muito bem ter feito o alimento aparecer do nada ou até mesmo ser orvalhado dos céus. Deseja que os discípulos deem daquilo que possuem, em sentido figurado, “tirando-lhes o alimento da própria boca”. Os cinco pães e os dois peixes eram tudo o que os discípulos possuíam. Daquele nutrimento, provavelmente, iriam comer, no mínimo, treze pessoas (Jesus e os doze).


À resposta dos discípulos – “Só temos aqui cinco pães e dois peixes” (Mt 14, 17) – Jesus ordena: “Trazei-os aqui”. Muito mais do que um resposta inocente, os discípulos disseram: “Já nos demos por inteiro a ti, Jesus, e a esta gente. Só resta-nos o sustento: o que mais queres de nós?”. E ao que Jesus interpela: “Dai-me isto também”. À visão minimalista daqueles doze é oferecida uma outra que universaliza o bem. Mais tarde, a exemplo do que o Senhor fizera, eles não só entregarão um mero alimento para as gentes; eles entregar-se-ão para o benefício de muitos. Eis a grande máxima deixada para os doze.
E para aquela gente que, de bom grado, se comprazia em estar ali, no deserto? Aqui, não falamos em lição, singularmente, mas lições. Estas preleções é também dirigida aos seus discípulos. A primeira, a força da partilha. Neste sentido, escreve São Jerônimo: “Com a partição dos pães, fez o Senhor uma porção de comida, porque se estivessem estado inteiro, e não os tivesse partido em pedaços, não os teria multiplicado em tantíssima abundância, não poderia alimentar uma multidão tão grande. Mas as gentes recebem do Senhor, pelas mãos dos Apóstolos, os alimentos; e por esta razão segue: ‘E os deu aos discípulos’”. Logo, deixa-nos a ideia de que onde não há partilha não acontece o milagre da satisfação universal, porque um sentimento de entorpecimento de coração, fruto de um egoísmo exacerbado, fechará a percepção daquele que é chamado à generosidade de vida, inclusive de bens materiais. Compreendamos que não é Jesus quem distribui os pães, mas os discípulos, de cuja posse tinham saído os cinco pães, por isso lhes tinha dito anteriormente: “Dai-lhes vós mesmo de comer!”
Um segundo exemplo dado pelo Divino Mestre: a providência do Alto nunca falha. Percebamos que ao tomar os alimentos, Jesus dá graças aos céus e os abençoa. Desta maneira, quer afirmar que tudo o que está acontecendo é dádiva para aqueles homens e mulheres que estavam no deserto. Deus nunca abandona o seu povo. A Divina Providência está sempre do lado daqueles que se abram à sua ação.
O terceiro ensinamento dado foi verificado na atitude do Salvador, agora visto com outra perspectiva: Jesus, não distribuindo os pães, mas dando-lhes para que os discípulos assim o fizessem, deixa a entender que a multidão deve ver naqueles homens ainda troncos e imperfeitos, os quais posteriormente farão as vezes do próprio Cristo (vicarius), as suas atitudes. Tudo o que os apóstolos farão não acontecerá por seus méritos, mas porque o fazem em nome de Deus, iniciando no simples gesto do partir o pão, ação identificadora de Jesus (cf. Lc 24, 30-31; At 2, 42. 46). Assim também, irmãos, acontece na Eucaristia quando, in nomine Domini, os Apóstolos de Jesus de todos os tempos partem o pão.
Aqui já entramos em uma quarta lição oferecida por Jesus que, embora não desmerecendo as anteriores, possui um sentido mais profundo: tudo o que Ele fizera no deserto ao multiplicar os pães era prefiguração do verdadeiro pão: o Seu Divinal Corpo, oferecido a muitos na mesa do altar. E, para pensarmos assim, temos motivos suficientes. Além dos que já refletimos, vemos que as multidões se sentam na grama. A presença das gramíneas no deserto é sinal da acolhida da Igreja em meio ao mundo (deserto) que faz com que as pessoas encontrem conforto e convite para a Ceia do Senhor. Na Sagrada Escritura sentar com alguém para uma refeição designa uma proximidade, intimidade entre os comensais. Outro sinal que podemos entrever é a quantidade de cestos recolhidos com as sobras dos pães: doze. Dentro da matemática bíblica, o número doze é especial, pois indica a sagrada eleição: doze eram os patriarcas, pais da doze tribos de Israel (totalidade do Povo da Antiga Aliança); doze os apóstolos, incumbidos de congregar uma multidão incontável ao novo Povo de Deus. Desta forma, vemos Jesus como Pão que, dando-se, alimenta a muitos (cf. Mc 14, 22-24; Jo 6, 51). Por isso, não é por qualquer motivo que sobram doze cestos cheios, um para cada membro do Colégio Apostólico. E é com esta quarta lição que adentramos na reflexão da Primeira Leitura.
Neste trecho de Isaías, vemos o profeta que fala aos exilados na Babilônia, aos sedentos e famintos do povo de Israel. “Ó vós todos que estais com sede, vinde às águas; vós que não tendes dinheiro, apressai-vos, vinde e comei, vinde comprar sem dinheiro, tomar vinho e leite sem nenhuma paga” (Is 55, 1). Podemos, com toda justeza, colocar tal perícope do profetismo de Israel na boca do nosso Redentor. Ele gratuitamente alimenta o seu povo que se encontra exilado nesta terra de confusão, nesta Babilônia. O profeta continua: “Por que gastar dinheiro com outra coisa que não o pão, desperdiçar o salário senão com satisfação completa? Ouvi-me com atenção, e alimentai-vos bem, para deleite e revigoramento do vosso corpo” (Is 55, 2). Não temos necessidade de sermos alimentados com o fermento deste mundo. É necessário tomarmos a mesma atitude daquela multidão do Evangelho: alimentarmo-nos com as palavras de Jesus, com a sua presença, só assim entenderemos o que nos diz Isaías “Ouvi-me com atenção, e alimentai-vos bem”. Ouvir as suaves palavras do Senhor é o alimento do cristão, principalmente quando ele diz: “Isto é o meu corpo; isto é o meu sangue”; “Eu sou o Pão”. Aí está o nosso alimento; aí está os víveres que nos revigoram para fortificar-nos no exílio desta terra, rumo à nossa Pátria definitiva: o Céu.
Isaías termina dizendo: “Inclinai vosso ouvido e vinde a mim, ouvi e tereis a vida; farei convosco um pacto eterno, manterei fielmente as graças concedidas a Davi” (Is 55, 3). Sim, ao escutarmo-lo, diremos tal como São Pedro: “Só tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68); ou, como o verso da Aclamação ao Evangelho: “O homem não vive somente de pão, mas vive de toda a palavra que sai da boca de Deus” (Mt 4, 4). É o próprio Cristo o “pão do céu, que contém todo o sabor e satisfaz o nosso paladar” (Sb 16, 20), como bem recorda a Antífona da Comunhão da liturgia de hoje, que concede a todos quantos se alimentem de seu saboroso manjar as graças de sermos sempre amigos de Deus, tal como foi Davi, bem sucedido naquilo que fez. O nosso sucesso será quando de uma vez para sempre estivermos na amizade íntima com Deus, estando, de fato mergulhados nele, no festim do Reino eterno.
Quando, a partir desta terra, fazemos esta experiência de escuta do Mestre, deixando-nos seduzir por Ele, tal como tantas pessoas já o fizeram, alimentando-nos com a sua Presença e Palavra (Eucaristia e Escritura), exclamaremos como Paulo: “Quem nos separará do amor de Cristo? [...] (Nada) será capaz de nos separar do amor de Deus por nós, manifestado em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8, 35. 39).       
            

sábado, 23 de julho de 2011

XVII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano A – 24 de julho de 2011)


I Leitura: 1Rs 3, 5.7-12
Salmo Responsorial: Sl 118 (119), 57 e 72. 76-77. 127-128. 129-130 (R/. 97 a)
II Leitura: Rm 8, 28-30
Evangelho: Mt 13, 44-52

Queridos irmãos,

Um dos dons do Espírito Santo derramado sobre a Igreja em Pentecostes e consequentemente dado a nós pela efusão do Paráclito no dia em que confirmamos o nosso Batismo é o da Sabedoria. O Espírito se incumbe de doá-la a quem o pede. Este dom é imprescindível para uma vivência fiel à Palavra de Deus; é um tesouro para os que vivem no mundo e, nele, têm que dar razões de sua fé, tendo a plena certeza de que o Reino já chegou e, dentro de uma temporariedade (rumando para eternidade), já experimentamos esta realidade transcendental.

O livro da Sabedoria, tradicionalmente atribuído a Salomão, logo no seu início afirma:

“Amai a justiça, vós que governais a terra, tende para com o Senhor sentimentos perfeitos, e procurai-o na simplicidade do coração, porque ele é encontrado pelos que o não tentam, e se revela aos que não lhe recusam sua confiança; com efeito, os pensamentos tortuosos afastam de Deus, e o seu poder, posto à prova, triunfa dos insensatos. A Sabedoria não entrará na alma perversa, nem habitará no corpo sujeito ao pecado; o Espírito Santo educador (das almas) fugirá da perfídia, afastar-se-á dos pensamentos insensatos, e a iniquidade que sobrevém o repelirá. Sim, a Sabedoria é um espírito que ama os homens, mas não deixará sem castigo o blasfemador pelo crime de seus lábios, porque Deus lhe sonda os rins, penetra até o fundo de seu coração, e ouve as suas palavras” (Sb 1, 1-6).


 Assim, percebemos que a sabedoria produz a justiça, atributo indispensável para o Reino dos Céus. A sabedoria é dada aqueles que possuem um coração humilde, para os que são generosos no relacionamento com Deus. A sabedoria produz justiça, nunca iniqüidade. Aqui habita o motivo de ela não coadunar com o pecado – “... nem habitará no corpo sujeito ao pecado” (Ibidem, 4). Por isso, o conselho do Apóstolo Paulo: “Não contristeis o Espírito Santo de Deus, com o qual estais selados para o dia da Redenção” (Ef 4, 30). Assim, se o nosso proceder entristecer o Espírito Santo, a dose de Sabedoria dada a nós por essa Pessoa Divina será diminuída.

Ao fazer jus ao que prometera a Davi (cf. 2Sm 7), Deus entroniza Salomão como rei de todo Israel, concedendo-lhe o favor de sua Graça. Estava Salomão, jovem monarca, a oferecer sacrifícios no alto de Gabaon (logicamente Salomão ainda não havia construído o Templo de Jerusalém, por isso faziam holocaustos em lugares elevados). O Senhor, em sonho, comunica-se com ele. Percebamos que Deus não utiliza intérprete, mas fala-lhe, ainda que seja em um sonho, bem diferente do que acontecera antes com o seu pai e antecessor Davi. Deus concede um pedido a Salomão. Naturalmente, este tinha na consciência a grande missão que o esperava: suceder a um rei tão amado pelo povo, bem como reinar sobre um grande número de súditos: os eleitos de Deus. Salomão é cônscio das dificuldades que a arte de governar possui. Somente a sabedoria dada pelo Altíssimo poderá auxiliá-lo na consecução daquilo de que fora incumbido. O rei sabe que aquele povo que lhe é oferecido para o governo não é seu, é de Deus; sabe ainda que o próprio Senhor é o verdadeiro Rei de Israel, sendo-lhe apenas um instrumento, um representante. Portanto, desapontar o povo é desagradar a Deus. 

Vendo a beleza da oração de Salomão, percebendo a pureza dos seus anseios, que não almejou riquezas, longevidade, poderio bélico, Deus lhe concede a sabedoria para a prática da justiça, bem como tudo aquilo que Salomão não pediu, mas que é próprio de um justo aos olhos do Senhor: a prosperidade em seus intentos. A necessidade de uma ajuda do alto é também traduzida pela eucologia da Oração de Coleta: “Ó Deus, sois o amparo dos que em vós esperam e, sem vosso auxílio, ninguém é forte, ninguém é santo”. Salomão esperou no Senhor, fazendo-se amparado por Ele, por isso, seu reinado não foi marcado somente pelo desenvolvimento econômico e social, mas por uma estabilidade nunca antes vista em Israel. Com tal observação, não queremos fazer uma apologia à Teologia da Prosperidade, divulgada por algumas seitas protestantes, mas o Senhor nos recompensa conforme as nossas obras, este galardão pode ser iniciado até mesmo no âmbito material: a providência de Deus tarda, mas não falha, tal como costumeiramente ouvimos no dito popular. E a Coleta ainda continua: “[...] redobrai de amor para conosco, para que, conduzidos por vós, usemos de tal modo os bens que passam, que possamos abraçar os que não passam”. Assim, caríssimos, se somos impulsionados pela sabedoria do Alto – manifestação de seu amor – saberemos ser prudentes no uso daquilo que nos é disposto como materialidade a fim de alcançarmos um sublime desenvolvimento espiritual: pelos bens transitórios, ganharmos os eternos: “Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos céus” (Mt 5, 20).

No Evangelho de hoje, temos o último trecho do capítulo XIII do Evangelho de Mateus. Como dissemos no domingo passado, este pedaço do escrito de São Mateus é conhecido como ‘sermão das parábolas do Reino’. Hoje, com quatro imagens distintas, Jesus apresenta comparativos de como ansiar o Reino.

Ao tratar o Reino como um tesouro e como as pérolas , percebemos que Jesus faz uma analogia entre o Reino e algo valioso, que apetece os olhos. No mesmo Evangelho de Mateus, no Sermão da Montanha, temos Jesus que afirma: “Porque onde está o teu tesouro, lá também está teu coração” (Mt 6, 21). Logo, ao fazer esta afirmação, induzimos que o Senhor alude que quando temos como tesouro o Reino dos Céus, nosso coração estará nele. Prova disto temos: “Ele vai, vende todos os seus bens e compra aquele campo” (Mt 13, 44). Brilhantemente, São João Crisóstomo comenta: “Agora, para manifestar a formosura e brilho dessa pregação, se vale da parábola do tesouro e da pedra preciosa dizendo: ‘semelhante é o reino dos céus a um tesouro escondido no campo’. Porque a pregação do Evangelho está oculta no mundo, e se não venderdes tudo não o comprardes, e isto o deveis fazer com alegria, e por isso segue: ‘Que quando acha o homem, o esconde’” (Homiliae in Matthaeum, hom. 47,2). Assim, para conseguirmos os tesouros do Reino, que já podem ser encontrados no hoje da Igreja, precisamos nos desfazer de muita coisa que ocupa a nossa disponibilidade para aceitar o Reino com toda a sua inteireza. Se detectarmos que tal pensamento procede em nosso existir, devemos optar pelo caminho da renúncia, do “vender tudo”, inclusive as pseudo-seguranças que possuímos. Trocando em miúdos, a figura do homem somos nós, o tesouro e as pérolas são o Reino e tudo o que ele embute, o campo é o mundo. O tesouro e as pérolas já estão no mundo, basta procurarmo-las. E, quando as encontrarmos, tenhamos coragem de nos privar de todos os outros bens para conseguirmos aquelas preciosidades. Quem age desta forma não perde, mas lucra imensamente.





Em um terceiro momento, Jesus afirma que “o Reino dos Céus é ainda como uma rede lançada ao mar e que apanha peixes de todo o tipo” (Mt 13, 47). Ora, todos são chamados à participação do Reino do Senhor, tal como uma rede varredeira que, em si, não seleciona os peixes que os pescadores querem fisgar. Muitas vezes, temos a ligeira impressão de que, tal como aludia o Evangelho de domingo passado, o malévolos estão misturados no campo do mundo com os justos (“o joio com o trigo”), e que a justiça de Deus está adormecida e longínqua. É ledo engano! Ao tirar a rede (Reino) do mar (mundo), os pescadores (anjos), na orla do mar (fim dos tempos), separarão os peixes bons (pessoas justas, que esmeradamente buscam o Reino) colocando-os em cestos (consumação do Reino, o Céu) e jogarão (mandar para o inferno) os que não servirão (pessoas que se comprazem em praticar o mal, não procurando, com toda a sua possibilidade, o Reino). Estamos nesta rede, fomos convidados para a realidade do Reino, do “já” e do “ainda não”: Reino de Deus é a Igreja! Neste sentido, nos afirma São Gregório Magno:


“Se compara a Igreja Santa a uma rede porque tem sido entregue a uns pescadores, e todos mediante ela são arrastados as orlas da vida presente ao reino eterno, a fim de que pereçam submergidos no abismo da morte eterna. Esta Igreja reúne toda classe de peixes, porque chama para perdoá-los a todos os homens, aos sábios e aos insensatos, aos livres e aos escravos, aos ricos e aos pobres, aos fortes e aos débeis. Estará completamente cheia a rede, isto é, a Igreja quando ao fim dos tempos estiver terminado o destino do gênero humano. Por isso segue: “A qual quando está cheia”, etc., porque assim como o mar representa o mundo, assim também a beira do mar figura o fim do mundo, e é neste momento quando são escolhidos e guardados em cestos os bons, e os maus são lançados fora. Quer dizer, os eleitos serão recebidos nos tabernáculos eternos, e os maus, depois de terem perdido a luz que iluminava o interior do reino, serão levados às trevas exteriores” (Homiliae in Evangelia, 11,4).


Por fim, Jesus questiona: “Compreendestes tudo isso?” (Mt 13, 51). Ao fazer tal indagação, ele acena que as parábolas, traduções figurativas daquilo que é o Reino dos Céus, devem ser entendidas. Para compreendê-las, bem como para vivê-las, se faz imprescindível a sabedoria, não a insana proveniente do mundo e das suas maquinações, mas uma pura sabedoria, como havia pedido Salomão a Deus na Primeira Leitura. A revelação dos mistérios do Reino aos pequeninos, tal como nos traz a estrofe da Aclamação ao Evangelho, é a manifestação de que a sabedoria é importantíssima para a compreensão do Reino, inclusive, para a busca incondicional deste em nossas vidas. Os discípulos são obrigados a entenderem porque ensinarão estes mistérios com palavras, mas acima de tudo com o seu testemunho (martyria). E o Senhor, a Sabedoria eterna, continua: “Assim, pois, todo o mestre da Lei, que se torna discípulo do Reino dos Céus, é como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas”. Ser seguidor do Senhor é assumir esta atitude de, a partir de um encontro com Ele, fazer uma acurada seleção do que é proveitoso para a participação do Reino e consequente salvação, daquilo que é quinquilharia, obstáculo para o Verdadeiro Bem: Deus. Se formos ousados e criteriosos nesta escolha, teremos a mesma certeza de São Paulo na Segunda Leitura: “Sabemos que tudo contribui para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados para a salvação, de acordo com o projeto de Deus” (Rm 8, 28). E qual é o projeto de Deus? Que todos se salvem, buscando veramente o Reino. Todos, porque Ele ama a todos desde a eternidade, por isso predestina-nos em Cristo, chamando-nos à Salvação pela justificação em Jesus. Logo, nada nos impedirá de buscar e alcançar o Reino dos Céus, porque a tudo renunciamos para ganharmos a plenitude.

Com os sentimentos de pertença ao Reino, desde já, busquemos constantemente alcançá-lo. Que, tenazmente, possamos nos desfazer de tudo o que nos impede de ascendermos ao Reino, que não exclui, mas congrega os eleitos, os que foram salvos pelo sangue de Jesus e, a partir disto, viveram como filhos da luz (cf. 1Ts 5, 5), neste mundo que não raras vezes é de trevas. 
        

O LOUVOR DO SENHOR


             Nas páginas do Evangelho de Mateus, encontramos, dentre tantas outras, uma passagem que revela qual é a predileção do Senhor: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos” (Mt 11, 25).
            Estamos mal-habituados em pensar que a sabedoria está reservada aos que, humanamente falando, são tidos como doutos ou bem formados academicamente. Esquecemo-nos de que ela é proveniente de Deus, e não dos bancos escolares; de que é um dom e não uma mera conquista; e sendo dom é dada gratuitamente, não sendo atraída pela nossa auto-suficiência e arrogância. Por isso, um adjetivo que podemos conceder-lhe, com toda justeza, é o de pura, já que ela é dada aos que se abrem à Graça divina, é fruto do santo temor do Senhor: “É puro o temor do Senhor, imutável para sempre.”
            O verdadeiro sábio é o que possui no coração um sentimento de liberdade, de desapego às coisas e às vãs seguranças, tendo-as como banalidades. Sábio é quem se deixa tocar pelas palavras doces que saem da boca do Senhor, e o reconhece como Aquele que de fato é o alento em meio às tristezas, segurança nas incertezas. Os pequeninos, a quem Jesus exalta como bem-aventurados, são os que possuem um coração indiviso e, assim, o amam: “O temor do Senhor é o princípio do conhecimento; sabedoria e disciplina, os tolos as desprezam.” (Pr 1, 7).
            Neste sentido, tantas são as pessoas simples que no cotidiano de suas vidas manifestam corajosamente a fé pura que têm de forma sincera, homens e mulheres autenticamente piedosos. Não raras também são as que, mesmo iletradas, manifestam uma experiência teologicamente profunda, fruto de uma intimidade profunda com Deus, chegando, com a sabedoria que possuem, a nos desconsertar, principalmente a nós que nos julgamos espertos na Teologia, só porque a estudamos. Agora, se faz entendível a máxima: “Credo ut intelligam” (Creio para entender). O louvor do Senhor é dirigido ao Pai por conta destas pessoas. Elas são teologicamente sensíveis a Deus; são os pobres em espírito ditos por Jesus no Sermão das Bem-Aventuranças: “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5, 3).
            Muitos foram os santos que, numa vida toda cheia de Deus, alcançaram a sabedoria. Como não pensar no exemplo de São Benedito, o Mouro; de Santa Josefina Bakita; de São Juan Diego. Eles, na humildade daquilo que faziam, e humanamente desconhecidos como tal, sentiam o Senhor a quem lhes falava ao coração, revelando-lhes a sua intimidade, infundindo-lhes a sua sabedoria, Ele que é a fonte da Sabedoria. Também, como não ter diante dos olhos as pessoas que são tidas, aos olhos humanos, como sábias, e, com este reconhecimento, não se ensoberbeceram, mas aproveitaram para profusamente mergulharem no mistério de Deus. É inegável o modelo deixado pelos santos Agostinho, Tomás de Aquino, Teresa d’Ávila, Ambrósio, e muitos outros.
            Ser pequenino não é produto de uma inteligência brilhante, fantástica. Ser pequeninos é ser sábio. Ser sábio é ser santo. O pequeno é o predileto de Deus. É aquele que é notado pelo Pai. O que consegue traduzir em vida aquilo que acredita. Por isso, façamos o compromisso de, em tudo, preferirmos ser os menores, os humildes, tendo sempre presente que humildade não é mediocridade. Só assim a sabedoria, dom provindo do alto repousará em nós, e o Senhor nos olhará benigno, como olhou a Virgem Maria: “O Senhor olhou para a pequenez de sua serva” (Lc 1, 48). Se dessa forma perseverarmos, estaremos caminhando pressurosos para a santidade.       

quinta-feira, 14 de julho de 2011

XVI DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano A – 17 de julho de 2011)







        I Leitura: Sb 12, 13.16-19
        Salmo Responsorial: Sl 85 (86), 5-6. 9-10. 15-16 a (R/. 5 a)
        II Leitura: Rm 8, 26-27
        Evangelho: Mt 13, 24-43 (Semente boa e má)



        Queridos irmãos,



         Desde o domingo anterior, estamos refletindo o capítulo XIII do Evangelho de São Mateus. Toda esta passagem é conhecida como o sermão das parábolas. Dessa forma, contemplamos Jesus que – sentado na orla do Mar da Galileia, em Cafarnaum, e utilizando uma linguagem marcada pela simplicidade (inclusive de realidade campestre) – apregoa figurativamente sobre os mistérios do Reino. Hoje, Jesus faz uma comparação inusitada: fala de uma plantação de trigo sabotada pelo semeio de joio.
        Nunca, em toda a história bimilenar do cristianismo, se ouviu falar tanto do Evangelho. Muitas são os inventos de anúncio da Boa-Nova. Isso não significa dizer que a Palavra de Jesus esteja sendo anunciada por quem de fato possui o Depósito da Revelação: a Santa Mãe Católica, a única depositária integral da fé: a ação da Igreja é a ação do próprio Deus, pois ela já é a presença do Reino. Com esta afirmativa, não queremos desmerecer as “fagulhas do Verbo” existentes em outras denominações pseudo-cristãs. O fato é que a semente do Evangelho está sendo lançada, seja por quem é de direito, seja por outrem. Com isso, corremos um sério de risco de pensar que, graças a uma eficácia do anúncio da Palavra, o mundo esteja totalmente evangelizado. Não, não é bem assim.
        Toda cultura ocidental foi construída tendo por base o Evangelho de Jesus fielmente anunciado pela Igreja. Mesmo tendo esta raiz, percebemos que a vivência da Palavra está bem aquém do almejado. Às vezes, parece-nos que o mundo hodierno passa por longe daquilo que fora querido pelo Senhor, eternizado nas páginas da Divina Palavra: Escritura e Tradição. Este pensamento não está errado. Ao tempo em que o Divino Semeador lançou as suas “sementes”, o Maligno espalhou o seu joio (cizânia). Porém, não podemos cair no maniqueísmo – doutrina que prega que o bem e o mal, duas forças antagônicas, estejam em luta constante; sabemos que Cristo, o Eterno Bem, venceu irreversivelmente o mal. No entanto, mesmo com esta certeza o demônio não desiste das suas insídias. O “derrotado” sempre investe contra nós. Pois bem, mesmo sabendo que o seu trabalho está sendo feito em vão, ele insiste.
        O Divino Agricultor lança “boa” semente no seu campo. A Palavra Eterna jamais pode ser tida como uma erva daninha: a bondade é um adjetivo que lhe é peculiar. Aliás, em grego, as palavras bondade e beleza (καλός) são traduzidas como sendo a mesma qualidade. Logo, a Palavra de Deus é dotada de uma beleza maravilhosamente inenarrável. Pois, como alude a Primeira Leitura: “Não há, além de ti, outro Deus que cuide de todas as coisas e a quem devas mostrar que o teu julgamento não foi injusto” (Sb 12, 13). A Palavra Sublime foi derramada profusamente sobre o mundo. O Senhor fez-nos conhecer a sua vontade!
        Ambicionando destruir os planos de Deus que embute no mundo a sua Mensagem Divinal, o Diabo lança a sua semente. Ele assim o faz graças à negligência, não do Sublime Lavrador, mas dos obreiros desta bendita lavoura. No texto em português está: “Enquanto todos dormiam” (Mt 13, 25); enquanto que no original, em grego, afirma-nos: “Enquanto os outros homens dormiam, veio o seu inimigo, semeou cizânia no meio do trigo e partiu” (εν δε τω καθεύδειν τους ανθρώπους ηλθεν αυτου ο εχθρος και επεσπερεν ζιζάνια ανα μέσον του σίτου και). Sobre esta analogia, esclarece-nos Santo Agostinho: “Porque quando os chefes da Igreja agem com negligência, ou quando os apóstolos são visitados pelo sono da morte, vem o diabo e semeia sobre aqueles que o Senhor chama filhos maus” (Quaestiones Evangeliorum, 11). Portanto, a deficiência não está naquele que lavrou, mas nos que foram incumbidos à diligência para com o campo, que, posteriormente, desejarão tomar uma atitude precipitada a fim de impedir o crescimento do número daqueles que se aliarão ao mal, tentando, dessa forma, remediar a situação; não por preguiça ou coisa parecida, muitas das vezes por conta da fragilidade e limitação daqueles que são instituídos pelo Dono da Messe como insignes vigilantes.
         Quando da criação do mundo, Deus transforma o χάος (em grego: desordem) em κόσμος (ordem). O livro do Gênesis deixa transparecer que bastam a presença e Palavra de Deus para as coisas ganharem um sentido. Mais tarde, quando o pecado entra no mundo, ocorre uma espécie de ausência de Deus; é o que mais tarde o próprio Agostinho alude de Privatio boni, privação do bem. O Evangelho, ao falar da dormição dos outros homens, transparece a noite, onde figurativamente há uma ausência de Deus. É o que justamente desenha este termo “enquanto dormiam”, já que nos remete à noite. É neste momento que aparece o inimigo que espalha a sua semente e sai. Sai porque não quer se comprometer de maneira alguma com aqueles que ele arrasta para si; ele apenas quer provocar desordem. Ora, à semente do inimigo o texto grego denomina ζιζάνια, que transliterado: cizânia. Esta é uma semente que, quando germina, a sua planta possui a aparência de trigo, podendo somente a muito custo diferenciá-la. Com isto, caríssimos, quando a noite do pecado (ausência de Deus) sobrepuja o mundo, temos a sensação de que os sêmens do mal são mais numerosos e potentes do que os espalhados por Deus. E ainda mais: temos a pretensão de pensar que as pessoas más e as boas são indistintas; não sabemos diferenciar os que são de Deus (que muitas vezes estão em minoria) e os que são “embaixadores do maligno” no campo chamado mundo.
        O mal é tão vergonhoso e horrendo que utiliza a carapaça de bem para atrair aliados para si. Agostinho, o Santo Bispo de Hipona, continua: “Quando o diabo com seus detestáveis erros e falsas doutrinas tem semeado a cizânia (isto é, tem propagado as heresias valendo-se do nome de Cristo) se oculta com maior cuidado e se faz mais invisível; e isto é o que significa: ‘E se foi’” (Ibidem). Completamos o pensamento agostiniano com São João Crisóstomo: “Com estas palavras nos faz ver que o erro vem depois da verdade, coisa demonstrada pela experiência. Assim, depois dos profetas vieram os falsos profetas; depois dos apóstolos vieram os falsos apóstolos; e depois de Cristo o Anticristo (Homiliae in Matthaeum, hom. 46,1). Ele o “pai da mentira”, portanto, ele nunca vai utilizar a sua real identidade para atrair para si. Aqui, é salutar bastante discernimento, já que em muitas situações o mal vem disfarçado de bem, e, se não tivermos uma prudente certeza, poderemos cair na desventura de trocar o “certo pelo duvidoso”, tal como afirmamos no dito popular. Na atualidade, temos exemplos disso: o crime do assassinato do aborto ser tido como direito de quem o pratica; a desonestidade ser tida como valor; a utilização de máximas evangélicas (como o “Amai-vos uns aos outros”) como slogans de passeatas gays, inclusive numa vã tentativa de fundamentá-la na Sagrada Escritura; o despudor ser tido como moda; guerras e cenas de violências praticadas em nome de Deus, justificadas em nome de uma religião; a Palavra do Evangelho ser tida como um meio de enriquecimento monetário; pessoas enganadas por falsas igrejas que pregam benefícios materiais e uma vida mansa; dentre outras ilustrações. O que seria isto senão um crescimento do joio no meio do trigo; de um revestimento do mal ao tempo em que igualmente cresce o anúncio do Reino? O mesmo mundo que é capaz de gerar cristãos autênticos faz brotar, graças às ideologias demoníacas em voga, “pessoas que se comprazem em praticar o mal” (Sl 5, 7).
        Deus, em sua eterna paciência, não assiste passivo a esta situação: Ele apenas deixa acontecer. Não podemos nos abater pelo desespero porque “No Dia do Senhor”, como nos atenta alguns profetas e o próprio Apocalipse de São João, todos terão a sua recompensa: os que são seus irão para a Vida Eterna, enquanto os que pertencerem ao diabo irão para o castigo eterno (cf. Mt 25, 46). Ouviremos o Senhor da Messe: “Deixai crescer um e outro até a colheita! E, no tempo da colheita, direi aos que cortam o trigo [ou seja: aos anjos]: arrancai primeiro o joio e amarrai-o em feixes para ser queimado! Recolhei, porém, o trigo em meu celeiro!” (Mt 13, 30). Prestemos atenção na força de linguagem utilizada por Jesus para falar do joio: “arrancai” – puxai energicamente, pois ele está apegado ao mundo (terra); “amarrai em feixes” – tratai-o como algo qualquer que não possui nobreza alguma, tampouco merece ser dispensada a atenção; “queimai” – fazei com que a sua lembrança seja exterminada, reduza-se a cinzas, só assim, o mal não voltará a se alastrar. Já com o trigo: “recolhei” – tratai com delicadeza, com atenção; “em meu celeiro” – local onde é destinada toda a produção de um trabalho. Todos nós sabemos o que, parabolicamente, se identifica com celeiro: o Céu. É nele que são reunidas todas as riquezas do Divino Agricultor.
        Ainda fazendo jus à paciência de Deus, Jesus conta mais uma parábola: a da semente de mostarda. Com ela, podemos sabiamente confundir a figura do sinal do Reino com a da fé dos crentes em Deus que atraem tantos para uma amizade profunda com Ele. Assim, a fé do que crê torna-se um referencial de esperança para muitos. Ao analisarmos a história, vemos como homens simples, mas repletos dos germens da Palavra de Deus, transformaram o mundo; os apóstolos, sendo sinais do Reino, sendo mais sobranceiros do que outras “vegetações”, trouxeram muitos para a “copa” desta grandiosa árvore: o Reino que um dia foi semente germinada no coração pela Senhor e regada pela fé.
        O Reino de Deus não cresce repentinamente. Ele vai “fermentando” pessoas e estruturas. Aqui, nos referimos a terceira imagem parabólica oferecida por Jesus no Evangelho de hoje. Em um exemplo tronco, poderíamos compará-lo a uma espécie de vírus (bendito vírus!) que vai se alastrando silenciosamente e, quando menos se espera, se manifesta em todo o corpo. A dinâmica do Reino se baseia na minúcia certeira, porém profunda, que sobreleva e contagia. Ainda que seus efeitos venham à surdina, sem estardalhaços, mas, quando menos se espera, aparece cheio de vigor. Na História da Igreja evidenciamos como o cristianismo cresceu vertiginosamente em todos os cantos aonde chegou a doutrina apostólica.
        Com estas parábolas, o Amável Mestre traduz, com uma linguagem que preza pela simplicidade e profundidade, os mistérios do Reino. Para isto, já nos acenava a estrofe da Aclamação ao Evangelho: “Eu te louvo, ó Pai, Santo, Deus do céu, Senhor da terra: os mistérios do teu Reino aos pequenos, Pai, revelas” (cf. Mt 11, 25). Todo o nosso entendimento da Palavra não é fruto de nossa razão apenas, mas desta guiada pelos nuances do Espírito de Deus. É ele quem nos dá o entendimento; Ele é quem nos fortalece para correspondermos aos desígnios do Pai, para entrarmos em seu Reino: “O Espírito vem em socorro da nossa fraqueza” (Rm 8, 26), tal como nos orienta São Paulo na Segunda Leitura, em sua catequese pneumatológica. Somos os pequenos, os que nada entendem; Jesus é o nosso pedagogo, trazindo-nos os elevados mistérios do Reino do Pai. Basta-nos deixar conduzir pelo Paráclito – o qual intercede por nós, os santos, os “trigos do campo do Senhor” – que chegaremos ao eternal celeiro para nós reservado – o Céu.