sábado, 14 de abril de 2012

II DOMINGO DA PÁSCOA OU DA DIVINA MISERICÓRDIA


(Ano B – 15 de abril de 2012)



I Leitura: At 4, 32-35
Salmo Responsorial: Sl 117 (118), 2-4.16ab-18.22-24 (R/.1)
II Leitura: 1Jo 5,1-6
Evangelho: Jo 20,19-31 (Tomé)



Queridos irmãos,



Com este Domingo encerramos a Oitava Pascal. Também tradicionalmente cognominado Dominica in Albis (Domingo de branco), este dia da Oitava era a data em que os neófitos, já participantes da comunidade dos fiéis, retiravam as suas vestes batismais, as suas roupas brancas, pelo menos enquanto indumentária. Prática que remonta desde os tempos de Santo Ambrósio, ou seja, séculos III-IV. Esta deposição se dava na igreja romana de São Pancrácio que, com a tenra idade de doze anos, deu ao mundo o seu testemunho de fé no Senhor com o seu martírio. Com tal atitude nesta igreja estacional (estacional porque a cada dia da semana da Oitava da Páscoa os que, em Roma, receberam o Batismo na noite pascal eram conduzidos para um determinado templo, daí serem chamados statio), a Mater Ecclesia queria ensinar os seus filhos recém-nascidos para a fé através da graça batismal o quão é necessário confessar o nome do Senhor. Por este motivo, a Antífona de Entrada nos introduz nesta realidade: “Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite para crescerdes na salvação, aleluia!” (1Pd2,2). É deste introito que podemos extrair uma segunda cognominação para este domingo através da sua récita ou canto na língua latina: “Quasi modo géniti infantes, allelúia: rationábiles, sine dolo lac concupíscite, allelúia, allelúia, allelúia”. Logo, um outro nome dado a este domingo é o de Dominica Quasi Modo. É ainda no dia de hoje que a última prece é dirigida a Deus pelos neófitos através da comunidade que apresentou os seus catecúmenos para o batismo na Vigília Pascal: “Acolhei, ó Deus, as oferendas do vosso povo e dos que renasceram nesta Páscoa, para que, renovados pela profissão de fé e pelo batismo, consigamos a eterna felicidade” (Oração sobre as oferendas); ou a que enfatiza o banho batismal: “Ó Deus de eterna misericórdia, que reacendeis a fé do vosso povo na renovação da festa pascal, aumentai a graça que nos destes. E fazei que compreendamos melhor o batismo que nos lavou, e o sangue que nos redimiu” (Oração de Coleta).


Na Liturgia da Palavra, logo na Primeira Leitura, temos o que vulgarmente se apelida nos Atos dos Apóstolos de ‘o retrato das primeiras comunidades’. Interessantíssima a forma com a qual a Igreja, pedagogicamente, nos conduz pelas sendas do mistério através do espírito da Sagrada Liturgia: após fazer novos filhos de Deus pelo Batismo, ela, como Mestra, aponta, não somente para os novos cristãos como também para nós que já trilhamos a fé há tempos relativamente largos, como se fundavam as proto-comunidades cristãs, demonstrando-nos os sentimentos que eram vividos aí: assiduidade em uma oração concorde o que poderíamos chamar de piedade (cf. At 2, 42), partilha e comunhão – em grego koinonia (cf. v. 44-46), audiência à Palavra de Deus e aos ensinamentos da Igreja (cf. v. 42; 1Cor 15, 11). Esta se torna uma fórmula infalível para uma manifesta percepção de crescimento da comunidade dos seguidores de Jesus. Se os novos cristãos adentrarem nas soleiras da Comunidade dos Eleitos já com este pensamento, manifestam o seu desejo íntimo de, como crianças recém-nascidas na fé, desejarem “o puro leite espiritual para o crescimento na salvação”, tal como nos menciona a Antífona de Entrada para esta celebração extraída da Primeira Carta de São Pedro. E se nós perseguirmos fielmente tal intento, como supostos cristãos amadurecidos, estaremos fazendo o que a Carta aos Hebreus nos ordena: “o alimento sólido é para os adultos, para aqueles que a experiência já exercitou na distinção do bem e do mal” (Hb 5,14).


Neste Domingo da Divina Misericórdia, o Salmo Responsorial ressalta a misericórdia do Senhor. Bondade e misericórdia (tal como entoa o salmo) são atributos do amor do Senhor. E com qual desígnio benevolente o Senhor revelou o seu amor com maior profundidade senão pela regeneração do homem pela Cruz de seu Filho? O mistério de nossa redenção é uma prova estupenda da misericórdia do Senhor. O que fizemos por merecê-la? Nada, absolutamente nada! Por isso, o mistério pascal é ocasião muito mais que propícia para recordar a caridade do Senhor para conosco. Entendamos por caridade aquilo que o termo latino inspira de fato: um amor desinteressado. O Beato João Paulo II, em sua Carta Encíclica Dives in misericórdia, afirma: “Se quisermos exprimir totalmente a verdade acerca da misericórdia, com aquela totalidade com que ela foi revelada na história da nossa salvação, devemos penetrar de maneira profunda nesse acontecimento final que, especialmente na linguagem conciliar, é definido como mysterium paschale (mistério pascal). […] O mistério pascal é o ponto culminante da revelação e atuação da misericórdia, capaz de justificar o homem, e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que Deus, desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no mundo. Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem crente. Até o homem que não crê poderá descobrir nele a eloquência da solidariedade com o destino humano, bem como a harmoniosa plenitude da dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor. A dimensão divina do mistério pascal situa-se, todavia, numa profundidade ainda maior. A cruz erguida sobre o Calvário, na qual Cristo mantém o seu último diálogo com o Pai, brota do âmago mais íntimo do amor, com que o homem, criado à imagem e semelhança de Deus, foi gratuitamente beneficiado, de acordo com o eterno desígnio divino” (n. 7). 


São João, na Segunda Leitura, ressalta-nos que a caridade com o próximo é a medida dos mandamentos ao mesmo tempo em que o cumprimento dos mandamentos é medida da caridade. Poderíamos ir mais adiante em afirmar que o amor ao próximo é critério indispensável para averiguarmos a nossa comunhão com Deus: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê. Temos de Deus este mandamento: o que amar a Deus, ame também a seu irmão” (1Jo 4, 20-21). A nossa união com Deus e com os irmãos é um produto da fé em Nosso Senhor. A fé abraçada convictamente, pelo Batismo, nos torna filhos de Deus. Somente a fé em Jesus nos é capaz de dar forças para vencermos o mundo e as suas armadilhas. Importante saber que, em síntese, a fé no Cristo gera o amor, e este, conseguintemente, “cobre uma multidão de pecados” (1Pd 4, 8).


O Evangelho de hoje, riquíssimo em detalhes, apresenta-nos elementos diversos dos quais podemos extrair alguns pontos para a nossa reflexão. Em primeiro lugar, observamos, nesta narrativa, que o Senhor Ressuscitado aparece aos seus (com exceção de Tomé) no dia de Páscoa, ou seja, “ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana” (Jo 20, 19). Esta prática de Jesus de aparecer primordialmente em tal dia será um marco que perpassará toda a vida da comunidade cristã de todas as épocas. Assim, o ‘primeiro dia da semana’ é o Dies Domini (Dia do Senhor) por excelência, e, portanto, da comunidade. Não é mais o sétimo, mas o primeiro dia da semana, o Oitavo Dia, que será o tempo especial de encontrar-se com Deus e com os irmãos. Posteriormente, temos uma observação premente feita por São João: “estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles […]” (v. 19). Este contraste entre medo dos discípulos e o colocar-se do Senhor no meio dos seus quer nos mostrar que o Cristo ressuscitado não cessará de acompanhar a sua Igreja, conduzindo-a pelos Apóstolos. Dessa forma, o Ressuscitado cumpre o que prometera: “Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais […] Não vos deixarei órfãos. Voltarei a vós. Ainda um pouco de tempo e o mundo já não me verá. Vós, porém, me tornareis a ver, porque eu vivo e vós vivereis” (Jo 14, 3.18-19);  e ainda: “Ainda um pouco de tempo, e já me não vereis; e depois mais um pouco de tempo, e me tornareis a ver, porque vou para junto do Pai” (Jo 16,16); ou como o Senhor assegura no Evangelho de Mateus: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28, 20). Em São João, a presença do Senhor é sinônima de paz, daí a sua saudação: “A paz esteja convosco” (v. 19. 21. 26). Esta mesma presença portadora de paz repelirá o incômodo do medo dos discípulos.


Ao frisar que Jesus mostra-lhes o lado, São João quer sublinhar que há uma continuidade entre o Jesus sofredor da Cruz e o Senhor glorioso que se lhes apresentava naquele instante e que permaneceria junto deles, confortando-os nas diversas agruras que a Igreja e os seus filhos enfrentariam, a começar pelos Apóstolos que se alegraram por se encontrarem com Jesus Ressuscitado. Daqui, poderemos extrair uma formidável lição: se cremos na força de Jesus vivo e ressuscitado, o mesmo Cristo crucificado, teremos as condições essenciais para enfrentar os desafios que a vida nos impõe com alegria e justa satisfação de estar padecendo tudo por amor a Deus, tal como um sacrifício de suave odor: “Eis por que sinto alegria nas fraquezas, nas afrontas, nas necessidades, nas perseguições, no profundo desgosto sofrido por amor de Cristo. Porque quando me sinto fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10).


Jesus envia os seus discípulos e lhes sopra o Espírito, o poder do Ressuscitado é transmitido à Sua Igreja. Assim, compreendemos que a missão da Igreja se insere, justamente, na missão de Jesus; a Igreja é continuadora da missão do Senhor. O insuflar do Espírito remete-nos à ideia de que Jesus, com a sua ressurreição, promove uma nova criação, da qual fazemos parte. Aqui, São João utiliza o mesmo verbo grego (ὲνεφύσησεν) que fora utilizado em Gn 2, 7, o que equivale a insuflar: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente”. Esta atitude de soprar o Espírito, doando-lhe para a Igreja, está presente também na cruz, quando o Senhor, expirando, entrega o Espírito. Esta concessão coadunada em dois momentos bastante unidos é o que os estudiosos da Sagrada Escritura apelidam de ‘pentecostes de João’. Assim João quer sugerir que, somente com a sua Páscoa, Jesus pode dar o Espírito ao mundo, a Igreja. O Espírito é poder de salvação que os discípulos manifestarão em comunhão com Jesus, por isso, somente com o Espírito dado por Ele, é que a Igreja é a única que possui o poder de perdoar os pecados, emendando as almas ao seu Senhor.


Um trecho que nos salta aos olhos é o que se refere a Tomé, o mesmo que disse, não acreditando no testemunho daqueles que, por primeiro, viram o Senhor Ressuscitado: “Se eu não vir as marcas dos pregos em suas mãos, se eu não puser o dedo nas marcas dos pregos e não puser a mão no seu lado, não acreditarei” (v. 25). Jesus, ao aparecer uma segunda vez –agora Tomé estando presente –, satisfaz-lhe os desejos. Tomé duvida do testemunho daqueles que, juntamente com ele, fazem parte da Igreja. A mesma Igreja que, após tantos séculos anunciando uma verdade que lhe é fundamental, a ressurreição de Jesus, é tantas vezes desacreditada e posta em dúvida, inclusive no seu testemunho pascal, por nossa fé fraca e vacilante.


Diante da repreensão de Jesus ao apresentar-se tal como queria Tomé, o incrédulo exclama: “Dominus meus et Deus meus” – Meu Senhor e meu Deus (Jo 20, 28), reconhecendo a divindade e o senhorio do Ressuscitado. O Senhor não para na censura a Tomé, mas tece um elogio: “Acreditaste, porque me viste? Bem-aventurados os que creram sem terem visto!” (v. 29). A quem se dirigia tal saudação senão a nós, crentes? (Pelo menos supomos que temos fé no Senhor). Assim, ao apresentar-nos tal Evangelho neste Domingo in Albis, a Igreja quer nos mostrar, como batizados, que Ela é a comunidade bem-aventurada dos creem em Jesus morto e ressuscitado, de cuja pertença fazemos parte. Por este motivo, o Evangelista termina esta perícope afirmado: “Jesus realizou muitos outros sinais que não estão escritos neste livro. Mas estes foram escritos para que acrediteis que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais a vida em seu nome” (v. 30-31).


Que a Luz do Ressuscitado sempre nos inspire no testemunho autêntico e existencial da sua e da nossa Páscoa.

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