(Ano B – 15 de abril de 2012)
I Leitura: At 4,
32-35
Salmo Responsorial:
Sl 117 (118), 2-4.16ab-18.22-24 (R/.1)
II Leitura: 1Jo 5,1-6
Evangelho: Jo
20,19-31 (Tomé)
Queridos irmãos,
Com este Domingo encerramos a Oitava Pascal. Também
tradicionalmente cognominado Dominica in
Albis (Domingo de branco), este dia da Oitava era a data em que os
neófitos, já participantes da comunidade dos fiéis, retiravam as suas vestes
batismais, as suas roupas brancas, pelo menos enquanto indumentária. Prática
que remonta desde os tempos de Santo Ambrósio, ou seja, séculos III-IV. Esta
deposição se dava na igreja romana de São Pancrácio que, com a tenra idade de
doze anos, deu ao mundo o seu testemunho de fé no Senhor com o seu martírio.
Com tal atitude nesta igreja estacional (estacional porque a cada dia da semana
da Oitava da Páscoa os que, em Roma, receberam o Batismo na noite pascal eram
conduzidos para um determinado templo, daí serem chamados statio), a Mater Ecclesia
queria ensinar os seus filhos recém-nascidos para a fé através da graça
batismal o quão é necessário confessar o nome do Senhor. Por este motivo, a
Antífona de Entrada nos introduz nesta realidade: “Como crianças
recém-nascidas, desejai o puro leite para crescerdes na salvação, aleluia!”
(1Pd2,2). É deste introito que podemos extrair uma segunda cognominação para
este domingo através da sua récita ou canto na língua latina: “Quasi modo géniti infantes, allelúia:
rationábiles, sine dolo lac concupíscite, allelúia, allelúia, allelúia”. Logo,
um outro nome dado a este domingo é o de Dominica
Quasi Modo. É ainda no dia de hoje que a última prece é dirigida a Deus
pelos neófitos através da comunidade que apresentou os seus catecúmenos para o
batismo na Vigília Pascal: “Acolhei, ó Deus, as oferendas do vosso povo e dos
que renasceram nesta Páscoa, para que, renovados pela profissão de fé e pelo
batismo, consigamos a eterna felicidade” (Oração sobre as oferendas); ou a que
enfatiza o banho batismal: “Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé
do vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes. E
fazei que compreendamos melhor o batismo que nos lavou, e o sangue que nos
redimiu” (Oração de Coleta).
Na Liturgia da Palavra, logo na Primeira Leitura, temos o
que vulgarmente se apelida nos Atos dos Apóstolos de ‘o retrato das primeiras
comunidades’. Interessantíssima a forma com a qual a Igreja, pedagogicamente,
nos conduz pelas sendas do mistério através do espírito da Sagrada Liturgia:
após fazer novos filhos de Deus pelo Batismo, ela, como Mestra, aponta, não
somente para os novos cristãos como também para nós que já trilhamos a fé há
tempos relativamente largos, como se fundavam as proto-comunidades cristãs,
demonstrando-nos os sentimentos que eram vividos aí: assiduidade em uma oração
concorde o que poderíamos chamar de piedade (cf. At 2, 42), partilha e comunhão
– em grego koinonia (cf. v. 44-46),
audiência à Palavra de Deus e aos ensinamentos da Igreja (cf. v. 42; 1Cor 15,
11). Esta se torna uma fórmula infalível para uma manifesta percepção de
crescimento da comunidade dos seguidores de Jesus. Se os novos cristãos
adentrarem nas soleiras da Comunidade dos Eleitos já com este pensamento,
manifestam o seu desejo íntimo de, como crianças recém-nascidas na fé,
desejarem “o puro leite espiritual para o crescimento na salvação”, tal como nos
menciona a Antífona de Entrada para esta celebração extraída da Primeira Carta
de São Pedro. E se nós perseguirmos fielmente tal intento, como supostos
cristãos amadurecidos, estaremos fazendo o que a Carta aos Hebreus nos ordena:
“o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que a experiência já
exercitou na distinção do bem e do mal” (Hb 5,14).
Neste Domingo da Divina Misericórdia, o Salmo Responsorial
ressalta a misericórdia do Senhor. Bondade e misericórdia (tal como entoa o
salmo) são atributos do amor do Senhor. E com qual desígnio benevolente o
Senhor revelou o seu amor com maior profundidade senão pela regeneração do
homem pela Cruz de seu Filho? O mistério de nossa redenção é uma prova
estupenda da misericórdia do Senhor. O que fizemos por merecê-la? Nada,
absolutamente nada! Por isso, o mistério pascal é ocasião muito mais que
propícia para recordar a caridade do Senhor para conosco. Entendamos por
caridade aquilo que o termo latino inspira de fato: um amor desinteressado. O
Beato João Paulo II, em sua Carta Encíclica Dives
in misericórdia, afirma: “Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca
da misericórdia, com aquela totalidade com que ela foi revelada na história da
nossa salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final
que, especialmente na linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale (mistério pascal). […] O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e atuação da
misericórdia, capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça como
realização do desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido
realizar no homem e, por meio do homem, no mundo. Cristo, ao sofrer, interpela
todo e cada homem e não apenas o homem crente. Até o homem que não crê poderá
descobrir nele a eloquência da solidariedade com o destino humano, bem como a
harmoniosa plenitude da dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e
ao amor. A dimensão divina do mistério pascal situa-se, todavia, numa
profundidade ainda maior. A cruz erguida sobre o Calvário, na qual Cristo
mantém o seu último diálogo com o Pai, brota do âmago mais íntimo do amor, com que o homem, criado à
imagem e semelhança de Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o
eterno desígnio divino” (n. 7).
São João, na Segunda Leitura, ressalta-nos que a
caridade com o próximo é a medida dos mandamentos ao mesmo tempo em que o
cumprimento dos mandamentos é medida da caridade. Poderíamos ir mais adiante em
afirmar que o amor ao próximo é critério indispensável para averiguarmos a
nossa comunhão com Deus: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é
mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a
Deus, a quem não vê. Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame
também a seu irmão” (1Jo 4, 20-21). A nossa união com Deus e com os irmãos é um
produto da fé em Nosso Senhor. A fé abraçada convictamente, pelo Batismo, nos
torna filhos de Deus. Somente a fé em Jesus nos é capaz de dar forças para
vencermos o mundo e as suas armadilhas. Importante saber que, em síntese, a fé
no Cristo gera o amor, e este, conseguintemente, “cobre uma multidão de
pecados” (1Pd 4, 8).
O Evangelho de hoje, riquíssimo em detalhes,
apresenta-nos elementos diversos dos quais podemos extrair alguns pontos para a
nossa reflexão. Em primeiro lugar, observamos, nesta narrativa, que o Senhor
Ressuscitado aparece aos seus (com exceção de Tomé) no dia de Páscoa, ou seja,
“ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (Jo 20, 19). Esta prática de
Jesus de aparecer primordialmente em tal dia será um marco que perpassará toda
a vida da comunidade cristã de todas as épocas. Assim, o ‘primeiro dia da
semana’ é o Dies Domini (Dia do
Senhor) por excelência, e, portanto, da comunidade. Não é mais o sétimo, mas o
primeiro dia da semana, o Oitavo Dia, que será o tempo especial de encontrar-se
com Deus e com os irmãos. Posteriormente, temos uma observação premente feita
por São João: “estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde
os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles […]” (v.
19). Este contraste entre medo dos discípulos e o colocar-se do Senhor no meio
dos seus quer nos mostrar que o Cristo ressuscitado não cessará de acompanhar a
sua Igreja, conduzindo-a pelos Apóstolos. Dessa forma, o Ressuscitado cumpre o
que prometera: “Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei
comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais […] Não vos deixarei
órfãos. Voltarei a vós. Ainda um pouco de tempo e o mundo já não me verá. Vós,
porém, me tornareis a ver, porque eu vivo e vós vivereis” (Jo 14, 3.18-19); e ainda: “Ainda um pouco de tempo, e já me não
vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver, porque vou para
junto do Pai” (Jo 16,16); ou como o Senhor assegura no Evangelho de Mateus: “Eis
que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). Em São João,
a presença do Senhor é sinônima de paz, daí a sua saudação: “A paz esteja
convosco” (v. 19. 21. 26). Esta mesma presença portadora de paz repelirá o
incômodo do medo dos discípulos.
Ao frisar que Jesus mostra-lhes o lado, São João
quer sublinhar que há uma continuidade entre o Jesus sofredor da Cruz e o
Senhor glorioso que se lhes apresentava naquele instante e que permaneceria
junto deles, confortando-os nas diversas agruras que a Igreja e os seus filhos
enfrentariam, a começar pelos Apóstolos que se alegraram por se encontrarem com
Jesus Ressuscitado. Daqui, poderemos extrair uma formidável lição: se cremos na
força de Jesus vivo e ressuscitado, o mesmo Cristo crucificado, teremos as
condições essenciais para enfrentar os desafios que a vida nos impõe com
alegria e justa satisfação de estar padecendo tudo por amor a Deus, tal como um
sacrifício de suave odor: “Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas
afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por
amor de Cristo. Porque quando me sinto fraco, então é que sou forte” (2Cor
12,10).
Jesus envia os seus discípulos e lhes sopra o
Espírito, o poder do Ressuscitado é transmitido à Sua Igreja. Assim,
compreendemos que a missão da Igreja se insere, justamente, na missão de Jesus;
a Igreja é continuadora da missão do Senhor. O insuflar do Espírito remete-nos
à ideia de que Jesus, com a sua ressurreição, promove uma nova criação, da qual
fazemos parte. Aqui, São João utiliza o mesmo verbo grego (ὲνεφύσησεν) que fora
utilizado em Gn 2, 7, o que equivale a insuflar: “O
Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas
um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Esta atitude de soprar o
Espírito, doando-lhe para a Igreja, está presente também na cruz, quando o
Senhor, expirando, entrega o Espírito. Esta concessão coadunada em dois
momentos bastante unidos é o que os estudiosos da Sagrada Escritura apelidam de
‘pentecostes de João’. Assim João quer sugerir que, somente com a sua Páscoa,
Jesus pode dar o Espírito ao mundo, a Igreja. O Espírito é poder de salvação
que os discípulos manifestarão em comunhão com Jesus, por isso, somente com o
Espírito dado por Ele, é que a Igreja é a única que possui o poder de perdoar
os pecados, emendando as almas ao seu Senhor.
Um trecho que nos salta aos olhos é o que se refere a Tomé,
o mesmo que disse, não acreditando no testemunho daqueles que, por primeiro,
viram o Senhor Ressuscitado: “Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos,
se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não
acreditarei” (v. 25). Jesus, ao aparecer uma segunda vez –agora Tomé estando
presente –, satisfaz-lhe os desejos. Tomé duvida do testemunho daqueles que,
juntamente com ele, fazem parte da Igreja. A mesma Igreja que, após tantos
séculos anunciando uma verdade que lhe é fundamental, a ressurreição de Jesus,
é tantas vezes desacreditada e posta em dúvida, inclusive no seu testemunho
pascal, por nossa fé fraca e vacilante.
Diante da repreensão de Jesus ao apresentar-se tal como
queria Tomé, o incrédulo exclama: “Dominus
meus et Deus meus” – Meu Senhor e meu Deus (Jo 20, 28), reconhecendo a divindade e o senhorio do Ressuscitado. O
Senhor não para na censura a Tomé, mas tece um elogio: “Acreditaste, porque me
viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (v. 29). A quem se
dirigia tal saudação senão a nós, crentes? (Pelo menos supomos que temos fé no
Senhor). Assim, ao apresentar-nos tal Evangelho neste Domingo in Albis, a Igreja quer nos mostrar, como batizados, que
Ela é a comunidade bem-aventurada dos creem em Jesus morto e ressuscitado, de
cuja pertença fazemos parte. Por este motivo, o Evangelista termina esta
perícope afirmado: “Jesus realizou muitos outros sinais que não estão escritos
neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo,
o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v. 30-31).
Que a Luz do Ressuscitado sempre nos inspire no
testemunho autêntico e existencial da sua e da nossa Páscoa.
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