domingo, 30 de outubro de 2011

COMEMORAÇÃO DE TODOS OS FIÉIS DEFUNTOS



“A RESIGNAÇÃO DOS QUE FICAM É A CERTEZA DE QUE OS BONS ESTÃO NA CASA DE DEUS”




Queridos irmãos,


Acredito que foi no ano de 2003 (muito embora a data pouco importe de fato), ao fazer um trabalho escolar no Cemitério Senhor do Bonfim, na cidade de Lagarto, encontrei um belíssimo mausoléu revestido de um granito tirado a cor rubi, encimado com uma belíssima escultura da La Pietà e uma inscrição em uma placa de bronze: “A resignação dos que ficam é a certeza de que os bons estão na Casa de Deus”. Esta ficou gravada em minha mente e, por ocasião da morte de algum ente querido, sempre me serve de consolo. Ora, a frase da qual estamos falando é uma sintetização bem feita da esperança cristã acerca da morte.


O dia de hoje insere-se dentro da realidade da Solenidade de Todos os Santos. Santos são todos aqueles que viveram de tal forma unidos a Deus que, no ocaso de sua vida, alcançaram o prêmio eterno, a coroa imarcescível da glória. Por isso, a Igreja nomina a comemoração de hoje como dos fiéis defuntos, já que obtendo este adjetivo, hoje, merecem gozar de uma eternidade feliz e a celebra um dia após o 1º de novembro.


Ao celebrarmos a Comemoração dos Fiéis Defuntos, cuja fama é conhecida como Dia de Finados, os cristãos são convidados a um tríplice movimento de fé. O primeiro se pontua na realidade da vitória de Cristo sobre o Pecado e a Morte. Esta primordial certeza nos abastece de esperança, pois, “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé [...] E se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados” (1Cor 15,14.17). Logo, podemos perceber que esta memória litúrgica possui um laço bastante forte com a Páscoa. A partir desta afirmativa, adentramos no segundo movimento: A Páscoa (passagem) dos que já nos precederam. Cronologicamente, tantos nos antecederam na viagem rumo à Pátria dos Bem-Aventurados, o Céu. Neste sentido, a partir da redenção operada por Cristo Jesus, a morte (cuja visão era a de castigo por conta do pecado) ganha um sentido novo: a de ingresso na Vida Eterna. Santa Teresa de Lisieux, no leito de sua morte, afirma: “Eu não morro, entro na vida”. Esta verdade deve servir-nos de consolo se nos lamentamos com a perda trazida pela morte. No terceiro movimento da fé cristã, estamos nós. Nesta dimensão, somos convidados a lembrar-nos de que o nosso dia também chegará; será a nossa páscoa, nosso encontro com o Senhor. Este ingresso, esta passagem (Páscoa), em Cristo, não é mais amparada pelo pecado, mas pelo poder de sua Cruz: “Se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,8). Destarte, a morte para o fiel cristão é a consumação da nossa pertença a Cristo, pois obteremos a visão beatífica: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é” (1Jo 3,2).


Sim somos convidados, no dia de finados, a pensar na nossa realidade mortal. Ontem, eles se foram; hoje, pode ser nós. Hoje, eles recebem a nossa oração e reverência; amanhã seremos nós quem as receberá. Mas, no dia do chamado do Senhor para a ‘verdadeira vida’, o que lhe apresentaremos? Este pensamento nos deve sempre invadir. Construímos com a nossa existência, com as obras cristãs unidas à fé no Senhor da Vida (cf. Tg 2, 20), a nossa trilha para a Bem-Aventurança.  Se tivermos feito por onde obtermos a Vida de Deus e a Vida Nele, adentraremos na Jerusalém Celeste, onde “Nem olho algum viu, nem ouvido algum ouviu, nem jamais passou pela cabeça do homem o que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9). Mas, por que tememos a morte? Vem-me à mente: “Onde está o teu coração aí está o teu tesouro” (Mt 6, 21), e ainda, “Somos concidadãos dos santos” (Ef  2, 9). Portanto, se estamos com os nossos pés nesta terra, mas com os olhos direcionados para o alto, não temeremos a morte, porque estaremos cônscios de que a meta desta vida não está nas realidades terrenas, mas que estas devem servir-me de meio para alcançar a meta real: a vida de Deus e a vida Nele. O Céu é o tesouro do fiel cristão, porque lá está Deus.


Em meio à explosão de tantas teorias espíritas, parece que a doutrina cristã está sendo olvidada. Nós, cristãos, não cremos na reencarnação! Nossa passagem por esta terra é única, irrepetível. A purificação de nossa alma já se deu de uma vez por todas na cruz do Senhor, e se dá cotidianamente na páscoa sacramental por meio da Confissão e da Eucaristia. Obviamente a vivência cristã deva ser regada pela caridade exteriorizada por uma vida retamente virtuosa. O Cristianismo crê na ressurreição! “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos?” (1Cor 15,12). Cristo ressuscitou, e nós ressuscitaremos com Ele! Esta é uma afirmação da Igreja, e excomungado está quem não professa este dado de fé! Dentre as provas dadas pelos Apóstolos à Igreja de Cristo, apresentamos todo capítulo quinze da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios.


Ao refletirmos sobre a morte (cuja tratação na Teologia cabe à Escatologia), também somos chamados a ponderar acerca dos Novíssimos ou dos últimos fins do homem. A Sagrada Teologia, logicamente apoiada nas Sagradas Escrituras, afirma que os destinos do homem são basicamente dois: Paraíso e Inferno. Assim sendo, conforme reza o Catecismo da Igreja Católica, após o juízo particular de cada um, a pessoa, no estado de alma imortal, recebe uma retribuição imediata em relação à sua fé e às suas obras. Essa retribuição consiste no acesso à Glória Eterna, imediatamente ou depois de uma adequada purificação, ou no ingresso à condenação eterna (cf. Catecismo da Igreja Católica 1021-1022; 1051). Por céu, a Santa Igreja Católica entende “o estado de felicidade suprema e definitiva. Os que morrem na graça de Deus e não têm necessidade de ulterior purificação são reunidos em torno de Jesus e de Maria, dos anjos e dos santos. [...] Vivem em comunhão de amor com a Santíssima Trindade e intercedem por nós (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 209). Por purgatório[1], a “Mãe Católica” prega que este estado de espírito é concedido aos que morrem reconciliados com Deus, mas que precisam de purificação para poder entrar no céu. Logo, quem, de imediato após a morte, é enviado para cumprir as suas penas no purgatório, tem a garantia do céu, pois é um estágio momentâneo, muito embora na eternidade não possua o caráter da temporalidade. Às almas que estão no purgatório, podemos ajudá-las com as nossas orações de sufrágio, em especial com a Santa Missa, como também através das esmolas, indulgências e obras penitenciais. E o que a Igreja diz acerca do inferno? No Compêndio do Catecismo da Igreja Católica encontramos a resposta: o inferno “consiste na condenação eterna dos que, por livre escolha, morrem no pecado mortal. A pena principal do inferno consiste na separação eterna de Deus, em quem unicamente o homem tem a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira” (n. 212). “Dos que morrem no pecado mortal...”, daí a extrema importância de tentar viver de maneira ilibada os valores cristãos, principalmente em um mundo tão adverso e hostil à moral trazida pelo Cristo. O pecado mortal é uma excomunhão, uma recusa espontânea por parte do homem do amor misericordioso de Deus.


Nós, os vivos, sentimos quando da morte das pessoas a quem amamos. Chegamos até a chorar. Isso é normal, pois trata-se de uma separação (ainda que momentânea). Ao cristão não é cabível o desespero. Isso é inadmissível! Pois, em Cristo, todos encontrar-nos-emos: este é o nosso alento. Nós, Igreja Peregrina neste mundo, rumamos para o lugar onde não haverá mais dores e pranto, onde habitaremos no coração de Deus, tal como os que nos precederam pela porta da morte e já gozam da feliz eternidade do convívio com Ele e n’Ele. Unir-nos-emos aos que já se rejubilam na Igreja triunfante da comunhão dos santos. Por tal motivo, concluímos que a morte é sinal de esperança para todos.


Que esta expectativa de encontro definitivo com o Senhor e com aqueles que já nos precederam no gozo celeste preencha o nosso coração, a fim de estarmos preparados com dignidade para este divino momento, onde tomaremos posse dos bens eternos reservados por Jesus para nós, onde seremos recapitulados em Cristo (cf. Ef 1, 10), onde Deus será “tudo em todos” (1Cor 15, 28).


[1] As provas bíblicas da existência do purgatório, encontramos em Mt 12, 32; 1Cor 3, 15; 1Pd 1, 7; 2Mc 12, 46; Jó 1, 15.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

XXXI DOMINGO DO TEMPO COMUM



(Ano A – 30 de outubro de 2011)


I Leitura: Ml 1, 14b – 2b, 2.8-10
Salmo Responsorial: Sl 130 (131), 1.2.3. (R/. Guardai-me, em paz, junto a vós, ó Senhor!)
II Leitura: 1Ts 2, 7b-9.13
Evangelho: Mt 23, 1-12 (O maior é o que serve)


Queridos irmãos,

Excepcionalmente, por motivos maiores, não tivemos condições de publicar neste domingo a nossa reflexão acerca da Liturgia da Palavra. Porém, trazemos para vós, estimados leitores, esta frutuosa meditação do Dom Emanuele Bargelini. Fazemos votos de um santo e profícuo domingo e, com fé no Senhor do tempo e da eternidade, Jesus Cristo, Nosso Senhor, estaremos juntos ainda nesta semana.

Seminarista Everson Fontes Fonseca                                      





Dom Emanuele Bargellini[1]

Se eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também deveis lavar-vos os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, como eu vos fiz, também vós o façais” (Jo 13,14-15). O próprio Jesus se torna sempre a realização encarnada da Palavra que nos entrega. Seu exemplo precede seu ensino, e deste constitui a força interior que lhe dá autoridade e eficácia. 


Movido pelo impulso do Espírito e inspirado pelo exemplo de Jesus, Paulo afirma que seu ministério apostólico no meio da comunidade dos tessalonicenses foi exatamente a atuação do exemplo e do mandamento de Mestre: “foi com muita ternura que nos apresentamos a vós, como umamãe que acalenta seus filhinhos. Tanto bem vos queríamos, que desejávamos dar-vos não somente o evangelho de Deus, mas até a própria vida” (1 Ts 2,7b-8). E acrescenta pouco depois “Bem sabeis que exortamos a cada um de vós, como um pai aos filhos” (1 Ts 2, 11).

Não é fácil encontrar hoje em homilias de padres e em cartas pastorais de bispos uma linguagem tão apaixonada e humana, capaz de expressar aquela autêntica experiência da paternidade e da maternidade espiritual na qual a Igreja, através do serviço e da dedicação generosa dos seus ministros, nos gera à vida de Deus na fé, e se torna nossa “mãe”. Quantas vezes estamos proclamando na linguagem eclesiástica corrente do dia-a-dia que a Igreja é nossa mãe!

Quanto da paixão e da ternura da mãe e do empenho generoso e sábio do pai - que o apóstolo reivindica como características do seu serviço ao evangelho para os tessalonicenses - moldam de verdade nossas atitudes pastorais, e alimentam nossa pregação e catequese, enquanto somos chamados a não somente “escutar”, mas “encontrar” a boa nova libertadora de Jesus, que transforma e dá vida?

As duras palavras de Jesus na polêmica contra os fariseus colocam em luz a contradição radical entre palavras e comportamentos, sobretudo nas pessoas que, na comunidade, têm a missão e a tarefa de abrir o caminho aos irmãos e irmãs para encontrar a Deus, o Pai fonte de toda paternidade (cf. Ef 3,15), que cuida, educa e acompanha com ternura de mãe seus filhos amados, até que se tornem adultos (cf. Os 11, 1-4).


Os fariseus e os mestres da lei proporcionam um ensino autorizado do qual é preciso ter conta, enquanto guarda em si a Palavra viva que vem de Deus e que transcende a postura pessoal deles. Seu estilo de vida deveria ser o espelho da mesma palavra e dar a ela credibilidade. Ao invés se torna um tropeço que atrapalha a vida do povo. Distinguir as situações ambíguas, com sabedoria e discernimento crítico no Espírito, como convém a pessoas maduras na fé, e pegar a distância das falsas aparências, para seguir o único verdadeiro Senhor, Pai e Mestre: eis a vocação e o desafio para os verdadeiros discípulos em todo tempo.

“Por isso deveis fazer e observar tudo o que eles dizem. Mas não imiteis suas ações! Pois eles falam e não praticam” (Mt 23, 3). Evidenciando uma série de contradições, Jesus destaca dois pecados fundamentais, que constituem o núcleo venenoso da alma, a hipocrisia, isto é, a manipulação da verdade para consigo mesmo, diante de Deus e na relação com os demais.

O primeiro pecado é a tentativa de esconder-se atrás de um aparente zelo religioso, identificado com a rígida observância da Lei, por eles aludida, mas carregada sobre os ombros do povo, observância desprovida de todo amor e autenticidade (Mt 23, 4). O segundo pecado é a procura em chamar a atenção do povo para si mesmo, colocando-se no lugar próprio de Deus, ao ostentar formas e palavras, capazes de capturar os simples, em vez de guiá-los ao Senhor da vida (Mt 23, 5-7).

Jesus se coloca na linha do profeta Malachias, que denuncia a perversão da própria missão por parte dos sacerdotes. Eles deveriam ser de ajuda e servir de guias para viver com fidelidade a aliança; ao contrário: se tornaram “pedra de tropeço” para os pobres (1ª Leitura, Ml 2, 8).

Os pequeninos são os privilegiados do Pai! Por isso a ameaça de Jesus se faz ainda maior daquela já severa que encontramos aqui. “Caso alguém escandalize um destes pequeninos que crêem em mim, melhor seria que lhe pendurassem ao pescoço uma pesada mó e fosse precipitado nas profundezas do mar!” (Mt 18,6).

O tropeço e o escândalo dos pequeninos não passam somente através dos comportamentos abertamente em contradição com o evangelho e o ensino da Igreja. Quando isso acontece, é mais fácil reconhecer o desvio e se defender. Hoje em dia atuam também duas formas, dentre outras, de possíveis desvios do caminho próprio do discípulo de Jesus.

Todo mundo é alertado contra certa mentalidade secular que descuida de Deus e da dimensão espiritual da existência humana, para seguir um relativismo individualista e limitado ao nível do bem estar material.


Outro perigo mais sutil é a exploração do sentimento religioso espontâneo e simples das pessoas, dobrando-o para formas pobres de conteúdo, fortemente ligadas às emoções, sem o cuidado paterno e materno de Paulo, para educar este mesmo sentimento religioso, e acompanhar os fieis a gozar das riquezas espirituais que a Igreja proporciona para todo o povo na Palavra de Deus, na Liturgia, na formação mais consciente e adulta da própria fé.

Ao pegar nas mãos certas publicações que se dizem de caráter piedoso, e ao olhar certos programas de TV (não somente evangélicos!), que pretenderiam alimentar a fé do povo de Deus, vêm naturalmente à mente as severas palavras de Jesus no evangelho de hoje! Muitas vezes são propostas na realidade formas quase mágicas de piedade, embora os altares apareçam bem arrumados, segundo as exigências das rubricas litúrgicas!

Para onde foi o luminoso empenho da Igreja assumido através do Concílio Vaticano II, orientado a reconduzir a fé e a piedade do povo de Deus às suas divinas raízes da Palavra de Deus e do mistério pascal de Cristo na liturgia, renovando as bases da catequese, para que se tornasse mais idônea a iluminar a mente e a esquentar o coração das pessoas com a caridade de Cristo?

Para onde foi o caminho de comunhão entre todos os membros do povo de Deus, peregrino na esperança rumo à vinda gloriosa do Senhor, que sustenta seu caminho, o ilumina, o faz solidário com todos os homens e mulheres do nosso tempo, e o abre à esperança?

Esta foi a grande estrela polar da eclesiologia promovida pelo Concílio Vaticano II, retomando a mais antiga e original tradição da Igreja.

A Igreja está se preparando a celebrar no ano 2013 os cinqüenta anos da abertura do Concílio ecumênico Vaticano II (1963- 2013). Este aniversário deveria constituir uma oportunidade para todos redescobrirem as grandes Constituições do Concílio (os principais documentos doutrinais e pastorais), e assumir com renovado empenho o caminho de renovação e de autenticidade da vida cristã que o Espírito Santo abriu para a Igreja.

Em qual terreno está caindo, dentro das nossas comunidades, a fecunda semente de vida lançada pelo papa Bento XVI, com a Exortação apostólica “Verbum Domini - A Palavra do Senhor” (2008), que, num gesto de profunda comunhão com os bispos da Igreja católica, assumiu as sugestões do Sínodo dos bispos, para colocar novamente no centro do coração da Igreja e da vida de todos os fieis a Palavra de Deus, que é o próprio Jesus, Palavra-Verbo do Pai?

Este é o caminho para, no nosso tempo, cultivar e promover uma fé e uma piedade autênticas, capazes de enfrentar os desafios da secularização e do falso “pietismo” de certas propostas religiosas, que podem nascer da boa vontade, mas que não conseguem fundamentar bastante as pessoas diante dos novos desafios.

O Encontro de Reflexão, Diálogo e Oração, promovido pelo papa em Assis no dia 27 de outubro, 25º aniversário do primeiro encontro organizado pelo Bem Aventurado papa João Paulo II (1986), tem como horizonte espiritual o lema “Peregrinos da verdade, peregrinos da paz”. O espírito com que o papa tem promovido este evento e o lema que o identifica destacam bem a exigência de crescer na autenticidade da relação com o mistério de Deus que nos habita e nos transcende, e na relação para com todos os membros da família humana, qualquer que seja a forma religiosa ou cultural, para expressar e honrar este mistério divino. Este encontro do dia 27 é preciso que de algum modo faça parte da celebração da eucaristia deste domingo, como palavra atualizadora do evangelho e da páscoa de Jesus.

Os estudiosos do Novo Testamento nos advertem que o tom altamente polêmico do trecho do evangelho de Mateus proclamado na liturgia deste domingo, se de um lado parece exagerar na leitura negativa do movimento dos fariseus, assim como se exprimia no tempo de Jesus, de outro lado, provavelmente, tende a marcar o perigo da hipocrisia e da modalidade errônea de se exercer a autoridade dentro da própria comunidade cristã no tempo do evangelista.

Tais riscos, seria esta a mensagem do evangelista, não se encontram somente no povo dos judeus, mas também na comunidade dos discípulos de Jesus, na nossa comunidade, em qualquer tempo e lugar.

Para os discípulos, Jesus indica outros critérios de relações recíprocas, e outro modelo para exercitar em maneira autêntica a autoridade: “Quanto a vós, nunca....” (Mt 23,8-12).

Diante da perspectiva da paixão, passagem escolhida pelo Pai para realizar a missão de Jesus como Messias e Salvador, os discípulos não conseguem entender o mistério de Jesus. E, sobretudo, não conseguem entender o que isto deveria significar para eles mesmos, enquanto seus “discípulos”. Continuam brigando entre si, sobre quem deveria ocupar os primeiros postos de poder entre eles.

Jesus revira as perspectivas: “Sabeis que os governadores das nações as dominam... Entre vós não deverá ser assim. Ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser primeiro dentre vós, seja o vosso servo. Desse modo o filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida como resgate por muitos” (Mt 20, 25-28).

Eis fundada a razão porque ninguém, entre os discípulos, pode pretender o “título” de mestre, de pai, de guia. Estas funções pertencem ao Pai e a seu Filho Jesus, que atua no Espírito Santo (Mt 23, 8-10). 

Cristo, que se esvazia de todo poder e de aparência de glória, que lhe pertencem enquanto Verbo do Pai, e assume a fragilidade do escravo, morrendo na cruz, suprema manifestação do seu amor e da sua glória, permanece a fonte e o modelo de toda comunidade cristã, nas relações entre seus membros e no exercício da autoridade (cf Fl 2, 6-11).

Que sentido tem na Igreja as pessoas que exercitam os ministérios de ensinar, de suscitar a fé e de guiar e acompanhar o caminho de fé do povo de Deus?

Como diz a própria palavra “ministério”, elas são chamadas pelo Senhor a exercitarem um “serviço”, finalizado a promover a relação vital de cada um com o Pai, com o Mestre interior que é o Espírito, e com o Cristo, que é o verdadeiro caminho para o Pai. Nisto consiste toda a dignidade e a responsabilidade destes “ministros”. A partir da autenticidade desta delicada mediação, cada um precisa julgar seu próprio ministério na luz do Senhor, para verificar com humildade e sinceridade, se está de verdade servindo ao Senhor no seu povo, ou se por acaso não se está tornado pedra de tropeço para o mesmo.

Até a capacidade de servir o Senhor e o povo, como se convém, é graça. É a graça que a Igreja pede hoje, mais consciente do que nunca das próprias fragilidades: “Ó Deus de poder e misericórdia, que concedeis a vossos filhos e filhas a graça de vos servir como devem, fazei que corramos livremente ao encontro das vossas promessas”.




[1]  É monge beneditino camaldolense. Prior do Mosteiro da Transfiguração (Mogi das Cruzes - São Paulo). Doutor em liturgia pelo Pontificio Ateneu Santo Anselmo (Roma).

sábado, 22 de outubro de 2011

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XXX DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano A – 23 de outubro de 2011)



I Leitura: Ex 22, 20-26
Salmo Responsorial: Sl 17 (18), 2-3 a. 3bc-4. 47 e 51 ab (R/. 2)
II Leitura: 1Ts 1, 5c-10
Evangelho: Mt 22, 34-40 (O maior mandamento)


Queridos irmãos,


Qual a medida do amor? Esta pergunta pode ser o norte de nossa reflexão para este domingo. Vivemos em um mundo onde, com facilidade, ouvimos falar sobre este sentimento. Na verdade, observando, em geral, os locais em que o termo amor é utilizado (principalmente nos meios de comunicação e cultura, como a música, por exemplo), verificamos uma tendência a banalizar este nobre sentimento tão querido por Deus. Utilizamos o termo banalizar já que, não raras vezes, ao amor é dada uma conotação de um reles erotismo.


São João, em uma de suas cartas, nos afirma qual é a essência de Deus: Ele é amor! (cf. 1Jo 4, 8.16). O ato de amar a Deus já estava presente na profissão de fé do israelita, o Shemá: “Ouve, ó Israel! O Senhor, nosso Deus, é o único Senhor! Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” (Dt 6, 4-5). Porém, a atitude de amar a Deus não se rege pela estaticidade, deve ir mais adiante, deve englobar a vida do meu irmão com os mais nobres sentimentos. Neste intuito, Jesus, no Evangelho de hoje, une à profissão do Shemá um preceito que estava como que esquecido pelos judeus, ou pelo menos por aquele interlocutor: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19, 18). Jesus os unifica fazendo deles um só preceito. É como se o Mestre dissesse ineditamente que, por ter sido “Deus o primeiro a nos amar, agora o amor já não é apenas um ‘mandamento’, mas a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro” (BENTO XVI, Deus Caritas Est, 1).




Jesus está em Jerusalém, prestes a ser preso e crucificado. E como temos acompanhado nos últimos dois domingos, vemos Jesus sendo embatido pelos saduceus, anciãos do povo, herodianos e fariseus. Jesus os incomoda e, consequentemente, eles estão atrás de um motivo para pegá-lo em algo que dissesse. Embasbaca-nos a forma estranha com que os fariseus querem deflagrar o Senhor: fazendo uma pergunta acerca da Lei. Ora, aos fariseus, grupo caracterizado pela sua ortodoxia extremada, fazer uma pergunta acerca da Lei era algo bastante suspeito. São Mateus, nesta passagem, contrariamente a de domingo passado, não entra no mérito se Jesus percebeu ou não a pergunta suspeita daquele homem que, já de início, o chama “Mestre”. Aludimos que Jesus, espertamente, se dá conta da maldade intencional daquele fariseu, no entanto deseja fazer daquela pergunta uma espécie de catequese acerca do amor a Deus e ao próximo. Meditando sobre a atitude do fariseu e fazendo uma ponte para nós, São João Crisóstomo afirma-nos: “Perguntava-lhe sobre o grande mandato quem não cumpria sequer o pequeno. Deve perguntar acerca do progresso da santidade, aquele que já vem observando algo que possa conduzir a ela” (Opus imperfectum in Matthaeum, hom. 42). Muitas vezes caímos neste risco, em nome de um pseud-amor aDeus, excluímos a caridade para com o nosso irmão. Caridade não é apenas servir o outro com a nossa materialidade, mas é ver nele aquilo que de fato ele é: “imagem e semelhança de Deus” (cf. Gn 1,26. 27; 5, 1); meu irmão.


É interessante a resposta de Jesus. Ele utiliza o verbo “amar” no futuro do indicativo. Isto acontece para esclarecer, a partir daquele fariseu, que a nossa relação para com Deus não deve basear-se no temer, mas no mais puro sentimento do coração do homem, o qual engloba em torno de si os mais nobres sentimentos produzidos no interior da criatura racional. Destarte, tiramos a conclusão de que Jesus sabia muito bem que o sentimento o qual os fariseus nutriam por Deus não era o do amor, mas partia desde o temor até o extremo da subserviência de Deus aos seus caprichos, tal como nos revela a oração do fariseu e do publicano: “Subiram dois homens ao templo para orar. Um era fariseu; o outro, publicano. O fariseu, em pé, orava no seu interior desta forma: Graças te dou, ó Deus, que não sou como os demais homens: ladrões, injustos e adúlteros; nem como o publicano que está ali. Jejuo duas vezes na semana e pago o dízimo de todos os meus lucros” (Lc 18, 10-12).


Relacionada à primeira parte do mandamento do Senhor (Amor a Deus versus outros sentimentos para com Ele) – “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, e de todo o teu entendimento” (Mt 22, 37), São João Crisóstomo ainda nos diz: “Amarás, disse, e não temerás, porque amar é mais que temer; o temor é próprio dos servos, e amar é próprio dos filhos. O temor procede da necessidade, o amor, da liberdade; o que serve a Deus por temor, evita o castigo; é verdade, no entanto não tem a graça da santidade, já que o faz como que uma obrigação, pratica o bem por medo. Não quer o Senhor que o temam os homens de um modo servil, e como a um senhor, e sim que o ame como a um pai, já que concedeu aos homens o Espírito de adoção. Amar a Deus de todo o coração é tanto como não ter o coração inclinado para alguma coisa, e sim ao amor de Deus. Amar a Deus com toda a alma é tanto como ter um conhecimento certíssimo da verdade e estar firme na fé; portanto, uma coisa é o amor do coração e outra o amor da alma. O amor do coração é carnal em um certo sentido; em tal conceito amamos a Deus de uma maneira carnal, o que não podemos fazer sem nos abster do amor das coisas terrenas; portanto, o amor do coração se sente no coração. Porém, o amor da alma não se sente, mas se compreende, porque consiste no juízo da alma. O que crê que todo bem está em Deus, e que nada bom está fora dele, este o ama com toda a sua alma. Amar a Deus com toda a mente é tanto consagrar-lhe todos os sentidos, e aquele cujo entendimento serve a Deus, e cuja sabedoria se fixa em Deus, e cuja inteligência se ocupa das coisas de Deus, cuja memória recorda o bom, pode dizer-se que ama a Deus com toda a mente” (Opus imperfectum in Matthaeum, hom. 42).




“Amarás o próximo com a ti mesmo” (Mt 22, 39). Para uma maior consciência, somos tentados a perguntar como fizera em uma dada ocasião um doutor da Lei: “E quem é o meu próximo?” (Lc 10, 29). Vem-nos auxiliar nesta nossa resposta o Bispo de Hipona, Santo Agostinho: “Deve ter-se em conta que se há de considerar como próximo a todo homem e que, portanto, com nada se deve obrar mal. Se a chama propriamente nosso próximo aquele a quem se deve dispensar ou de quem devemos receber ofícios de caridade, se demonstra por meio deste preceito de que modo temos obrigação de amar ao próximo, e ainda compreendendo também aos santos anjos, de quem recebemos tantos ofícios de caridade, como podemos ver facilmente nas Escrituras. Assim, o mesmo Deus quis chamar-se nosso próximo, quando Nosso Senhor Jesus Cristo se nos apresenta como aquele aleijado que se encontrava meio morto e tombado no caminho” (De Doctrina Christiana 1,30). Jesus é o nosso próximo por execelência. Devemos vê-lo nos irmãos; devemos ver o irmão em Jesus (cf. Mt 25, 34-40).


É ainda neste sentido que, na Primeira Leitura, o Senhor dá ao seu povo no deserto, dentro de todo o contexto do código da Lei mosaica, as instruções acerca do amor ao próximo, principalmente aos desfavorecidos e sofredores: estrangeiros, viúvas, órfãos, pobres, desnudos... Perguntamo-nos: “Quem é o nosso próximo?!” É todo aquele que é imagem e semelhança de Deus, mas de uma forma toda especial o que assim o é na pobreza, na exclusão, na opressão. Deus ama a todos; a estes o carinho é dirigido de uma forma profunda: “Se clamar por mim, eu o ouvirei, porque sou misericordioso” (Ex 22, 26).


Irmãos, na sociedade de hoje, muitas vezes temos a tentação de pensar que o nosso próximo é apenas aquele que é desprovido da dignidade dos bens materiais. Quem assim pensa, não está de todo errado. Porém, esquecemo-nos de que o próximo está mais presente em nossa vida do que imaginávamos. Em nosso cotidiano, principalmente nas diversas agruras que nos se apresentam dentro do relacionar-se, somos obrigados a ver no rosto de cada homem e de cada mulher, independentemente de quem quer que seja, ou mesmo se porventura alguém nos tenha feito algo que nos feriu e chateou, o rosto de Deus. “Amai o vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam” (Mt 5, 44; Lc 6,27). Estes últimos também são nossos próximos.


Retornamos à primeira pergunta da nossa reflexão: Qual a medida do amor ao outro? É o amor próprio. Logo, se eu não me amo, não serei capaz de amar ao outro, abrindo-me a ele. No entanto, o amor próprio exacerbado e centralizado em mim mesmo torna-se egoísmo, mas quando ele é dividido, partilhado, torna-se expressão de Deus e nossa. Estamos cumprindo com uma atitude divina: Deus ama! Por isso é que toda a Lei e os profetas giram em torno deste duplo-único mandamento. Assim agindo, estaremos fazendo tal qual a comunidade de Tessalônica: “Vós vos tornastes imitadores nossos e do Senhor [...] assim vos tornastes modelo para todos os fiéis [...] vossa fé em Deus propagou-se por toda parte” (1Ts 1, 6.7.8).


Somos cônscios de que a prática do amor é exigente, e em se falando de amar ao que nos ofende e persegue esta prática é dilacerante. Na realidade, amar é uma ascese, um exercício. Só depende de nós realizá-lo. A caridade não se constitui de uma instantaneidade, mas é galgada com pequenas práticas e renúncias de nós mesmos. São Josemaría Escrivá, aconselha-nos: “Doem-te as faltas de caridade do próximo para contigo. Quanto não hão de doer a Deus as tuas faltas de caridade – de Amor – para com ele? [...] Esforça-te, se é preciso, por perdoar sempre aos que te ofendem, desde o primeiro instante, já que, por maior que seja o prejuízo ou a ofensa que te façam, mais te tem perdoado Deus a ti” (Caminho, 441; 452). O perdão é fruto do amor, já que brota deste.


Que o Coração amante de Cristo, “fornalha ardente de caridade”, nos inspire na vivência do grande amor sincero e fiel a todos. A nós que amamos a Deus, valha-nos o que afirma o Evangelista São João em sua Epístola: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Que nunca possamos ver o outro como inimigo; que as divisões entre nós sejam superadas; que tratemos o outro como irmão possuindo os mesmos sentimentos do Divino Mestre, lembrando sempre que o amor fraterno deve ser para o cristão um imperativo: “Amai-vos!” 

DIA 31 DE OUTUBRO: LANÇAMENTO DO SITE "ALETEIA"

O termo, cunhado do grego αλητέια, verdade, vem nominar uma iniciativa da Igreja de ser a primeira comunidade virtual baseada em perguntas e respostas sobre a fé católica, a vida e a sociedade. Em Aleteia, você pode fazer perguntas e receber respostas, unido a conversação.


Primariamente, o site vai está disponível em apenas quatro idiomas: francês, inglês, italiano e espanhol. No entanto, já se caracteriza um importantíssimo passo para a evangelização através da Escritura e da Tradição da Igreja, clarificadas pelo Magistério.




Para  Jesus Colina, ex-diretor da Agência Zenit, Aleteia nasce como uma resposta concreta ao desafio lançado pelo Papa Bento XVI de proclamar o Evangelho na nova mídia, em sintonia com o Pontifício Conselho para as Comunicações Sociais e o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova Evangelização” – informa o novo portal (http://www.aleteia.org), iniciativa privada, independente de movimentos e instituições religiosas.


Então, não nos esqueçamos, no próximo 31 de outubro, o lançamento do site: www.aleteia.org

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

ESPECIAL: BENTO XVI LANÇARÁ, EM 2012, O ANO DA FÉ


MMXII-MMXIII: ANNUM FIDEI (2012-2013: o Ano da Fé)



Preparemo-nos, irmãos, o Santo Padre Bento XVI, tendo em vista o cinquentenário da inauguração do Sagrado  Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), anuncia para o dia 11 de outubro de 2012 o início do Ano da Fé a ser proclamado para todo o Orbe. O respectivo ano terá o seu desfecho em 2013, na Solenidade de Cristo Rei do Universo (especificamente em 24 de novembro).


Trazemos na íntegra, a Carta Apostólica em forma de Motu Próprio denominada Porta Fidei (Porta da Fé). Este documento pontifício tem como intenção a convocação dos fiéis para esta comemoração em toda a Igreja:



CARTA APOSTÓLICA 
SOB FORMA DE MOTU PROPRIO
PORTA FIDEI
DO SUMO PONTÍFICE
BENTO XVI
COM A QUAL SE PROCLAMA O ANO DA FÉ 


1. A PORTA DA FÉ (cf. Act 14, 27), que introduz na vida de comunhão com Deus e permite a entrada na sua Igreja, está sempre aberta para nós. É possível cruzar este limiar, quando a Palavra de Deus é anunciada e o coração se deixa plasmar pela graça que transforma. Atravessar esta porta implica embrenhar-se num caminho que dura a vida inteira. Este caminho tem início no Baptismo (cf. Rm 6, 4), pelo qual podemos dirigir-nos a Deus com o nome de Pai, e está concluído com a passagem através da morte para a vida eterna, fruto da ressurreição do Senhor Jesus, que, com o dom do Espírito Santo, quis fazer participantes da sua própria glória quantos crêem n’Ele (cf. Jo 17, 22). Professar a fé na Trindade – Pai, Filho e Espírito Santo – equivale a crer num só Deus que é Amor (cf. 1 Jo 4, 8): o Pai, que na plenitude dos tempos enviou seu Filho para a nossa salvação; Jesus Cristo, que redimiu o mundo no mistério da sua morte e ressurreição; o Espírito Santo, que guia a Igreja através dos séculos enquanto aguarda o regresso glorioso do Senhor.

2. Desde o princípio do meu ministério como Sucessor de Pedro, lembrei a necessidade de redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Durante a homilia da Santa Missa no início do pontificado, disse: «A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo devem pôr-se a caminho para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude»[1]. Sucede não poucas vezes que os cristãos sintam maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerando esta como um pressuposto óbvio da sua vida diária. Ora um tal pressuposto não só deixou de existir, mas frequentemente acaba até negado.[2]Enquanto, no passado, era possível reconhecer um tecido cultural unitário, amplamente compartilhado no seu apelo aos conteúdos da fé e aos valores por ela inspirados, hoje parece que já não é assim em grandes sectores da sociedade devido a uma profunda crise de fé que atingiu muitas pessoas.

3. Não podemos aceitar que o sal se torne insípido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16). Também o homem contemporâneo pode sentir de novo a necessidade de ir como a samaritana ao poço, para ouvir Jesus que convida a crer n’Ele e a beber na sua fonte, donde jorra água viva (cf. Jo 4, 14). Devemos readquirir o gosto de nos alimentarmos da Palavra de Deus, transmitida fielmente pela Igreja, e do Pão da vida, oferecidos como sustento de quantos são seus discípulos (cf. Jo 6, 51). De facto, em nossos dias ressoa ainda, com a mesma força, este ensinamento de Jesus: «Trabalhai, não pelo alimento que desaparece, mas pelo alimento que perdura e dá a vida eterna» (Jo 6, 27). E a questão, então posta por aqueles que O escutavam, é a mesma que colocamos nós também hoje: «Que havemos nós de fazer para realizar as obras de Deus?» (Jo 6, 28). Conhecemos a resposta de Jesus: «A obra de Deus é esta: crer n’Aquele que Ele enviou» (Jo 6, 29). Por isso, crer em Jesus Cristo é o caminho para se poder chegar definitivamente à salvação.

Beato João XXIII - Papa que abriu o Vaticano II

4. À luz de tudo isto, decidi proclamar um Ano da Fé. Este terá início a 11 de Outubro de 2012, no cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II, e terminará na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, a 24 de Novembro de 2013. Na referida data de 11 de Outubro de 2012, completar-se-ão também vinte anos da publicação do Catecismo da Igreja Católica, texto promulgado pelo meu Predecessor, o Beato Papa João Paulo II,[3] com o objectivo de ilustrar a todos os fiéis a força e a beleza da fé. Esta obra, verdadeiro fruto do Concílio Vaticano II, foi desejada pelo Sínodo Extraordinário dos Bispos de 1985 como instrumento ao serviço da catequese[4] e foi realizado com a colaboração de todo o episcopado da Igreja Católica. E uma Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos foi convocada por mim, precisamente para o mês de Outubro de 2012, tendo por tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã. Será uma ocasião propícia para introduzir o complexo eclesial inteiro num tempo de particular reflexão e redescoberta da fé. Não é a primeira vez que a Igreja é chamada a celebrar um Ano da Fé. O meu venerado Predecessor, o Servo de Deus Paulo VI, proclamou um ano semelhante, em 1967, para comemorar o martírio dos apóstolos Pedro e Paulo no décimo nono centenário do seu supremo testemunho. Idealizou-o como um momento solene, para que houvesse, em toda a Igreja, «uma autêntica e sincera profissão da mesma fé»; quis ainda que esta fosse confirmada de maneira «individual e colectiva, livre e consciente, interior e exterior, humilde e franca».[5] Pensava que a Igreja poderia assim retomar «exacta consciência da sua fé para a reavivar, purificar, confirmar, confessar».[6] As grandes convulsões, que se verificaram naquele Ano, tornaram ainda mais evidente a necessidade duma tal celebração. Esta terminou com a Profissão de Fé do Povo de Deus,[7] para atestar como os conteúdos essenciais, que há séculos constituem o património de todos os crentes, necessitam de ser confirmados, compreendidos e aprofundados de maneira sempre nova para se dar testemunho coerente deles em condições históricas diversas das do passado.

5. Sob alguns aspectos, o meu venerado Predecessor viu este Ano como uma «consequência e exigência pós-conciliar»[8], bem ciente das graves dificuldades daquele tempo sobretudo no que se referia à profissão da verdadeira fé e da sua recta interpretação. Pareceu-me que fazer coincidir o início do Ano da Fé com o cinquentenário da abertura do Concílio Vaticano II poderia ser uma ocasião propícia para compreender que os textos deixados em herança pelos Padres Conciliares, segundo as palavras do Beato João Paulo II, «não perdem o seu valor nem a sua beleza. É necessário fazê-los ler de forma tal que possam ser conhecidos e assimilados como textos qualificados e normativos do Magistério, no âmbito da Tradição da Igreja. Sinto hoje ainda mais intensamente o dever de indicar o Concílio como a grande graça de que beneficiou a Igreja no século XX: nele se encontra uma bússola segura para nos orientar no caminho do século que começa».[9] Quero aqui repetir com veemência as palavras que disse a propósito do Concílio poucos meses depois da minha eleição para Sucessor de Pedro: «Se o lermos e recebermos guiados por uma justa hermenêutica, o Concílio pode ser e tornar-se cada vez mais uma grande força para a renovação sempre necessária da Igreja».[10]

Papa Paulo VI, o Pontífice que continuou e encerrou o Concílio  (1965), com o Filósofo  Jacques Maritain que, como leigo, participou das atividades conciliares. Foto tirada  em 08/12/1965, na Missa de conclusão do Concílio

6. A renovação da Igreja realiza-se também através do testemunho prestado pela vida dos crentes: de facto, os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a Palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. O próprio Concílio, na Constituição dogmática Lumen gentium, afirma: «Enquanto Cristo “santo, inocente, imaculado” (Heb 7, 26), não conheceu o pecado (cf. 2 Cor 5, 21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (cf. Heb 2, 17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação. A Igreja “prossegue a sua peregrinação no meio das perseguições do mundo e das consolações de Deus”, anunciando a cruz e a morte do Senhor até que Ele venha (cf. 1 Cor 11, 26). Mas é robustecida pela força do Senhor ressuscitado, de modo a vencer, pela paciência e pela caridade, as suas aflições e dificuldades tanto internas como externas, e a revelar, velada mas fielmente, o seu mistério, até que por fim se manifeste em plena luz».[11]
Nesta perspectiva, o Ano da Fé é convite para uma autêntica e renovada conversão ao Senhor, único Salvador do mundo. No mistério da sua morte e ressurreição, Deus revelou plenamente o Amor que salva e chama os homens à conversão de vida por meio da remissão dos pecados (cf. Act 5, 31). Para o apóstolo Paulo, este amor introduz o homem numa vida nova: «Pelo Baptismo fomos sepultados com Ele na morte, para que, tal como Cristo foi ressuscitado de entre os mortos pela glória do Pai, também nós caminhemos numa vida nova» (Rm 6, 4). Em virtude da fé, esta vida nova plasma toda a existência humana segundo a novidade radical da ressurreição. Na medida da sua livre disponibilidade, os pensamentos e os afectos, a mentalidade e o comportamento do homem vão sendo pouco a pouco purificados e transformados, ao longo de um itinerário jamais completamente terminado nesta vida. A «fé, que actua pelo amor» (Gl 5, 6), torna-se um novo critério de entendimento e de acção, que muda toda a vida do homem (cf. Rm 12, 2; Cl 3, 9-10;Ef 4, 20-29; 2 Cor 5, 17).
7. «Caritas Christi urget nos – o amor de Cristo nos impele» (2 Cor 5, 14): é o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar. Hoje, como outrora, Ele envia-nos pelas estradas do mundo para proclamar o seu Evangelho a todos os povos da terra (cf. Mt 28, 19). Com o seu amor, Jesus Cristo atrai a Si os homens de cada geração: em todo o tempo, Ele convoca a Igreja confiando-lhe o anúncio do Evangelho, com um mandato que é sempre novo. Por isso, também hoje é necessário um empenho eclesial mais convicto a favor duma nova evangelização, para descobrir de novo a alegria de crer e reencontrar o entusiasmo de comunicar a fé. Na descoberta diária do seu amor, ganha força e vigor o compromisso missionário dos crentes, que jamais pode faltar. Com efeito, a fé cresce quando é vivida como experiência de um amor recebido e é comunicada como experiência de graça e de alegria. A fé torna-nos fecundos, porque alarga o coração com a esperança e permite oferecer um testemunho que é capaz de gerar: de facto, abre o coração e a mente dos ouvintes para acolherem o convite do Senhor a aderir à sua Palavra a fim de se tornarem seus discípulos. Os crentes – atesta Santo Agostinho – «fortificam-se acreditando».[12] O Santo Bispo de Hipona tinha boas razões para falar assim. Como sabemos, a sua vida foi uma busca contínua da beleza da fé enquanto o seu coração não encontrou descanso em Deus.[13] Os seus numerosos escritos, onde se explica a importância de crer e a verdade da fé, permaneceram até aos nossos dias como um património de riqueza incomparável e consentem ainda que tantas pessoas à procura de Deus encontrem o justo percurso para chegar à «porta da fé».
Por conseguinte, só acreditando é que a fé cresce e se revigora; não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria vida, senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
8. Nesta feliz ocorrência, pretendo convidar os Irmãos Bispos de todo o mundo para que se unam ao Sucessor de Pedro, no tempo de graça espiritual que o Senhor nos oferece, a fim de comemorar o dom precioso da fé. Queremos celebrar este Ano de forma digna e fecunda. Deverá intensificar-se a reflexão sobre a fé, para ajudar todos os crentes em Cristo a tornarem mais consciente e revigorarem a sua adesão ao Evangelho, sobretudo num momento de profunda mudança como este que a humanidade está a viver. Teremos oportunidade de confessar a fé no Senhor Ressuscitado nas nossas catedrais e nas igrejas do mundo inteiro, nas nossas casas e no meio das nossas famílias, para que cada um sinta fortemente a exigência de conhecer melhor e de transmitir às gerações futuras a fé de sempre. Neste Ano, tanto as comunidades religiosas como as comunidades paroquiais e todas as realidades eclesiais, antigas e novas, encontrarão forma de fazer publicamente profissão do Credo.
9. Desejamos que este Ano suscite, em cada crente, o anseio de confessar a fé plenamente e com renovada convicção, com confiança e esperança. Será uma ocasião propícia também para intensificar a celebração da fé na liturgia, particularmente na Eucaristia, que é «a meta para a qual se encaminha a acção da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força».[14] Simultaneamente esperamos que o testemunho de vida dos crentes cresça na sua credibilidade. Descobrir novamente os conteúdos da fé professada, celebrada, vivida e rezada[15] e reflectir sobre o próprio acto com que se crê, é um compromisso que cada crente deve assumir, sobretudo neste Ano.
Não foi sem razão que, nos primeiros séculos, os cristãos eram obrigados a aprender de memória o Credo. É que este servia-lhes de oração diária, para não esquecerem o compromisso assumido com o Baptismo. Recorda-o, com palavras densas de significado, Santo Agostinho quando afirma numa homilia sobre a redditio symboli (a entrega do Credo): «O símbolo do santo mistério, que recebestes todos juntos e que hoje proferistes um a um, reúne as palavras sobre as quais está edificada com solidez a fé da Igreja, nossa Mãe, apoiada no alicerce seguro que é Cristo Senhor. E vós recebeste-lo e proferiste-lo, mas deveis tê-lo sempre presente na mente e no coração, deveis repeti-lo nos vossos leitos, pensar nele nas praças e não o esquecer durante as refeições; e, mesmo quando o corpo dorme, o vosso coração continue de vigília por ele».[16]
10. Queria agora delinear um percurso que ajude a compreender de maneira mais profunda os conteúdos da fé e, juntamente com eles, também o acto pelo qual decidimos, com plena liberdade, entregar-nos totalmente a Deus. De facto, existe uma unidade profunda entre o acto com que se crê e os conteúdos a que damos o nosso assentimento. O apóstolo Paulo permite entrar dentro desta realidade quando escreve: «Acredita-se com o coração e, com a boca, faz-se a profissão de fé» (Rm 10, 10). O coração indica que o primeiro acto, pelo qual se chega à fé, é dom de Deus e acção da graça que age e transforma a pessoa até ao mais íntimo dela mesma.
A este respeito é muito eloquente o exemplo de Lídia. Narra São Lucas que o apóstolo Paulo, encontrando-se em Filipos, num sábado foi anunciar o Evangelho a algumas mulheres; entre elas, estava Lídia. «O Senhor abriu-lhe o coração para aderir ao que Paulo dizia» (Act 16, 14). O sentido contido na expressão é importante. São Lucas ensina que o conhecimento dos conteúdos que se deve acreditar não é suficiente, se depois o coração – autêntico sacrário da pessoa – não for aberto pela graça, que consente ter olhos para ver em profundidade e compreender que o que foi anunciado é a Palavra de Deus.
Por sua vez, o professar com a boca indica que a fé implica um testemunho e um compromisso públicos. O cristão não pode jamais pensar que o crer seja um facto privado. A fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele. E este «estar com Ele» introduz na compreensão das razões pelas quais se acredita. A fé, precisamente porque é um acto da liberdade, exige também assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita. No dia de Pentecostes, a Igreja manifesta, com toda a clareza, esta dimensão pública do crer e do anunciar sem temor a própria fé a toda a gente. É o dom do Espírito Santo que prepara para a missão e fortalece o nosso testemunho, tornando-o franco e corajoso.
A própria profissão da fé é um acto simultaneamente pessoal e comunitário. De facto, o primeiro sujeito da fé é a Igreja. É na fé da comunidade cristã que cada um recebe o Baptismo, sinal eficaz da entrada no povo dos crentes para obter a salvação. Como atesta o Catecismo da Igreja Católica, «“Eu creio”: é a fé da Igreja, professada pessoalmente por cada crente, principalmente por ocasião do Baptismo. “Nós cremos”: é a fé da Igreja, confessada pelos bispos reunidos em Concílio ou, de modo mais geral, pela assembleia litúrgica dos crentes. “Eu creio”: é também a Igreja, nossa Mãe, que responde a Deus pela sua fé e nos ensina a dizer: “Eu creio”, “Nós cremos”».[17]
Como se pode notar, o conhecimento dos conteúdos de fé é essencial para se dar o próprio assentimento, isto é, para aderir plenamente com a inteligência e a vontade a quanto é proposto pela Igreja. O conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvífico revelado por Deus. Por isso, o assentimento prestado implica que, quando se acredita, se aceita livremente todo o mistério da fé, porque o garante da sua verdade é o próprio Deus, que Se revela e permite conhecer o seu mistério de amor.[18]
Por outro lado, não podemos esquecer que, no nosso contexto cultural, há muitas pessoas que, embora não reconhecendo em si mesmas o dom da fé, todavia vivem uma busca sincera do sentido último e da verdade definitiva acerca da sua existência e do mundo. Esta busca é um verdadeiro «preâmbulo» da fé, porque move as pessoas pela estrada que conduz ao mistério de Deus. De facto, a própria razão do homem traz inscrita em si mesma a exigência «daquilo que vale e permanece sempre».[19]Esta exigência constitui um convite permanente, inscrito indelevelmente no coração humano, para caminhar ao encontro d’Aquele que não teríamos procurado se Ele mesmo não tivesse já vindo ao nosso encontro.[20]É precisamente a este encontro que nos convida e abre plenamente a fé.
11. Para chegar a um conhecimento sistemático da fé, todos podem encontrar um subsídio precioso e indispensável no Catecismo da Igreja Católica. Este constitui um dos frutos mais importantes do Concílio Vaticano II. Na Constituição apostólica Fidei depositum – não sem razão assinada na passagem do trigésimo aniversário da abertura do Concílio Vaticano II – o Beato João Paulo II escrevia: «Este catecismo dará um contributo muito importante à obra de renovação de toda a vida eclesial (...). Declaro-o norma segura para o ensino da fé e, por isso, instrumento válido e legítimo ao serviço da comunhão eclesial».[21]  
É precisamente nesta linha que o Ano da Fé deverá exprimir um esforço generalizado em prol da redescoberta e do estudo dos conteúdos fundamentais da fé, que têm no Catecismo da Igreja Católica a sua síntese sistemática e orgânica. Nele, de facto, sobressai a riqueza de doutrina que a Igreja acolheu, guardou e ofereceu durante os seus dois mil anos de história. Desde a Sagrada Escritura aos Padres da Igreja, desde os Mestres de teologia aos Santos que atravessaram os séculos, o Catecismo oferece uma memória permanente dos inúmeros modos em que a Igreja meditou sobre a fé e progrediu na doutrina para dar certeza aos crentes na sua vida de fé.
Na sua própria estrutura, o Catecismo da Igreja Católica apresenta o desenvolvimento da fé até chegar aos grandes temas da vida diária. Repassando as páginas, descobre-se que o que ali se apresenta não é uma teoria, mas o encontro com uma Pessoa que vive na Igreja. Na verdade, a seguir à profissão de fé, vem a explicação da vida sacramental, na qual Cristo está presente e operante, continuando a construir a sua Igreja. Sem a liturgia e os sacramentos, a profissão de fé não seria eficaz, porque faltaria a graça que sustenta o testemunho dos cristãos. Na mesma linha, a doutrina doCatecismo sobre a vida moral adquire todo o seu significado, se for colocada em relação com a fé, a liturgia e a oração.
12. Assim, no Ano em questão, o Catecismo da Igreja Católica poderá ser um verdadeiro instrumento de apoio da fé, sobretudo para quantos têm a peito a formação dos cristãos, tão determinante no nosso contexto cultural. Com tal finalidade, convidei a Congregação para a Doutrina da Fé a redigir, de comum acordo com os competentes Organismos da Santa Sé, uma Nota, através da qual se ofereçam à Igreja e aos crentes algumas indicações para viver, nos moldes mais eficazes e apropriados, este Ano da Fé ao serviço do crer e do evangelizar.
De facto, em nossos dias mais do que no passado, a fé vê-se sujeita a uma série de interrogativos, que provêm duma diversa mentalidade que, hoje de uma forma particular, reduz o âmbito das certezas racionais ao das conquistas científicas e tecnológicas. Mas, a Igreja nunca teve medo de mostrar que não é possível haver qualquer conflito entre fé e ciência autêntica, porque ambas, embora por caminhos diferentes, tendem para a verdade.[22]
13. Será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos.
Ao longo deste tempo, manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, «autor e consumador da fé» (Heb 12, 2): n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anélito do coração humano. A alegria do amor, a resposta ao drama da tribulação e do sofrimento, a força do perdão face à ofensa recebida e a vitória da vida sobre o vazio da morte, tudo isto encontra plena realização no mistério da sua Encarnação, do seu fazer-Se homem, do partilhar connosco a fragilidade humana para a transformar com a força da sua ressurreição. N’Ele, morto e ressuscitado para a nossa salvação, encontram plena luz os exemplos de fé que marcaram estes dois mil anos da nossa história de salvação.
Pela fé, Maria acolheu a palavra do Anjo e acreditou no anúncio de que seria Mãe de Deus na obediência da sua dedicação (cf. Lc 1, 38). Ao visitar Isabel, elevou o seu cântico de louvor ao Altíssimo pelas maravilhas que realizava em quantos a Ele se confiavam (cf. Lc 1, 46-55). Com alegria e trepidação, deu à luz o seu Filho unigénito, mantendo intacta a sua virgindade (cf. Lc 2, 6-7). Confiando em José, seu Esposo, levou Jesus para o Egipto a fim de O salvar da perseguição de Herodes (cf. Mt 2, 13-15). Com a mesma fé, seguiu o Senhor na sua pregação e permaneceu a seu lado mesmo no Gólgota (cf. Jo 19, 25-27). Com fé, Maria saboreou os frutos da ressurreição de Jesus e, conservando no coração a memória de tudo (cf. Lc 2, 19.51), transmitiu-a aos Doze reunidos com Ela no Cenáculo para receberem o Espírito Santo (cf. Act 1, 14; 2, 1-4).
Pela fé, os Apóstolos deixaram tudo para seguir o Mestre (cf. Mc 10, 28). Acreditaram nas palavras com que Ele anunciava o Reino de Deus presente e realizado na sua Pessoa (cf. Lc 11, 20). Viveram em comunhão de vida com Jesus, que os instruía com a sua doutrina, deixando-lhes uma nova regra de vida pela qual haveriam de ser reconhecidos como seus discípulos depois da morte d’Ele (cf. Jo 13, 34-35). Pela fé, foram pelo mundo inteiro, obedecendo ao mandato de levar o Evangelho a toda a criatura (cf. Mc 16, 15) e, sem temor algum, anunciaram a todos a alegria da ressurreição, de que foram fiéis testemunhas.
Pela fé, os discípulos formaram a primeira comunidade reunida à volta do ensino dos Apóstolos, na oração, na celebração da Eucaristia, pondo em comum aquilo que possuíam para acudir às necessidades dos irmãos (cf. Act 2, 42-47).
Pela fé, os mártires deram a sua vida para testemunhar a verdade do Evangelho que os transformara, tornando-os capazes de chegar até ao dom maior do amor com o perdão dos seus próprios perseguidores.
Pela fé, homens e mulheres consagraram a sua vida a Cristo, deixando tudo para viver em simplicidade evangélica a obediência, a pobreza e a castidade, sinais concretos de quem aguarda o Senhor, que não tarda a vir. Pela fé, muitos cristãos se fizeram promotores de uma acção em prol da justiça, para tornar palpável a palavra do Senhor, que veio anunciar a libertação da opressão e um ano de graça para todos (cf. Lc 4, 18-19).
Pela fé, no decurso dos séculos, homens e mulheres de todas as idades, cujo nome está escrito no Livro da vida (cf. Ap 7, 9; 13, 8), confessaram a beleza de seguir o Senhor Jesus nos lugares onde eram chamados a dar testemunho do seu ser cristão: na família, na profissão, na vida pública, no exercício dos carismas e ministérios a que foram chamados.
Pela fé, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história.
14. O Ano da Fé será uma ocasião propícia também para intensificar o testemunho da caridade. Recorda São Paulo: «Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade» (1 Cor 13, 13). Com palavras ainda mais incisivas – que não cessam de empenhar os cristãos –, afirmava o apóstolo Tiago: «De que aproveita, irmãos, que alguém diga que tem fé, se não tiver obras de fé? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se um irmão ou uma irmã estiverem nus e precisarem de alimento quotidiano, e um de vós lhes disser: “Ide em paz, tratai de vos aquecer e de matar a fome”, mas não lhes dais o que é necessário ao corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se ela não tiver obras, está completamente morta. Mais ainda! Poderá alguém alegar sensatamente: “Tu tens a fé, e eu tenho as obras; mostra-me então a tua fé sem obras, que eu, pelas minhas obras, te mostrarei a minha fé”» (Tg 2, 14-18). 
A fé sem a caridade não dá fruto, e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Fé e caridade reclamam-se mutuamente, de tal modo que uma consente à outra realizar o seu caminho. De facto, não poucos cristãos dedicam amorosamente a sua vida a quem vive sozinho, marginalizado ou excluído, considerando-o como o primeiro a quem atender e o mais importante a socorrer, porque é precisamente nele que se espelha o próprio rosto de Cristo. Em virtude da fé, podemos reconhecer naqueles que pedem o nosso amor o rosto do Senhor ressuscitado. «Sempre que fizestes isto a um dos meus irmãos mais pequeninos, a Mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40): estas palavras de Jesus são uma advertência que não se deve esquecer e um convite perene a devolvermos aquele amor com que Ele cuida de nós. É a fé que permite reconhecer Cristo, e é o seu próprio amor que impele a socorrê-Lo sempre que Se faz próximo nosso no caminho da vida. Sustentados pela fé, olhamos com esperança o nosso serviço no mundo, aguardando «novos céus e uma nova terra, onde habite a justiça» (2 Ped 3, 13; cf. Ap 21, 1).
15. Já no termo da sua vida, o apóstolo Paulo pede ao discípulo Timóteo que «procure a fé» (cf. 2 Tm 2, 22) com a mesma constância de quando era novo (cf. 2 Tm 3, 15). Sintamos este convite dirigido a cada um de nós, para que ninguém se torne indolente na fé. Esta é companheira de vida, que permite perceber, com um olhar sempre novo, as maravilhas que Deus realiza por nós. Solícita a identificar os sinais dos tempos no hoje da história, a fé obriga cada um de nós a tornar-se sinal vivo da presença do Ressuscitado no mundo. Aquilo de que o mundo tem hoje particular necessidade é o testemunho credível de quantos, iluminados na mente e no coração pela Palavra do Senhor, são capazes de abrir o coração e a mente de muitos outros ao desejo de Deus e da vida verdadeira, aquela que não tem fim.
Que «a Palavra do Senhor avance e seja glorificada» (2 Ts 3, 1)! Possa este Ano da Fé tornar cada vez mais firme a relação com Cristo Senhor, dado que só n’Ele temos a certeza para olhar o futuro e a garantia dum amor autêntico e duradouro. As seguintes palavras do apóstolo Pedro lançam um último jorro de luz sobre a fé: «É por isso que exultais de alegria, se bem que, por algum tempo, tenhais de andar aflitos por diversas provações; deste modo, a qualidade genuína da vossa fé – muito mais preciosa do que o ouro perecível, por certo também provado pelo fogo – será achada digna de louvor, de glória e de honra, na altura da manifestação de Jesus Cristo. Sem O terdes visto, vós O amais; sem O ver ainda, credes n’Ele e vos alegrais com uma alegria indescritível e irradiante, alcançando assim a meta da vossa fé: a salvação das almas» (1 Ped 1, 6-9). A vida dos cristãos conhece a experiência da alegria e a do sofrimento. Quantos Santos viveram na solidão! Quantos crentes, mesmo em nossos dias, provados pelo silêncio de Deus, cuja voz consoladora queriam ouvir! As provas da vida, ao mesmo tempo que permitem compreender o mistério da Cruz e participar nos sofrimentos de Cristo (cf. Cl 1, 24) , são prelúdio da alegria e da esperança a que a fé conduz: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Cor 12, 10). Com firme certeza, acreditamos que o Senhor Jesus derrotou o mal e a morte. Com esta confiança segura, confiamo-nos a Ele: Ele, presente no meio de nós, vence o poder do maligno (cf. Lc 11, 20); e a Igreja, comunidade visível da sua misericórdia, permanece n’Ele como sinal da reconciliação definitiva com o Pai.
À Mãe de Deus, proclamada «feliz porque acreditou» (cf. Lc 1, 45), confiamos este tempo de graça.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 11 de Outubro do ano 2011, sétimo de Pontificado.

BENEDICTUS PP. XVI


[1] Homilia no início do ministério petrino do Bispo de Roma (24 de Abril de 2005): AAS 97 (2005), 710.
[2] Cf. Bento XVI, Homilia da Santa Missa no Terreiro do Paço (Lisboa – 11 de Maio de 2010): L’Osservatore Romano (ed. port. de 15/V/2010), 3.
[3] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 113-118.
[4] Cf. Relação final do Sínodo Extraordinário dos Bispos (7 de Dezembro de 1985), II, B, a, 4: L’Osservatore Romano (ed. port. de 22/XII/1985), 650.
[5] Paulo VI, Exort. ap. Petrum et Paulum Apostolos, no XIX centenário do martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo (22 de Fevereiro de 1967):AAS 59 (1967), 196.
[6] Ibid.o.c., 198.
[8] Paulo VI, Audiência Geral (14 de Junho de 1967): Insegnamenti, V (1967), 801.
[9] João Paulo II, Carta ap. Novo millennio ineunte (6 de Janeiro de 2001), 57: AAS 93 (2001), 308.
[10] Discurso à Cúria Romana (22 de Dezembro de 2005): AAS 98 (2006), 52.
[11] Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Igreja Lumen gentium, 8.
[12] De utilitate credendi, 1, 2.
[13] Cf. Confissões, 1, 1.
[14] Conc. Ecum. Vat. II, Const. sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, 10.
[15] Cf. João Paulo II, Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 116.
[16] Santo Agostinho, Sermo 215, 1.
[18] Cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm. sobre a fé católica Dei Filius, cap. III: DS 3008-3009; Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina Dei Verbum, 5.
[19] Bento XVI, Discurso no «Collège des Bernardins» (Paris, 12 de Setembro de 2008): AAS 100 (2008), 722.
[20] Cf. Santo Agostinho, Confissões, 13, 1.
[21] Const. ap. Fidei depositum (11 de Outubro de 1992): AAS 86 (1994), 115 e 117.
[22] Cf. João Paulo II, Carta enc. Fides et ratio (14 de Setembro de 1998), 34.106: AAS 91 (1999), 31-32.86-87.

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