sexta-feira, 30 de setembro de 2011

XXVII DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano A - 02 de outubro de 2011)


I Leitura: Is 5, 1-7
Salmo Responsorial: 79 (80), 9 e 12. 13-14. 15-16. 19-20 (R/. Is 5, 7)
II Leitura: Fl 4, 6-9
Evangelho: Mt 21, 33-43 (Parábola dos vinhateiros)


Queridos irmãos, caros leitores,

Impossibilitado por uma viagem, para não deixar o nosso leitor sem um comentário acerca da Liturgia deste domingo (o XXVII do Tempo Comum), achamos conveniente publicar uma homília do Frei Raniero Cantalamessa, OFMCap, Pregador da Casa Pontifícia, datada de 05 de outubro de 2008. Com certeza, nosso internauta irá deliciar-se com as palavras inspiradas deste homem de oração e profunda interioridade, cujas pensamentos superam, de longe, os que costumeiramente explicitamos por ocasião dos domingos.

Desejo a todos vocês um santo Domingo, certos de que, no próximo 09 de outubro, estaremos juntos! Até lá! 

In Christo!

Seminarista Everson Fontes Fonseca


O REINO DE DEUS VOS SERÁ TIRADO



O contexto imediato da parábola dos vinhateiros homicidas se refere à relação entre Deus e o Povo de Israel. É para ele que historicamente Deus enviou primeiro os profetas e depois seu próprio Filho. Mas como todas as parábolas de Jesus, esta é uma «história aberta». Na relação Deus-Israel se traça a relação entre Deus e a humanidade inteira.





Jesus retoma e continua o lamento de Deus em Isaías da primeira leitura. É aí onde se deve buscar a chave de leitura e o tom da parábola. Por que Deus «plantou a vinha» e quais são os frutos que espera e que virá buscar? Aqui a parábola se afasta da realidade. Os vinhateiros humanos não plantam uma vinha nem lhe dão seus cuidados por amor à vinha, mas por seu benefício. 



Deus não é assim. Ele cria o homem, entra em aliança com ele, não por seu interesse, mas para favorecer o homem, por puro amor. Os frutos que espera do homem são o amor a Ele e a justiça com os oprimidos: coisas que servem para o bem do homem, não o de Deus.



Esta parábola de Jesus é terrivelmente atual aplicada à nossa Europa e, em geral, ao mundo cristão. Também neste caso deve-se dizer que Jesus foi «lançado fora da vinha», expulso por uma cultura que se proclama pós-cristã, ou inclusive anticristã. As palavras dos vinhateiros ressoam, se não nas palavras, pelo menos nos fatos de nossa sociedade secularizada: «Vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!».





Já não se quer ouvir falar mais de raízes cristãs da Europa, de patrimônio cristão; o homem secularizado quer ser o herdeiro, o dono. Sartre pôs na boca de um personagem seu estas terríveis declarações: «Já não há nada no céu, nem Bem, nem Mal, nem pessoa alguma que possa dar-me ordens. (...) Sou um homem, e cada homem deve inventar seu próprio caminho».



Esta que indiquei é uma aplicação, por assim dizer, de «amplo alcance», da parábola. Mas, quase sempre, as parábolas de Cristo têm também uma explicação de curto alcance, ou no nível individual: aplicam-se a cada pessoa, não só à humanidade ou à cristandade em geral. Somos convidados a perguntar-nos: que destino eu reservei para Cristo em minha vida? Como correspondo ao incompreensível amor de Deus por mim? Por acaso não o joguei para fora da minha casa, da minha vida... ou seja, eu o esqueci, ignorei?



Lembro que um dia eu estava escutando esta parábola durante uma Missa, enquanto estava bastante distraído. Chegado ao ponto em que se ouve o dono da vinha dizer para si: «Ao meu filho eles vão respeitar», tive um sobressalto. Entendi que aquelas palavras estavam dirigidas a mim, naquele momento. Agora o Pai celeste estava a ponto de mandar-me seu Filho no sacramento de seu Corpo e de seu Sangue; será que eu havia compreendido a grandeza do momento? Estava preparado para acolhê-lo com respeito, como o Pai esperava? Aquelas palavras me tiraram bruscamente dos meus pensamentos...





Na parábola dos vinhateiros homicidas há um sentido de amargura, de desilusão. Certamente não se trata de uma história com final feliz! Mas ao lê-la em profundidade, percebemos que ela fala do amor incrível de Deus por seu povo e por cada uma de suas criaturas. Um amor que no final, inclusive através dos diversos episódios de extravio e retorno, sairá sempre vitorioso e terá a última palavra.



As rejeições de Deus nunca são definitivas, são abandonos pedagógicos. Também a rejeição de Israel que ressoa veladamente nas palavras de Cristo, «o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produza frutos», pertence a este gênero, como o descrito por Isaías na primeira leitura. Vimos, por outro lado, que este perigo afeta também a cristandade, ou pelo menos muitas partes dela.



São Paulo escreve na Carta aos Romanos: «Pergunto, então: Acaso rejeitou Deus o seu povo? De maneira alguma. Pois eu mesmo sou israelita, descendente de Abraão, da tribo de Benjamim. Deus não repeliu o seu povo, que ele de antemão distinguiu! Desconheceis o que narra a Escritura, no episódio de Elias, quando este se queixava de Israel a Deus: Senhor, mataram vossos profetas, destruíram vossos altares. Fiquei apenas eu, e ainda procuram tirar-me a vida?».



(Tradução: Élison Santos. Revisão: Aline Banchieri)


Fonte:http://www.cantalamessa.org/pt/omelieView.php?id=394, site acessado em  30 de setembro de 2011.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

DOM DULCÊNIO LANÇA A SUA PRIMEIRA CARTA PASTORAL








CARTA PASTORAL
SANCTA ECCLESIA NOSTRA

DE SUA EX.CIA REV.MA
DOM DULCÊNIO FONTES DE MATOS
AO CLERO, ÀS PESSOAS CONSAGRADAS, CANDIDATOS À ORDEM SACERDOTAL E AOS FIÉIS LEIGOS

SOBRE A EUCARISTIA
E A SUA VIVÊNCIA EM RELAÇÃO À IGREJA E AOS FIÉIS




INTRODUÇÃO

            A nossa Santa Igreja é, por natureza, jubilar. Digo-vos por natureza porque o termo “jubileu” designa um estado de alegria, realização. Tal sentimento ela o encontra no mistério pascal oferecido por Jesus; Ele é a fonte de todo o nosso júbilo.
            A Esposa de Cristo não somente encontra em seu divinal fundador a sua feliz razão de ser como igualmente recebe Dele uma jovialidade que lhe é peculiar, pois contrasta em si mesma uma mistura ímpar de sempre estar suscetível ao suave sopro (governo) do Espírito Santo, que a conduz nas trilhas, por vezes, inéditas, bem como historicamente possui um patrimônio de fé que ultrapassa dois milênios. Esta é a mesma Igreja que, celebrando a Santa Memória de Jesus, prepara a sua vinda: “Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos Senhor a vossa morte, enquanto esperamos vossa vinda” (cf. Orações Eucarísticas. Missal Romano. Edição típica barsileira).
            O vocábulo “jubileu” também indica a celebração de uma data especialíssima, geralmente por ocasião de um aniversário. Pois bem, a partir do último vinte e um de agosto, iniciamos um ano jubilar alusivo ao cinquentenário de criação da Diocese de Palmeira dos Índios. É o chamado Jubileu de Ouro Diocesano. Neste sentido, é que desde 2007 estamos nos preparando para esta data comemorativa. Para fazermos uma festa digna de tal passagem, é que iremos culminar o ano jubilar com o Congresso Eucarístico Diocesano.
            Queremos demonstrar, diante do próprio Jesus, nosso reconhecimento de que Ele, como Cabeça da Igreja, guiou os passos da nossa Diocese ao longo deste meio século. Mesmo entre cruzes e vitórias, foi Jesus o artífice da nossa história. Ele, Senhor do tempo e da eternidade, quis que participássemos desta façanha. Com as suas diversas histórias, muitos homens e mulheres, independentemente das suas contribuições ou percalços para a vida da Igreja em nossas terras, contribuíram com o andar da História da nossa Igreja particular em seu meio século de existência.
            Cinquenta anos é uma data singular! Por isso queremos celebrá-la, não somente com entusiasmo, mas, principalmente, estando aos pés de Jesus, escutando a sua palavra tal como Maria, irmã de Lázaro, que escolheu a melhor parte (cf. Lc 10, 42). É, pois, em torno da mesa eucarística que, como uma práxis comum nestes dez lustros, estaremos contemplando como os Divinos Mistérios se cruzam com os mistérios de nossa existência.
            Quando a Igreja trata a Eucaristia como Mistério – e, de fato o proclama: “Eis o mistério da fé” – quase nunca nos questionamos qual a carga que tal expressão em si mesma porta. Não raramente, temos o pensamento de que a Eucaristia é mistério porque o milagre eucarístico em si é inexplicável à razão humana. Quem possui tal ideia, de per si, não está errado, já que absolutamente ninguém saberia dizer o que está por trás das mãos do sacerdote que, com as divinas palavras da consagração, transubstancia as matérias do pão e do vinho, no corpo e sangue de Jesus Cristo, nosso Senhor. A Eucaristia é mistério, não porque se pauta em uma ação humanamente incompreensível e divinamente possível, mas por conta da profundidade que tais palavras, gestos e atitudes deixados por Jesus e celebrados na missa possuem; e, pelos méritos destas benditas palavras pronunciadas pelo próprio Salvador e repetidas pelo sacerdote, nos são capazes de trazer o Pão dos Anjos, que, sensivelmente insípida, saboreia a nossa vida, confundindo a vida do comungante com a Aquele que a si mesmo oferece: Jesus Cristo mesmo, real em seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade.
            Como já afirmamos anteriormente, estamos vivenciando um Ano Jubilar. Com certeza, tal passagem não será, para nós, estéril: ela produzirá muitos frutos. Para garanti-los com maior profundidade, realizaremos em agosto do próximo ano o nosso I Congresso Eucarístico Diocesano. Este sacro evento será especial em nossa Diocese: passaremos uma semana mergulhados festivamente no mistério eucarístico através de estudos, conferências, celebrações cujo referencial será o Corpo e o Sangue do Salvador da humanidade.
            Para estas atividades, nos norteará a temática “Ide... Ele vos espera”. Esta é ao mesmo tempo um envio missionário (Ide) e um prêmio (Ele vos espera). É uma emissão missionária porque, continuamente, somos chamados a dar razão de nossa fé (cf. 1Pd 3, 15) a fim de irmos ao encontro Àquele que “nos escolheu para si antes da criação do mundo” (Ef 1, 4), não sozinhos, mas atrairmos para Ele, por meio de um testemunho de vida autêntico de união com Ele, os que ainda se acham insensíveis à Boa Nova. É uma esperança porque na Eucaristia encontramos aquele que nunca se enfastia de nos esperar, e, assim, sempre nos atrai ao seu Coração. Ele nos espera na Eucaristia porque no Sacrifício Pascal do Cordeiro já experimentamos o Céu presente: “Queridos irmãos, não vimos a uma festa temporal, mas a uma festa celestial, eterna. Não a expomos em sombras; aproximamo-nos dela na realidade” (Santo Ambrósio, século IV). É no Pão e Vinho transubstanciados que contemplamos Jesus em toda a sua glória: a Missa é a concretização do Apocalipse, onde vemos o Cordeiro Imolado no Altar, cercado por uma multidão incontável de anjos e homens. Para esta realidade, nos explicita o teólogo Joseph Ratzinger: “A liturgia é a parusia[1] contemplada antes do tempo, o ‘já’ que entra em nosso ‘ainda não’” (RATZINGER, Joseph. A New Song for the Lord. New York: Crossroad, 1997, p. 129) Logo, podemos concluir fielmente ancorados na fé da Igreja que quando Jesus vier novamente no fim dos tempos, ele não terá uma só gota de glória a mais do que neste momento, nos altares e nos sacrários de nossas igrejas. Deus habita entre a humanidade agora mesmo, o Céu nos espera, a Missa nos espera, Jesus nos espera, pois a missa é o céu na terra.          
             
CAPÍTULO I
O DESENVOLVER DE UMA VIVÊNCIA EUCARÍSTICA NA IGREJA


Os sinais prefigurativos no Antigo Testamento

Em sua última Carta Encíclica, “Ecclesia de Eucharistia”, O Bem-Aventurado João Paulo II afirmou categoricamente: “A Igreja vive da Eucaristia. Esta verdade não exprime apenas uma experiência diária de fé, mas contém em síntese o próprio núcleo do mistério da Igreja” (n. 1). Porém, antes de Jesus instituir a dádiva eucarística como sublime alimento da Igreja nascente, podemos visualizar sinais prefigurativos ao longo da História da Salvação, ilustrando, como que pedagogicamente, a realidade sacramental. Desta forma, paulatinamente, Deus preparava, ainda que de forma velada, o coração do Antigo Israel para recepcionar “o Verbo que se fez carne e habitou no meio de nós” (cf. Jo, 1, 14).
Logicamente, esta prefiguração da Divina Eucaristia é localizada no Antigo Testamento. Aí, o emprego do pão e do vinho não só era feito por conta de estas duas matérias fazerem parte do cardápio da dieta mediterrânea, mas para expressar aspectos e momentos da aliança de Deus com o seu povo.
Já no primeiro livro canônico da Sagrada Escritura, o livro do Gênesis, vemos como uma primeira figura a passagem em que Melquisedec (Malki-Sédeq), rei de Salém e sacerdote do Deus vivo, oferece como sacrifício ao Altíssimo as matérias do pão e do vinho (cf. Gn 14, 17-20). Neste personagem, desde tempos mais remotos, a Igreja viu um prenúncio dos verdadeiros Sacerdote e Sacrifício: Jesus, Sumo e Eterno Sacerdote que na estela da cruz, se sacrifica em uma oblação de suave odor. Para nos auxiliar nesta reflexão, a Carta aos Hebreus, nos capítulos quinto, sexto e sétimo, faz um paralelo entre Cristo e o misterioso “rei de Salém e Sacerdote do Deus Altíssimo” (cf. Gn 14, 18). A partir daqui, muitos outros pensadores do cristianismo se pronunciaram acerca desta primeira prefiguração. Santo Tomás de Aquino foi um deles: “O sacramento de Melquisedec, anterior a lei mosaica, se parece mais ao sacramento da nova lei na matéria, já que, como disse o texto, ele ofereceu pão e vinho prefigurando com a oblação do pão e do vinho o sacrifício do Novo Testamento. Não obstante, o sacramento da lei mosaica se parece mais a realidade significada pelo sacramento, ou seja, a paixão de Cristo, como é evidente no caso do cordeiro pascal e outros ritos semelhantes. E essa troca de signos sacramentais foi estabelecida assim para que, dada a continuidade no tempo, não se induzisse a pensar na continuidade do mesmo sacramento” (Suma Teológica III Qu.61 a.3).
Sabemos que Melquisedec aparece como o primeiro sacerdote mencionado nos textos bíblicos. Além de ser uma figura misteriosa, concentrava em si uma combinação inusitada para a tradição vétero-testamentária: sacerdote e rei. Na Bíblia, figura semelhante só Jesus. O Gênesis descreve Melquisedec como rei de Salém, terra que depois seria “jeru-salém”, que, etimologicamente é traduzida por “Cidade da Paz”. O sacrifício de Melquisedec foi inédito por não envolver animal algum. Ele ofereceu pão e vinho, tal como Jesus na Última Ceia.
Outra preconização a temos na véspera da Páscoa judaica. Ainda no Egito, oprimidos como escravos, os hebreus, impulsionados pelo próprio Deus que lhes falava através de Moisés, ritualizaram em refeição aquilo que iriam experimentar no dia seguinte: a páscoa (do hebraico: פסח, pessach) passagem. Mas passagem de que? Da condição de sujeitos escravos a de senhor, para um momento histórico insuperavelmente melhor: a de libertos pelo próprio Senhor, Deus de seus pais. Este mesmo Senhor iria conduzi-los rumo à terra que emana “leite e mel” (cf. Ex 3, 8). Esta ceia comemorativa deveria ser celebrada não somente naquela data, mas rememorativamente todos os anos: “Conservareis a memória daquele dia, celebrando-o com uma festa em honra do Senhor: fareis isso de geração em geração, pois é uma instituição perpétua. Comereis pão sem fermento durante sete dias. Logo ao primeiro dia tirareis de vossas casas o fermento, pois todo o que comer pão fermentado, desde o primeiro dia até o sétimo, será cortado de Israel” (Ex 12, 14-15). Interessante as palavras: “fareis isso de geração em geração, pois é uma instituição perpétua”, já que, até hoje, o povo judeu, pela data da páscoa, cumpre este preceito mosaico. Entretanto, nós cristãos preceituamos a ceia pascal como memorial da Aliança instituída pelo Senhor para nós: em todos os dias de sua história bimilenar, a Igreja de Cristo realiza o banquete pascal, principalmente no dia primeiro e oitavo das nossas calendas: o Domingo – Dies Domini, Dia do Senhor. Neste dia e com a refeição eucarística nós não apenas rememoramos, mas atualizamos também uma páscoa, uma passagem: o nosso Cordeiro, Jesus Cristo, vence a morte, ressuscita e nós com Ele. Por meio do Novo Moisés, nós somos libertados da escravidão (pecado) do Egito (símbolo do império das trevas, ao qual pertencíamos), passamos pelo grande Mar (morte batismal) e nos dirigimos à Terra Prometida (o Céu que, pelo Sacrifício Eucarístico, já o experimentamos realmente ainda travestidos de nossa temporalidade; é o “já e o ainda não”) onde brotam leite e mel (convívio com o próprio Deus).
Na Páscoa Eucarística recebemos o Pão Cristo, o alimento mais puro que nunca antes fora visto. De maneira real, não simbólica como os pães ázimos dos judeus, nosso Pão Jesus não é conspurcado pelo fermento do mundo porque ele é plenamente imaculado, já que desceu do céu para, alimentando-nos, salvar, como veremos adiante.
Ainda localizamos outra figuração da Eucaristia no Antigo Testamento, no livro do Êxodo, no episódio do envio do maná (cf. Ex 16). Neste trecho, vemos que, estando no deserto, poucos dias depois da miraculosa intervenção do Senhor e consequente abertura e passagem pelo Mar Vermelho, os hebreus, libertos dos egípcios começam a sentir fome e murmuram contra o Senhor, murmurando contra Moisés e Aarão: “Oxalá tivéssemos sido mortos pela mão do Senhor no Egito, quando nos assentávamos diante das panelas de carne e tínhamos pão em abundância! Vós nos conduzistes a este deserto, para matardes de fome toda esta multidão” (Ex 16, 3). O povo, mergulhado na ingratidão de ter sido libertado da escravidão com a mão poderosa do Senhor, é capaz de trocar a sua liberdade por uma panela de carne e por uma fatia de pão. Logo, verdadeiramente, não reconhecem no Senhor o seu libertador e providente Deus. Será que o Senhor, que estupendamente tirou da opressão dos egípcios os israelitas, iria deixá-los minguar de fome no deserto? Este pensamento só poderia habitar no coração endurecido daqueles homens fracos na fé em seu Libertador. Quantas vezes caímos na presunção de pensar que o mesmo Deus que nos libertou do poderio do pecado e da morte está nos deixando à mercê de nossa própria sorte nos desertos da nossa existência humana? Quando nos debatemos nesta imaginação não seria porque estamos com os olhos vendados e o coração entorpecido pelos nossos caprichos e meras razões humanas? Nunca iria nos acontecer tal desventura: Deus sempre está conosco, pois ele é o Emanuel (em hebraico שכינה, Shekinah).
Mesmo com as ingratidões do povo eleito, Deus promete a Moisés: “Vou fazer chover pão do alto do céu” (Ex 16, 4). Assim faz-nos recordar que, em seu amor, mesmo sendo retribuído com a indiferença do povo, Deus alimenta Israel com um alimento celeste: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca” (Is 49, 15). O atributo celeste designa a proveniência daquele alimento, não a sua natureza. Tal certeza, encontramos no discurso de Jesus sobre o Pão da Vida trazida por João, no capítulo sexto do seu Evangelho: “Perguntaram eles: Que milagre fazes tu, para que o vejamos e creiamos em ti? Qual é a tua obra? Nossos pais comeram o maná no deserto, segundo o que está escrito: Deu-lhes de comer o pão vindo do céu (Sl 77,24). Jesus respondeu-lhes: Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas o meu Pai é quem vos dá o verdadeiro pão do céu; porque o pão de Deus é o pão que desce do céu e dá vida ao mundo” (Jo 6, 30-33). Portanto, concluímos que o ‘Pão de Deus’ não é designado pela proveniência, mas pela proeminência: é o próprio Deus que se dá em alimento. Dessa forma, a Eucaristia, com toda justeza, é, segundo a Tradição da Igreja, bem como no dizer de Santo Tomás de Aquino: Panis angelicus: Pão angélico, Pão dos Anjos; Pão Celeste. E o Aquinate ainda escreve: “Vel dicitur de caelo inquantum erat figura veri Panis Caelestis Domini Nostri Iesu Christi” (Thomas Aq. s Johannis 43); enquanto o maná possui um sentido material – já que apenas saciou a fome estomacal dos hebreus transeuntes pelo deserto – por isso, é figura, a Eucaristia possui um sentido verdadeiro, espiritual porque alimenta o Povo da Nova e Eterna Aliança na pré-degustação do céu; ou seja, enquanto viandantes neste mundo, somos nutridos verdadeiramente pelo Pão que nos saciará na eternidade.
            O providentíssimo Deus, não achando suficiente saciar os hebreus apenas com pão chovido do céu, envia-lhes a tão ambicionada carne. Mas o que seria este alimento senão uma prefiguração da Eucaristia? Vale recordar: “Ouvi as murmurações dos israelitas. Dize-lhes: esta tarde, antes que escureça, comereis carne” (Ex 16, 12); mais valor ainda se compararmos com a seguinte passagem: “Ao declinar da tarde, pôs-se Jesus à mesa com os doze discípulos [...] Durante a refeição, Jesus tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: Tomai e comei, isto é meu corpo” (Mt 26, 20. 26). Deus nos alimenta; não com carne de animais (como as codornizes), mas com a sua própria carne. É na experiência com a carne de Jesus - a mesma que foi crucificada - que contemplamos antecipadamente a sua glória: esplendor que se inicia na cruz, com seu divino corpo dilacerado, pregado no madeiro, e culmina com a sua ressurreição e ascensão, e que, para nós, já é prevista na Eucaristia: corpo sacramental de Jesus. Na perícope do maná, temos Moisés que diz: “Esta tarde, sabereis que foi o Senhor quem vos tirou do Egito [...] Isso acontecerá quando o Senhor vos der, esta tarde, carne para comerdes” (Ex 16, 6. 8a). É pela doação da carne do Senhor como alimento a partir da cruz que temos a garantia de que o Cristo nos redimiu, resgatando-nos do poder do maligno.
O Senhor nos sacia de si e nos salva. Porém, entendamos como saciedade não um conformar-se fisiológico, tal como os alimentos materiais; mas como uma satisfação que sempre nos impele a uma necessidade de ser ainda mais alimentados. Por este mais, nunca o troquemos por melhor, já que na Eucaristia o Senhor se dá a nós por inteiro; e sim o tenhamos na conta de sermos cada vez mais dependentes deste alimento salutar. Salutar porque sempre nos vivifica inteiramente, ao contrário do maná dado aos hebreus que só garantia o sustento físico por apenas um determinado espaço de tempo: “Vossos pais, no deserto, comeram o maná e morreram. Este é o pão que desceu do céu, para que não morra todo aquele que dele comer” (Jo 6, 49-50).
Ainda no livro do Êxodo, o Senhor, ao determinar para o povo de Israel as oferendas que desejaria para a Tenda Reunião, quer que ofertem pães: “Dize aos israelitas que me façam uma oferta. Aceitareis essa oferenda de todo homem que a fizer de bom coração [...] Farás uma mesa de madeira de acácia, cujo comprimento será de dois côvados, a largura de um côvado e a altura de um côvado e meio [...] Porás sobre essa mesa os pães da proposição, que ficarão constantemente diante de mim” (Ex 25, 2. 23. 30). Para que serviam estes pães oferecidos ao Senhor no santuário da Antiga Lei? Eles eram oferecidos a cada sábado a Deus. Conhecidos como pães da proposição, eram colocados sobre uma mesa, que estava no recinto do templo (cf. Nm 4, 7: “Meterão um pano de púrpura violeta sobre a mesa dos pães da proposição, e porão nela os pratos, os vasos, as taças e os copos para as libações; o pão perpétuo estará sobre ela”). Só os sacerdotes os podiam comer (“Esses pães serão propriedade de Aarão e de seus filhos, que os comerão no lugar santo; isso será para eles uma coisa santíssima entre as ofertas feitas pelo fogo ao Senhor. É uma lei perpétua.” – Lv 24, 9). O que seriam estes pães sobre a mesa que, embebido em libações[2], eram ofertados ao Senhor? Se não é mais um prefigurativo da oferta da Igreja do pão e do vinho deixados no altar como oferenda de inigualável odor para Deus? Este ofertório do Novo Povo de Deus é tão agradável que o Pai, por meio do Espírito Santo, nos oferta o seu Filho através da transubstanciação dos dons oblatos no Corpo e Sangue de Jesus, Filho Unigênito do Pai.
Também, no Antigo Testamento, temos a importância do vinho. Já no livro dos Salmos, encontramos: “Fazeis brotar a relva para o gado, e plantas úteis ao homem, para que da terra possa extrair o pão e o vinho que alegra o coração do homem, o óleo que lhe faz brilhar o rosto e o pão que lhe sustenta as forças” (Sl 103, 15). Nesta passagem, lemos que o vinho é fruto da terra, obra da criação. Esta concepção nunca foi perdida de vista na liturgia católica, pelo contrário, na apresentação dos dons, temos a seguinte oração: “Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho humano, que agora vos apresentamos e que para nós se vai tornar Vinho da salvação” (cf. Ordinário da Missa com o Povo, Missal Romano).
Na Escritura, o fruto da videira é sinal de festa e anúncio da alegria, e, a partir daqui, já com Jesus, na instituição da Eucaristia na Última Ceia, traz-nos, de fato, a salvação, como veremos posteriormente. O vinho é também cálice de dor, pisado no lagar, que representa o sangue derramado pelo Servo Sofredor: “Quem é aquele que vem de Edom, de Bosra, as vestes tintas, envolvido num traje magnífico, altaneiro na plenitude de sua força? Sou eu, que luto pela justiça e sou poderoso para salvar. Por que, pois, tuas roupas estão vermelhas como as vestimentas daquele que pisa num lagar? Eu pisei sozinho o lagar, e ninguém dentre os povos me auxiliou. Então eu os calquei com cólera, esmaguei-os com fúria; o sangue deles espirrou sobre meu vestuário, manchei todas as minhas roupas. É que eu desejava um dia de vingança, e o ano da redenção dos meus havia chegado. Olhei então, e não houve pessoa alguma para me ajudar; estranhei que ninguém me viesse amparar; então apelei para meu braço e achei forças na minha indignação. Por isso, na minha cólera, arrasei os povos, na minha fúria triturei-os, fazendo correr seu sangue pela terra” (Is 63, 1-6).
Nos episódios da vida de Elias é perceptível uma idealização da Eucaristia, ou pelo menos dos seus efeitos na vida dos comungantes. Em 1Rs 19, 5-8, temos o profeta Elias que, imediatamente após a manifestação de Deus no monte Carmelo contra os profetas de Baal, está ameaçado de morte por Jezabel, esposa de Acab, rei da Samaria. Entristecido e temeroso, o profeta ruma à Judá. E, no deserto, debaixo de um junípero, desejou a sua própria morte, adormecendo aí. Inesperadamente, Elias é acordado por um anjo que lhe ordena: “Levanta-te e come” (1Rs 19, 5). O tesbita obedece, come pão e torna a deitar-se, ao passo em que o anjo novamente ordena: “Levanta-te e come, porque tens um longo caminho a percorrer” (Ibidem, 7). E assim o fez. A partir disto, Elias andou quarenta dias até o Horeb. Na Eucaristia isto também acontece conosco: em Elias idealmente em vista do Pão Eucarístico. Nas aflições da vida, quando somos ameaçados pela força do mal que nos tenta afastar de Deus, que, enquanto não consegue, nos aterroriza e nos ronda, quando acreditamos estar abandonados a nossa própria sorte, somos convidados pelo próprio Senhor a nos alimentar por um pão oferecido por ele mesmo, tal como o anjo fez com o profeta Elias. Na Bíblia, o número quarenta adicionado ao termo deserto simboliza tanto a provação, como a renovação espiritual. E, assim como Elias interiormente renovado peregrinou até o Horeb após a provação, nós, que degustamos o Corpo do Senhor, após o vencimento daquilo que obstaculiza e nos quer tornar sujeitos ao mal, peregrinaremos na trilhas da vida rumo à verdadeira montanha do Senhor, o tabernáculo do Altíssimo: o Céu.
Em várias outras perícopes do Antigo Testamento encontramos o anúncio do “festim messiânico’ do Reino, verdadeira figura do banquete eucarístico, no qual o pão e o vinho são elementos integrantes.    

“Eu sou o Pão da Vida”

Et Verbum caro factum est et habitavit in nobis et vidimus gloriam eius gloriam quasi unigeniti a Patre plenum gratiae et veritatis” – E o Verbo se fez carne e habitou entre nós e vimos a sua glória, a glória que o Filho único recebe do seu Pai, cheio de graça e de verdade (Jo 1, 14), assim São João afirma no prólogo de seu Evangelho, ao tratar da Encarnação do Verbo Eterno de Deus. O evento máximo da história, onde o céu e a terra se intercambiam, é o início da visualização das realidades que o Pai resguardou para a humanidade desde toda a eternidade.
Deus se encarna! Neste sentido, escreve São João Crisóstomo: “E havendo dito que tem nascido de Deus os que lhe recebem, expôs a causa desta honra, a saber: Que o Verbo se havia feito carne. O verdadeiro Filho de Deus se fez Filho do homem, para poder fazer aos filhos dos homens filhos de Deus. E quando ouvires que o Verbo se fez carne, não te turbes, porque não converte sua essência em carne (pensar de tal forma seria verdadeiramente ímpio) mas permanece como tal e como é, ainda que tome a forma de servo. Como existem alguns que dizem que são fantasias tudo o que afeta a Encarnação, para destruir esta blasfêmia usou as palavras: “Se fez carne”, querendo expressar não a mutação da substância, e sim a união a verdadeira carne. E se dizem que Deus é onipotente, como pode transformar-se em carne? Contestaremos dizendo que não é possível a transformação daquela natureza imutável” (Crisóstomo, Sobre o Evangelho de João, hom. 10). Assim, a Encarnação de Deus é algo que, ao mesmo em que é escandaloso, é também misterioso, pois como é possível um ser invisível, incontinente e tantos outros atributos que são inerentes à substância da realidade divina se acharem encerradas em um corpo sem deixar de ser aquilo que é: Deus?
Deus se encarna! No evento da vinda do Filho em um corpo semelhante ao nosso, exceto no que se refere à imperfeição do pecado, temos uma inteireza, já que Jesus se encarnou, nasceu, cresceu, sofreu, morreu e ressuscitou para que o homem, Nele, pudesse encontrar a salvação. Logo, antes mesmo de Jesus afirmar “Isto é o meu corpo”, oferecendo-nos a sua carne sacramental nas espécies eucarísticas, o Pai oferece ao Filho uma carne, oferecendo à humanidade um Redentor. Dessa forma, se para os incrédulos a Encarnação de Deus é algo inimaginável, o que dirão do próprio Deus fazer-se pão? Estes insanos, de olho apenas na grandiosidade imensa de Deus, esquecem-se de que para o seu poder “nada é impossível” (Lc 1, 37), por isso, dizemos que assim como a Encarnação, a Eucaristia é um mistério.
Já na vida pública de Jesus explicitada pelos quatro evangelhos, temos os episódios da multiplicação dos pães. Estas passagens são também tidas como prefigurações da Eucaristia. As cenas evangélicas fazem-nos reportar ao povo de Israel que, no deserto, murmurava contra Moisés, Aarão e até mesmo contra o próprio Deus querendo pão e carne (cf. Ex 16). Deus lhes envia aquilo que eles ansiavam. Nas multiplicações dos pães, temos o contrário: um novo povo no deserto que nada desejava a não ser estar com o próprio Deus, o qual mais tarde se autonomeará “Pão”: “Ego Sum Panis vivus” (Jo 6, 51); “Hoc est corpus meum” (Mc 14, 22; Lc 22, 19).
Dentre as catequeses feitas por Jesus nesta ocasião e consequentemente apresentadas pelos evangelistas de maneira unânime, tais como partilha, desprendimento, confiança na providência, temos uma que é inédita: o discurso de Jesus apresentação por São João, o Teólogo. O ‘Discípulo Amado’ nos mostra Jesus afirmando: “Ego Sum Panis vivus qui de Caelo descendi” (Jo 6, 51), com esta afirmativa, Jesus acena que o mérito não está no milagre da multiplicação dos pães em si, mas em um milagre muito maior e mais profundo: o próprio Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, faz-se pão para dar vida. Neste sentido, muitos santos, desde a época da patrística, se debruçaram e viram no capítulo sexto do Evangelho de João uma alocução do Senhor que prefigura de maneira muito direta a Eucaristia. Dentre estes, São João Crisóstomo diz: “E como as multidões instavam pedindo o alimento corporal, recordando-se daquele alimento que se havia concedido a seus pais, com o fim de manifestar-lhes que tudo aquilo não foi outra coisa mais que uma figura da verdade que tinham presente, faz menção da comida espiritual dizendo: ‘Eu sou o pão da vida’. Chama-se a si mesmo pão da vida porque encerra em si nossa vida toda, tanto a presente como a vindoura” (Crisóstomo, Sobre o Evangelho de João, hom. 45). Por isso, dizemos que pela participação eucarística antegozamos a Vida sempre nova que brota do Cristo. A Eucaristia gera Vida em nós através desta consciência. Faz-nos inquietos para uma adesão a uma mudança constante e radical de vida, divinizando-nos em Cristo. Daí, Bento XVI afirmar na Exortação Apostólica Sacramentum Caritatis: “De fato, comungando o corpo e o sangue de Jesus Cristo, vamo-nos tornando participantes da vida divina de modo sempre mais adulto e consciente” (n. 70). 
     
A Instituição da Divina Eucaristia. A “ceia” do Calvário e da Ressurreição

Para refletirmos acerca da instituição da Santíssima Eucaristia, desejo tomar o texto da Oração Eucarística I, também chamada de Cânon Romano, que nós, por ocasião da Missa Vespertina da Ceia do Senhor, costumamos rezar. Em seu original, a Igreja reza: “Qui prídie, quam pro nostra omniúmque salúte paterétur, hoc est hódie, accépit panem in sanctas ac venerábiles manus suas, et elevátis óculis in caelum ad te Deum Patrem suum omnipoténtem, tibi grátias agens, benedíxit, fregit, dedítque discípulis suis, dicens: Accípite, et manducáte ex hoc omnes. Hoc est enim Corpus meum” (cf. Ordo Missae: Missale Romanum), o que traduzimos como: O qual na véspera, em que ia padecer para a salvação de todos nós, isto é, hoje, tomou o pão em suas santas e admiráveis mãos, e elevou os olhos para o céu a ti, ao seu Deus Pai onipotente, dando graças, abençoou-o, partiu, e o deu aos seus  discípulos, dizendo: Tomai, todos, e comei isto. Isto é o meu Corpo. Com a sentença “Hoc est hodie” – Isto é, hoje – a liturgia da Quinta-Feira Santa sublinha a dignidade particular que esta data possui. Foi naquela data que Ele se deu, entregando-se a Si mesmo para sempre no sacramento do seu Corpo e Sangue. Revivemos este hoje em todas as Missas. É o que em Liturgia chamamos de ‘Hoje Teológico’. No texto do Missal, este “hoje” é, antes de tudo, o memorial da Páscoa de então. E, não para aí! Com o texto trazido pelo Cânon Romano para aquela data, adentramos neste “hoje”. Pode parecer até redundância, mas o nosso hoje contactua-se com o hoje da época de Jesus, daquela quinta-feira bendita, véspera da morte do Senhor. Com o termo “hoje”, a Igreja, pela liturgia, induz-nos a olhar com profunda atenção interior para o mistério pascal revivido todos os anos no Tríduo da Páscoa com as palavras com que o mesmo mistério se exprime, e, a partir da Páscoa, cotidianamente em nossas Missas.
No texto latino do Cânon Romano, no trecho que apresentamos acima, e que nós livremente traduzimos, percebemos que a narração parece estar desfocada: “Qui prídie”, ou seja, “O qual na véspera”. Isto acontece porque este fragmento concorda com o que o Cânon traz anteriormente: “... se converta para nós no Corpo e Sangue de vosso amado Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo”. O texto, lido continuamente, nos oferece esta impressão, que é a autêntica, como que uma mesma oração. Entendamos, por hora, oração como frase, tal como a sintaxe da língua portuguesa nos apresenta. Esta é uma oração que designa não uma mera narração de fatos, nem um punhado de palavras que relembram a atitude de Jesus, mas é uma oração, gramaticalmente falando, que é uma oração, elevação de espírito a Deus. É uma oração de consagração! Somente aqui se realiza a transformação substancial de nossas oferenda deixadas no altar, pão e vinho, em Corpo e Sangue do próprio Senhor.
Nesta narração oferecida pela Oração Eucarística I, vemos a Igreja que reza em total acordo com o que aconteceu no cenáculo na véspera da Paixão. Ela contempla e repete, no sacrifício eucarístico, o agir de Jesus descrito na oração: “dando graças, abençoou-o”. Jesus realiza o que em hebraico é denominado de berakha (ברכה) e, em grego, eucharistia e eulogía (respectivamente, εὐχαριστία e ευλογία). O Senhor agradece. Ao imitarmos Jesus no agradecimento ao Pai, o fazemos porque reconhecemos humildemente que tudo nos vem de Deus. É um relacionamento bonito; é um mistério este relacionamento entre o Filho e o Pai que deve roubar a nossa atenção: Deus agradece a Deus! O Filho agradece e restitui ao Pai o pão, “fruto da terra e do trabalho do homem”, para novamente receber d’Ele. Agradecer e abençoar se confundem harmoniosamente. Esta nossa afirmativa pode soar estranhamente, porém o que foi entregue nas mãos de Deus por Deus (não dois, mas um só Deus), volta abençoado e transubstanciado. Toda esta realidade se encontra inerente nas palavras “deu graças, abençoou e partiu”; isto é Eucaristia.
O texto não se detém na narração da Ceia, por isso continua falando sobre a maneira em que Jesus tomou o pão: “Em suas santas e veneráveis mãos e elevou os olhos para o céu (para Deus)”. Fazendo esta observação, a Igreja quer, como discípula, aprender a rezar como o seu Mestre, ao tempo em que, praticando tal ato, como mestra, o ensina aos seus filhos para que, assim como ela, pelos sentidos também encontremos Deus. E a Igreja, por meio dos sacerdotes, nunca cessa de pelas mãos levar as pessoas ao encontro com Deus. Prestemos atenção que as mãos dentro da Teologia do Setenário Sacramental são imprescindíveis. Em todos os sacramentos, inclusive no da Eucaristia, as mãos ungidas do ministro ordenado realizam maravilhas, tal como Jesus fez. As mãos dos que se configuram a Cristo por meio do Sacramento da Ordem são as mesmas mãos de Jesus, porque são mãos que abençoam, perdoam, curam, se impõem, alimentam...
Jesus volve o seu olhar para os céus. Com esta atitude, testamenta para a Igreja a constância em levantar o coração e olhos para Deus, afastando-os da transitoriedade do mundo, mesmo estando peregrina neste. Ora, os olhos são as janelas da alma. Estas “vidraças oculares”, se desviadas do seu verdadeiro fitar (Deus), potencialmente podem nos levar às tentações. E, quando falo de olhos, não entendamos apenas o órgão ocular em si mesmo, no sentido estrito do termo, mas os olhos do nosso íntimo. Peçamos ao Senhor que nunca retiremos o nosso humilde olhar absorto nas realidades divinais. Que nunca sejamos distraídos por deslumbramentos que nos furtam o olhar de Deus. E, com igual fervor, imploremos para que sejamos capazes de ver o mundo com o olhar terno e misericordioso de Deus, a fim de que os que se encontram distantes da Graça se sintam interpelados pelo olhar provocante de Jesus através de nós.
“Partiu o pão, e o deu”. A partilha é um gesto característico de Jesus (cf. Lc 24, 13ss.). É igualmente característico ao pai de família e ao que é hospitaleiro. Na dinâmica de Jesus partilhar é unir, pois através desta partição é criada a comunhão. Na Hóstia quebrada, Jesus se dá em um único sacrifício, iniciado na Última Ceia, consumado no escândalo da cruz, perpetuado na Missa. Partilhar é próprio de quem ama. Ele nos amou, por isso se parte em alimento para partilhar conosco a vida divina, “para a vida do mundo”, a fim de que este se torne um lugar de transformação para o homem, de ressurreição do fiel.
Símili modo postquam coenátum est, accípiens et hunc praeclárum Cálicem in sanctas ac venerábilis manus suas: item tibi grátias agens, benedíxit, dedítque discípulis suis, dicens: Accípite, et bíbite ex eo omnes. His est enim Calix Sánguinis mei, novi et aetérni testaménti: mystérium fídei: qui pro vobis et pro multis effundétur in remissiónem peccatorum” (Ordo Missae: Missale Romanum), o que traduzimos como: De igual modo, depois que ceou, tomou o preclaro  cálice  em suas santas e veneráveis mãos: igualmente deu graças a ti, abençoou-o, deu aos seus discípulos, dizendo: Tomai, todos, e bebei isto. Este é o Cálice do meu Sangue, do novo e eterno testamento: mistério da fé: que por vós e por muitos será derramado em remissão dos pecados. Ao adjetivar o cálice como preclaro, o Senhor Jesus nos leva ao Salmo 22: “Preparais para mim a mesa à vista de meus inimigos. Derramais o perfume sobre minha cabeça, e transborda minha taça” (v. 5). Logo, temos “calix preclarus” como sinônimo de cálice transbordante. Neste sentido, o Papa Bento XVI afirma: “Sim, o Senhor prepara-nos uma mesa no meio das ameaças deste mundo e dá-nos o cálice sagrado – o cálice da grande alegria, da verdadeira festa, pela qual todos anelamos – o cálice cheio do vinho do seu amor” (Homilia, 9 de abril de 2009). O termo cálice, dentro da Escritura, repassa-nos o significativo de bodas. Portanto, a Eucaristia não é uma festa qualquer; não é um banquete de qualquer sorte. Eucaristia são núpcias da Igreja com o seu Senhor, cuja Aliança é o próprio Deus que é também o Esposo. Esta realidade nupcial se embute tranquilamente em “novum et aetérnum testaméntum”; é uma aliança que nunca envelhecerá, tampouco extinguir-se-á. Mas, porque a Igreja não utilizou o termo ‘Aliança’ nas palavras da Consagração? Porque, antigamente, no estudo da Escritura, este vocábulo era compreendido como um ato acordado entre duas partes iguais. Naturalmente, nós não somos iguais a Deus, pois, por sermos criaturas, somos infinitamente inferiores a Ele. Nestas bodas singulares que são realizadas entre Deus e a humanidade, apenas Ele se dá, deixando-nos o seu amor, acima de tudo, deixando-Se como dom a nós. Com o decorrer dos séculos o termo Aliança passou a ser entendido pela Mãe Igreja com o significado que conhecemos habitualmente e não em diversamente à palavra testamento.
No discurso do Bom Pastor, temos: “Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. Tal é a ordem que recebi de meu Pai” (Jo 10, 18). Jesus afirma categoricamente que ninguém lhe arrancará a vida: livremente Ele a entrega, por isso a retoma conforme a sua vontade. Fixados neste discurso que antecede à Ceia, associando-o a este momento sublime, o Cordeiro de Deus antecipa a hora de sua morte e ressurreição. O que na Sexta, Sábado e Domingo da Páscoa acontecerá com Ele, já se cumpre antecipadamente na Ceia, graças à liberdade de seu amor. Ele entrega a sua vida, retomando-a na ressurreição, partilha esta vida divinal e sempre nova com os seus amigos, ou seja, conosco.

Eucaristia: ágape e dom

A Eucaristia é o sacrifício da Nova Aliança. Manifesta através dos tempos a paixão e a ressurreição de Jesus Cristo, Senhor Nosso, como já afirmamos anteriormente. Esta consciência já estava presente desde a época do cristianismo primitivo.  Assim, desde o início, a Igreja se reunia em torno à mesa e aos apóstolos para um sacrifício de louvor, ação de graças, fazendo comunhão.
Podemos encontrar a Eucaristia como ágape (do grego: αγάπη, amor) dentro do contexto das primeiras comunidades. São Lucas, nos Atos dos Apóstolos, nos oferece este retrato (cf. At 2, 42-47). Aqui, vemos resumido o ideal do que deve ser a comunidade cristã. Trata-se de uma comunidade que “frequenta o templo”, “parte o pão nas casas” e “todos comem juntos, louvando a Deus”. Logo, averiguamos que a Eucaristia das primitivas comunidades cristãs já era de cunho litúrgico e comunitário. As conseqüências que se seguem desta experiência comunitária ficaram claramente explicitadas nos sumários dos Atos dos Apóstolos: “Todos os fiéis viviam unidos e tinham tudo em comum” (At 2, 44); “A multidão dos fiéis era um só coração e uma só alma. Ninguém dizia que eram suas as coisas que possuía, mas tudo entre eles era comum” (At 4, 32). Estes textos idealizam o que de fato aí ocorria. E ainda hoje deve expressar as consequências que se devem seguir na comunidade, quando esta celebra a Eucaristia de maneira correta.
  São Paulo, em seus ensinamentos, afirma que a ceia do Senhor deve ser realizada dentro dos mais nobres sentimentos que a fé cristã abarca, na comunidade. Assim, em 1Cor 11, 17-34, o Apóstolo dos Gentios adverte severamente a comunidade corinta, já que aí, embora a Eucaristia fosse celebrada, esta não era feita de maneira condizente com o mistério celebrado. Mas que maneira era esta? Não seria por conta de algum desrespeito às normas litúrgicas? Ou da validade do sacramento da Ordem do ministro daquela comunidade? Ou será que os coríntios tinham alguma dúvida com relação à presença de Jesus nas espécies do pão e do vinho? Não! Não se tratava disso. E sim porque os cristãos daquela Igreja estavam divididos. Porque entre eles havia ricos que exageravam na comida e se embebedavam enquanto os pobres passavam fome (1Cor 11, 21). E, depois todos iam para a “ekklesía” (do grego: Εκκλησία, Igreja, assembléia) para celebrar a mesma Eucaristia, memorial do Senhor da igualdade.
Para estes cristãos, São Paulo rigorosamente fala que, quando se celebra desta forma, é impossível comer a ceia do Senhor, pois a divisão ou a discórdia entre pessoas ou grupos torna impossível a celebração da Eucaristia: “Se estás, portanto, para fazer a tua oferta diante do altar e te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa lá a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem fazer a tua oferta” (Mt 5, 23-24). Por tal motivo a Eucaristia é dom, é presente de Deus para nós; e, de nossa parte para os irmãos.


CAPÍTULO II
EUCARISTIA: VIVÊNCIA CELEBRATIVA


“Fazei isto para celebrar a minha memória”

Por estarmos cônscios do mandato do Senhor, é que a Igreja de Cristo celebra a Eucaristia, desde suas origens, desde a Última Ceia do Senhor quando Ele nos disse: “Fazei isto em memória de mim” (1Cor 11, 24-25). Esta atividade é realizada sob uma forma que, em sua substância, não sofreu alteração no decorrer dos séculos. Cumprimos este mandato do Senhor celebrando o memorial de seu sacrifício redentor. Ao nos comportarmos assim, ofertamos ao Pai o que outrora já nos tinha sido oferecido por seu eterno beneplácito: os dons de sua criação, o pão e o vinho que pela força do Espírito Santo e pela fala do próprio Cristo se transubstanciaram em Seu divino Corpo e precioso Sangue, misteriosa presença de Deus em meio a nós de maneira real.
A Divina Eucaristia é o memorial da Páscoa de Cristo, a atualização e a oferta sacramental de seu único sacrifício, realizado na Cruz de uma vez por todas, mas perpetuado na liturgia da Igreja. Dessa forma, em todas as orações eucarísticas encontramos, depois das palavras da instituição, uma oração chamada anamnese, o que em grego (ἀνάμνησις) é traduzido por memorial.
Por memorial, nunca o entendamos como uma mera lembrança dos acontecimentos que outrora aconteceram, como temos a pretensão de pensar; mas entendamos tal termo como proclamação das maravilhas que Deus fez por todos os homens. A liturgia cristã tem esta capacidade de fazer com que os acontecimentos se tornem presentes e atuais. Já é com este sentido, ainda que o fato judaico seja apenas uma prefiguração das realidades trazidas pelo Cristo, que Israel entende a sua libertação da escravidão do Egito. De tal modo, os acontecimentos de antigamente, da época do êxodo, se fazem presentes à memória dos judeus, com a finalidade de que os fiéis conformem sua vida ao que acontecera.
No Novo Testamento, a idéia de memorial recebe um novo entendimento. Além de proclamar a ação maravilhosa de Deus na história humana pelo envio de seu Filho, a Igreja, celebrando a Eucaristia, rememora, cotidianamente, a páscoa de Cristo, e esta se torna presente: o sacrifício que Cristo ofereceu uma vez por todas na cruz se torna sempre atual, e é rememorada unicamente pela Igreja até que o Senhor volte no fim dos tempos. Neste sentido, “sempre que no altar é celebrado o sacrifício da cruz, no qual Cristo, nossa páscoa foi imolado, atualiza-se a obra da nossa redenção” (Lumen Gentium, 3).
A Eucaristia, sendo um memorial da páscoa de Cristo, é também um sacrifício. Prova desta nossa afirmação, encontramos no próprio Evangelho: “Hoc est corpus meum quod pro vobis datur” – Eis o meu corpo entregue por vós, e “Hic est calix novum testamentum in sanguine meo quod pro vobis funditur” – Este é o cálice da nova aliança em meu sangue que vai ser derramado por vós (Lc 22, 19-20). Logo, temos a certeza de que, na Eucaristia, Jesus nos entrega o mesmo corpo que entregou a nós no mistério de sua cruz salvadora, bem como o sangue derramado para a remissão dos pecados da humanidade (cf. Mt 26, 28), reconciliando a humanidade com Deus.
Quando da Reforma Protestante, quando alguns duvidavam do mistério eucarístico, inclusive discordando do sentido de memorial que o Sacramento do Altar possui, a Igreja, reunida no Concílio de Trento[3], confirmou: “Este nosso Deus e Senhor, embora se houvesse de oferecer uma vez por todas a Deus Pai, sobre o altar da cruz por sua morte (cf. Hb 7, 27), para realizar por eles (os homens) uma redenção eterna, contudo, porque o seu sacerdócio não se devia se extinguir pela morte (cf. Hb 7, 24), na Última Ceia, ‘na noite em que foi entregue’ (1Cor 11, 23), para deixar à sua dileta Esposa, a Igreja, um sacrifício visível – como a natureza humana exige –, pelo qual fosse tornado presente aquele sacrifício cruento que se havia de realizar uma vez por todas na cruz e seu memorial permanecesse até o fim dos séculos e o seu poder salutar fosse aplicado para a remissão dos pecados que diariamente cometemos, declarando-se constituído ‘sacerdote eterno segundo a ordem de Melquisedec’ (cf. Sl 110, 4; Hb 5, 8; 7, 17), ofereceu a Deus Pai seu corpo e sangue sob as espécies de pão e de vinho e, sob os sinais destes, os transmitiu, para que os recebessem, aos Apóstolos (que constituía então os sacerdotes do Novos Testamento) e, com as palavras: “Fazei isto em meu memorial” (Lc 22, 19; 1Cor 11, 24), ordenou a eles e a seus sucessores no sacerdócio que os oferecessem, como a Igreja Católica sempre tem entendido e ensinado” (Denzinger, 1740).
Um só é o sacrifício de Jesus, atualizado na Santa Missa. Logicamente, “é uma só e mesma vítima, é o mesmo que oferece agora pelo ministério dos sacerdotes, que se ofereceu a si mesmo então na cruz. Apenas a maneira de oferecer difere”, tal como professa o Concílio de Trento (Doctrina de SS. Missae Sacrificio, c. 2: Denzinger, 1743). No calvário, este sacrifício foi realizado de maneira escandalosamente cruenta, enquanto que, na ara da Missa, está contido e é imolado de maneira diferente, incruenta, onde Jesus morre misticamente. Para Santo Tomás, o Salvador nos deixou o Santíssimo Sacramento para conservar viva entre nós a lembrança dos bens que nos adquiriu e do amor que nos testemunhou com sua morte. Por isso o Aquinate chama a Sagrada Eucaristia “um manancial perene da paixão” (cf. Officium Sanctissimi Sacramenti, I. 4).
Para uma melhor consciência de que a Eucaristia é o único sacrifício da cruz, perpetuado no tempo, o Concílio de Trento nos aconselha que, quando assistirmos à Santa Missa, devemos refletir que a hóstia oferecida pelo sacerdote é o próprio Salvador que se sacrificou por nós entregando a sua vida e o seu sangue. Logo, a Missa não é uma representação do sacrifício da cruz, mas é a renovação do mesmo, porque em ambos é o mesmo sacerdote e a mesma vítima: o Filho de Deus Humanado. Devemos ter a certeza de que, durante a Missa, estamos, misticamente, no monte Calvário, para oferecermos a Deus o sangue e a vida de seu adorável Filho, e, quando recebemos a comunhão, somos invitados a beber seu precioso sangue, brotado de suas santas chagas. Igualmente devemos sempre refletir que cada Missa celebrada contém em si todos os imensos bens que a morte de Cristo nos trouxe, pois nela é renovada a obra de nossa redenção; pelo sacrifício do altar nos é aplicado o sacrifício da cruz. Em suma, afirmamos que, se a paixão de Cristo nos habilitou à Redenção; a Santa Missa nos faz entrar na posse dela e nos transmite os merecimentos de Jesus, tal como se fôssemos espectadores do momento da bendita paixão e morte de Jesus Cristo, Senhor nosso.

Eucaristia: ação laudatória

A Eucaristia é também um sacrifício de louvor e ação de graças pela obra da criação. No sacrifício eucarístico, toda a criação tão querida por Deus é apresentada ao Pai através da Morte e Ressurreição de Jesus. É por meio dele que a Igreja pode oferecer o sacrifício laudatório em agradecimento a tudo o que Deus fez no seu amor infindo à criação e à humanidade.
É pelo louvor pelo pão e pelo vinho[4], dentro da Apresentação dos Dons, que rendemos graças a Deus por todos os bens da criação. É pelo louvor através de Cristo sacramentalmente presente em nossos altares que elevamos a Deus nossa gratidão inenarrável: “Mas que poderei retribuir ao Senhor por tudo o que ele me tem dado? Erguerei o cálice da salvação, invocando o nome do Senhor” (Sl 115, 3-4).
Na Carta Convocatória para o Ano Eucarístico Diocesano, tive a oportunidade de expressar o que afirma o Magistério da Igreja acerca do caráter latrêutico do sacrifício eucarístico. Afirmava que: “Por meio dela (da Eucaristia), é que a Igreja se dirige, em canção de amor, ao Pai, prestando-lhe a devida honra, a mesma dada pelo Cristo em seu sacrifício na cruz. É a Esposa que, por meio do sangue eloquente do Esposo, louva ao Pai, em sinal pleno de eterna gratidão. Pois, a Eucaristia ‘presta a Deus maior honra que todas as orações e penitência dos santos, todos os trabalhos dos apóstolos, todos os sofrimentos dos mártires, todo o amor dos serafins e mesmo da Mãe de Deus, porque todas as honras dos homens são de natureza finita, enquanto a honra que Deus recebe pelo Sacrifício Eucarístico é infinita, pois lhe é prestada por uma pessoa divina, o seu Filho’[5]. Logo, tendo algo para agradecer ao Pai, façamo-lo pelo Filho, o Eterno Oferente, que pelo seu Sacrifício, perpetuado no Sacramento Eucarístico, rende ao Criador a mais perfeita ação de graças, e com Ele sobe o agradecimento da Igreja pelos inúmeros benefícios recebidos”. A Eucaristia é ação de graças por excelência! Este atributo não se dá apenas etimologicamente, mas o é de fato.

A unidade de duas mesas

Desde o início da Igreja primitiva, a dinâmica da liturgia da Igreja se desenrola, desenvolvendo-se, em redor à Mesa da Palavra (Pão da Palavra) e da Mesa da Eucaristia (Pão da Eucaristia). Desta maneira, ambas estão unidas, de forma que a Igreja segue o exemplo de Jesus, que pedagógica e catequeticamente, abriu o coração dos discípulos para a escuta e entendimento de sua vida e de seu Evangelho e do restante das Divinas Escrituras, para depois partir o pão, tal como no episódio dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24, 13-33). Primeiro, o próprio Deus nos fala; falando nos alimenta, ao tempo em que alimentando-nos fala. É com esta dinâmica sublime que acontece a atualização de seus divinos Mistérios para nós.
Assim sendo, temos a mesa da Palavra ou Liturgia da Palavra, que é a primeira parte da celebração eucarística. Aqui, o fiel escuta, acolhe e alimenta-se do que ouve do próprio Deus: “O homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (Dt 8, 3). Na Liturgia da Palavra, é o próprio Pai quem, por meio dos profetas, dos autores sagrados e do próprio Cristo, transmite o conhecimento de quem é, bem como da sua divina vontade. Deus assim o faz porque nos ama e, por meio do seu Verbo que revela o Pai de maneira plena, nos santifica aos que ouvimos a Palavra. É na escuta às leituras bíblicas que adentramos no projeto da realização de intimidade com Deus, que nos criou, sendo o princípio e fim da felicidade do homem. É na escuta a Deus que correspondemos, com uma vida de fé, a obediência que lhe temos.
Na Mesa da Palavra, encontramos o norte para o seguimento a Jesus. Daqui, brota a necessidade de não escutar a Palavra passivamente, mas ouvi-la com o imperativo de vivenciá-la, tal como o “Shemá” de Israel (cf. Dt 6, 4). A atitude correta diante das Escrituras é a de deixar impregnar-se, consentindo que a voz do Senhor ressoe em nosso ser, como que pautando o nosso agir sob o olhar de Deus, sob a orientação Daquele a quem escutamos.
É a partir da Mesa da Palavra que rumamos à Mesa do Pão. Não abandonamos uma em detrimento da outra. A primeira nos conduz para a segunda; é o mesmo Deus que fala e que se faz pão para nos alimentar. As palavras de Jesus, poderosas e misteriosas, deixam para a Igreja o ponto de apoio e convergência da nossa fé, que se situa não só na Palavra de Jesus, mas também no seu próprio Corpo e Sangue, Alimento e Bebida para a vida eterna, como já havia prometido (cf. Jo 6, 51).
O Pão que o Senhor dá a sua Igreja é o Seu próprio Corpo, é um pão novo, tal como nova é a Aliança firmada com o Novo Povo. Esse Pão é Ele mesmo. Para participarmos deste banquete é exigido de nós que tenhamos fé em Jesus. No ‘Pão-Jesus’, temos o único eixo de união com o Pai. Apenas Ele é quem nos faz entrar na intimidade com Pai (cf. Jo 14, 6), através de uma experiência radical e profunda. Pelo Pão Eucarístico, encontramos a seiva vital que nos dá vida e nos fortalece para o caminho da eternidade.
A Eucaristia, como presença real de Cristo que se dá como alimento, leva o cristão para o seu ponto mais essencial: o mistério da fé. Nos sinais do vinho e do pão que, transubstanciados, tornam-se o Sangue e o Corpo de Jesus Cristo que se faz realmente presente, oferece-se de maneira sacramental o mesmo e o único sacrifício que ele realizou de uma vez por todas, em sua morte de cruz. Nesta oblação, realiza-se um amoroso banquete no qual se recebe a mesma vida de amor que nos é ofertada: vida de comunhão que o Filho de Deus encarnado, morto e ressuscitado, mantém com o Pai e o Espírito Santo. Assim, realiza-se o grande mistério da Igreja, sinal e germe do Reino de Deus: o mistério da comunhão plena e total de Deus com os homens e dos homens entre si e com Deus, como veremos posteriormente.
   

CAPÍTULO III
OS FRUTOS INTERIORES DA EUCARISTIA NA VIDA DO CRISTÃO


Aos fiéis comungantes, estão reservadas algumas recompensas. Estas não nos são ofertadas pelos nossos méritos, pois estamos bem aquém de merecer tão inenarrável dom. Estes tesouros da vida divina são dados pela imensa bondade de Deus para com aqueles que são sensíveis, pela fé, ao próprio Deus, desejando sempre viver unido ao Ser Divino. A Eucaristia, assim como o Batismo e a Confirmação nos faz, como dizia Paulo VI: “Saborear os tesouros da vida divina e de progredir até alcançar a perfeita caridade” (Constituição Apostólica Divinae consortium naturae, 1).
A Divina Eucaristia aumenta a nossa união com Cristo, nosso Senhor, fazendo com que a nossa vida seja íntima a de Jesus. Aliás, esta é uma promessa dele: “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em mim e eu nele”, e continua o Senhor: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne viverá por mim.” (Jo 6, 56-57).
O “Fruto do Altar” produz em nós o aumento da graça batismal. Desde o nosso nascer para a fé, que se dá quando ressurgimos nas águas vivificantes do Batismo, até o momento do nosso último respiro nesta terra, somos chamados a conservar, aumentar e renovar a vida da graça, a vida embutida em Deus. Para o desenvolver da vida cristã se faz mister que o fiel seja alimentado pelo “Pão dos Viandantes” até o momento do nosso ingresso na Pátria Celeste.
A Eucaristia nos previne do mal, separando-nos do pecado. Esta é outra garantia de Jesus quando afirma textualmente que o cálice do seu Sangue será “derramado por todos para a remissão dos pecados”. A Eucaristia não nos une a Jesus sem que tenhamos nos purificado dos pecados que cometemos e sem, ao mesmo tempo, poupar-nos dos pecados futuros. Porquanto, entendemos o Augustíssimo Sacramento como um remédio que nos garante a pureza, nos previne e nos purifica do pecado, pois “se, toda vez que o seu Sangue é derramado, o é para a remissão dos pecados, devo recebê-lo sempre, para que perdoe sempre os meus pecados. Eu que sempre peco, devo ter sempre um remédio” (Santo Ambrósio. Sobre os Sacramentos 4, 28).
Jesus Sacramentado, “fornalha ardente de amor” como nós solenemente o titulamos na Ladainha do Sagrado Coração de Jesus, fortalece-nos na caridade para que não sejamos suscetíveis às tentações. O mesmo Jesus que é exemplo de misericórdia vivifica-nos nos amor, ao tempo em que apaga os nossos pecados veniais, fazendo-nos repousar em seu Divinal Coração. Este antídoto contra o mal também é eficaz no tocante ao pecado mortal, pois quanto maior for a nossa intimidade com o Senhor, maior dificuldade o Maligno terá para nos separar bruscamente do “Amado de nossa alma” por meio do pecado mortal. Sabemos que cada sacramento possui a sua função na vida do cristão. O Sacramento da Penitência é o único que pode perdoar os nossos pecados graves. Logo, a Eucaristia não está destinada ao perdão dos pecados mortais, mas é apropriado para os que estão na comunhão da Igreja.      

Eucaristia: comunhão com a Trindade

O Evangelho, ao relatar-nos o diálogo de Jesus com Nicodemos, apresenta-nos um conteúdo cuja primazia coincide com o mesmo do da fé eucarística. Diz-nos o Senhor: “Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-lo, mas para que o mundo seja salvo por ele” (Jo 3, 16-17). Esta perícope revela um Deus que se dá à sua criatura. Prova disso, temos a Eucaristia. Nela, Jesus não oferece uma dádiva qualquer, mas oferece-se inteiramente, entregando o seu Corpo e Sangue. Com este feito, manifesta à Igreja a fonte deste amor: o Pai que entrega o seu Filho Unigênito pelo Espírito Santo.
Na Eucaristia, contemplamos, extasiadamente, o desígnio de amor que norteia toda a história da Salvação, um desígnio eterno que encontra em Cristo Jesus a sua consumação. É no Augustíssino Sacramento do Altar que a Trindade, cuja essência é amor (cf. 1Jo 4, 7-8), abraça e penetra plenamente a condição humana. Portanto, nas espécies sagradas do Pão e do Vinho, sob cujas aparências Cristo nos alimenta se dando na Ceia Pascal, temos a certeza de que toda a vida divina nos alcança e nos abraça, interpelando-nos na forma do sacramento ao recordar-nos que Deus é comunhão perfeitíssima de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo.
Ainda na criação, Deus destina ao homem a honra de partilhar do seu ruah, do seu hálito vital (cf. Gn 2, 7). No entanto, é no Cristo morto e ressuscitado, bem como na efusão do Espírito Santo, derramado profusamente, que, em relação à criação, somos bem mais honrosamente contemplados, pois nos tornamos partícipes da intimidade divina, da familiaridade trinitária, ainda que seja na condição de criatura. Se na criação esta partilha da parte de Deus é imensa, em Cristo e no Espírito, quando a economia da Trindade está totalmente revelada e seu o acesso torna-se escancarado, somos cumulados de uma existência nunca antes imaginada. Deste modo, o Senhor Jesus, a “oferenda imaculada” (cf. Hb 9, 14) na dádiva eucarística, transmite-nos a própria vida divina.
Esta vida nova e inédita que o homem, em Cristo, recebe, é dom gratuito; é cumprimento das promessas de Deus. A Igreja, nesta ‘explosão da vida trinitária em nosso favor’, acolhe, festeja, celebra essa dádiva obedientemente, ao tempo em que adora a Trindade, autora destes estupendos benefícios. E o que é que a Igreja acolhe, celebra festeja senão o “Mysterium fidei” (o Mistério da fé), o mistério de amor trinitário, no qual, não por nossos méritos, mas eleição da Graça divina, somos chamados a participar?
   

Dimensão eucarístico-escatológica

Assim como os sacramentos são realidades temporais que, pertencentes à Igreja, nos remetem à plena manifestação da vitória do Senhor ressuscitado, igualmente isto acontece na Liturgia Eucarística, só que maneira sobrelevada. Nela somos felizardos por saborearmos antecipadamente a consumação das realidades últimas (escatológicas[6]) para qual todo homem e a criação rumam.
Somente Deus pode dar ao homem a felicidade eterna e autêntica, pois para isto fomos criados. No entanto, quando do pecado, a nossa humanidade foi ferida em tudo, inclusive no referente à liberdade. O mesmo Jesus, que nos abriu uma torrencial porta de esperança quando da Encarnação, é a meta para qual rumamos, como que uma necessidade inerente ao nosso ser maculado concupiscente ao pecado. Este ‘Cristo-meta’, vitorioso sobre o pecado e a morte, torna-se presente para nós de maneira especialíssima na Eucaristia. Neste sentido, o Papa Bento XVI frisa: “embora sejamos ainda ‘estrangeiros e peregrinos’ (1Pd 2, 11) neste mundo, pela fé participamos já da plenitude da vida ressuscitada. O banquete eucarístico, ao revelar a sua dimensão intensamente escatológica, vem em ajuda da nossa liberdade” (Sacramentum Caritatis, 30).
Vimos que Cristo, com a sua vinda, é dádiva trinitária para nós. O próprio Filho Jesus inaugura objetivamente o tempo escatológico. Em si mesmo, veio convidar o povo de Deus disperso à unidade. Esta não é um simples ajuntamento, mas uma congregação inédita sob o selo de uma Aliança eterna e indissolúvel, tal como o próprio Deus havia, outrora, prometido. Jesus, ao cear com os Doze – número especialíssimo na Escritura, já que dentre outros sentidos, evoca as doze tribos de Israel –, expede um mandato para estes: a de celebrarem a sua memória. Com este ordem, o Senhor quer deixar claro, que a Igreja, comunidade por Ele fundada, tem a missão de ser, dentro das características temporais (“aqui e agora”), uma antecipação real daquilo que virá, mas que já está conosco pela comunhão, já que foi iniciada pela Igreja: a reunificação escatológica. Dentre outras tantas outras realidades experimentadas em nossa Liturgia da Missa de maneira sacramental, temos uma de imensa importância: a unificação escatológica do Povo de Deus. Esta Mesa Divinal, chamada de Missa, é uma antecipação real daquilo que já é anunciado no Antigo Testamento desde os profetas e narrado pelo Novo, principalmente pelo Apocalipse (cf. Is 25, 6-9 e Ap 19, 7-9). A estas “núpcias do Cordeiro”, cuja apresentação o Apocalipse nos verifica é chamada de comunhão dos santos.
A celebração da Eucaristia é garantia da glória celeste, quando os nossos corpos serão glorificados. Quando celebramos o memorial da nossa salvação, “reforça-se em nós a esperança da ressurreição da carne juntamente com a possibilidade de encontramos de novo, face a face, aqueles que nos precederam com o sinal da fé” (Sacramentum Caritatis, 32). Por isso, como Sucessor dos Apóstolos, recordo a importância de rezar pelos nossos falecidos. Esta prece de sufrágio encontra maior eficácia dentro da Celebração Eucarística, para que, purificados pela misericórdia de Deus, os nossos finados possam alcançá-Lo na visão beatífica, no céu. Esta é a nossa esperança, a nós que estamos vivos, a de que, quando da nossa morte, outros rezem por nós para alcançarmos refinadamente a glória dos eleitos, dos santos.      

Dimensão eucarístico-eclesiológica

Os que recebem a Eucaristia se unem mais intimamente a Jesus. A Comunhão Eucarística não é um movimento apenas ascendente do homem, mas por meio do Sacramento do Altar, o Senhor congrega o seu povo em um só corpo, na Igreja. A Eucaristia tem um papel peculiar: o de renovar, fortalecer, aprofundar esta incorporação à Igreja já feita no nosso Batismo. São Paulo já possuía esta consciência: “O cálice de bênção, que benzemos, não é a comunhão do sangue de Cristo? E o pão, que partimos, não é a comunhão do corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora sendo muitos, formamos um só corpo, porque todos nós comungamos do mesmo pão” (1Cor 10, 16-17).
Se eu, como cristão, faço parte de um corpo, devo ter sempre perto de mim a certeza de que não sou eu sozinho a formar esta conjuntura denominada Igreja, Assembleia. Eu sou apenas um membro! Existem outros que também formam este magnânimo corpo, junto comigo. Cristo é a cabeça! Sem ele, este corpo torna-se mentecápto, desnorteado. Assim como a cabeça faz agir todo o corpo, da mesma forma Jesus governa a sua Amada, a sua Igreja. Como sem cabeça o corpo não possui vida alguma, igualmente sem Jesus a Igreja não resiste e morre. E, como membros que somos, devemos ser conscientes da importância dos que, comigo, articulam esta grandiosa estrutura harmônica. Não somos unidos aos outros cristãos por laços geneticamente consanguineos; mas o nosso parentesco é superior aos laços de sangue humanamente e fisiologicamente entendidos: é o amor de Cristo quem nos une, tal como afirmamos em nossas celebrações.
Somos unidos pelo “Vínculo da Caridade” como nos afirma Santo Agostinho. Destarte, no banquete do Corpo de Jesus não existe estratificação social, nem preconceito racial, tampouco deve existir secções, dilacerações no corpo eclesial. Apenas o Corpo Sacramental do Senhor é que se divide, mas assim o faz para alimentar a unidade do corpo místico do Cristo, isto é, a Igreja.
A Igreja, enquanto sacramento do mistério salvífico de Cristo no mundo, tem como Sacramento da sua Unidade e Comunhão Católica o próprio memorial eucarístico. Pela Eucaristia, celebração litúrgica e vivência cotidiana da existência humana cristificada, adotando, a partir do Magnífico Sacramento, um estilo de vida autêntico e, porque não dizer, igualmente eucarístico, é que a Comunidade Eclesial atualiza no hoje da vida humana, que é marcada sofrimentos e esperanças, os sagrados mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor, de modo que o cristão se misture, em uma espécie de “santa combinação”, com a vida do Senhor e da Igreja, de modo que também ela (a Igreja) se travista paulatinamente da verdadeira história de salvação em Cristo.

Eucaristia: Vida para o mundo

Quando recitamos a oração dominical, o Pai Nosso, dizemos: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje” (cf. Mt 6, 11). Ao fazermos esta petição ao Pai não nos estamos referindo apenas ao pedido do pão material, e sim, prioritariamente, do espiritual, já que em grego para referirmo-nos ao termo ‘cada dia’ do Pai Nosso, dizemos ‘epiousios’(ἐπιούσιος): ‘supersubstancial’; referimo-nos diretamente ao Pão da Vida, ao Corpo de Cristo, ao “remédio de imortalidade” no dizer de Santo Inácio de Antioquia, sem o qual não há a Vida em nós. Logo, a Vida é um fruto importantíssimo que o comungante colhe e que foi produzido pela Divina Eucaristia. Esta Vida, que é o próprio Cristo, não se encontra exclusivamente trancafiada no coração do fiel; mas este é invitado a transmiti-la para todos para a vida do mundo (cf. Jo 6, 51). Num joguete de palavras: A VIDA produz a vida do mundo, porque o vivifica.
A Eucaristia está no centro, não só de toda a vida litúrgica da Igreja, mas igualmente deve ser o centro de toda a vida cristã. Isto quer dizer que a Eucaristia deve levar o cristão a viver de uma maneira coerente com aquilo que fielmente celebra, a orientar a sua vida pelos valores evangélicos. Por tal motivo, é inadmissível que entre a vida do cristão e a vivência eucarística haja oposição, incongruência. Por isso, a Igreja, como Mãe e Mestra, sempre educou que devemos estar vigilantes para que este encontro com a pessoa de Jesus não seja feito de maneira indigna; que o modo de viver dos que professam o Nome de Jesus esteja de acordo com o gesto que se realiza.
Portanto, ninguém pode se aproximar da Eucaristia com a consciência de pecado mortal. Se algum pecado mortal macular a vida de um fiel cristão, este, antes de se aproximar da mesa e receber os Sacratíssimos Corpo e Sangue de Jesus, deve emendar-se com Deus através do sacramento da Confissão. O autêntico sentido eucarístico torna-se, por si mesmo, escola de amor ativo para com o próximo, uma busca de Deus. Com esta prática, faremos valer o que Jesus afirmou: “Nisto todos conhecerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13, 35). A Eucaristia nos educa para este amor de maneira muito profunda; ela demonstra, de fato, qual o valor que todos os homens têm diante de Deus. Se o culto eucarístico for sincero, o comungante deve crescer na consciência da dignidade de todos e de cada um dos homens, inclusive sendo-lhes solidário em todos os sofrimentos e misérias, injustiças e arbitrariedades que os possam abater. O católico cujo ser está ‘eucaristizado’ deve aprender cada vez mais a descobrir a verdade sobre o homem interior porque é precisamente o íntimo do homem que se torna morada de Deus (cf. Ap 3, 20) através do Sublimíssimo Sacramento.
O sentido do mistério eucarístico impele o cristão ao amor para com o próximo, ao amor para com todos os homens, numa luta de transformação, libertação, aproximação maior com o Criador.      


CONCLUSÃO


Em preparação para o jubileu da nossa Diocese, tendo como ponto culminante o Congresso Eucarístico Diocesano, queremos voltar os nossos olhos para Maria, a Mãe do Sacramentado.                                                                                                         
De toda a eternidade, Deus nos amou na pessoa de Jesus Cristo, Seu Filho, a quem fez Salvador dos homens. De modo especial, amou Maria, elegendo-a dentre todas as mulheres para Mãe do Salvador. O Anjo anunciou a Maria que ela haveria de conceber, e que o fruto de sua concepção seria chamado Filho do Altíssimo e reinaria sobre o trono de Davi e seu reino jamais teria fim (Lc 1,31). Diante do extraordinário anúncio, Maria se surpreendeu e se emocionou. Como? Não conheço varão! O Anjo respondeu: “O Espírito Santo virá sobre ti, e o poder do altíssimo vai te cobrir com sua sombra; por isso o Santo que nascer de ti será chamado Filho de Deus (Lc 1,35). Amparada pelo Altíssimo, Maria se torna santuário onde Jesus se encarna, Ele que é Deus visível aos nossos olhos.           
Pelo que os evangelistas nos apresentam sobre a instituição da Sagrada Eucaristia, na Quinta-Feira Santa, Nossa Senhora não se encontrava entre os discípulos naquele momento. Já na Sexta-Feira Santa, no momento doloroso de Cristo, lá se encontrava presente ao pé da cruz. Como co-redentora do gênero humano, devia dividir com Jesus todos os sofrimentos da Paixão, acompanhando de pé o mesmo sacrifício que seu Filho realiza durante a celebração da Santa Missa.   
Maria está de tal modo ligada ao mistério eucarístico, que o Papa João Paulo II a chamou de “Mulher Eucarística”. Afirma-nos o Bem-Aventurado João Paulo II: “Maria é mulher ‘eucarística’ na totalidade da sua vida. Ela viveu este espírito eucarístico antes mesmo da instituição do sacramento da Eucaristia quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus” (Ecclesia de Eucaristia, 53). Com o nascimento de Jesus, Maria, ao apresentá-Lo aos pastores, magos e sumos-sacerdotes no Templo de Jerusalém, realizou um gesto eucarístico e eclesial. É o Fruto Bendito de seu ventre que é apresentado ao povo de Israel e aos gentios para que fosse adorado e reconhecido como Messias, o Filho de Deus.
Certamente, Maria ouviu de Pedro, João, Tiago e demais apóstolos as palavras: “Isto é o meu Corpo que vai ser entregue por vós” (Lc 22,19). “Receber a Eucaristia devia significar para Maria quase acolher de novo no seu ventre aquele coração que bateu em uníssono com o d’Ela e reviver o que tinha pessoalmente experimentado junto da cruz.” (Ecclesia de Eucaristia, 56). Nessa perspectiva, podemos afirmar que, desde as primeiras celebrações eucarísticas, Maria amou a Santa Missa, e comungou com disposição e fidelidade, afinal, Ela foi o primeiro sacrário da história. Por tudo isso, “com boa razão, a piedade do povo cristão vislumbrou sempre uma ligação profunda entre a devoção à Virgem Santíssima e culto à Eucaristia [...] Maria conduz os fiéis à Eucaristia” (Redemptoris Mater, 44).
Antes mesmo dos Apóstolos, podemos afirmar que Maria já era a grande adoradora eucarística. No ensinamento do Papa João Paulo II, “Maria praticou a sua fé eucarística ainda antes de ser instituída a Eucaristia, quando ofereceu o seu ventre virginal para a encarnação do Verbo de Deus” (Ecclesia de Eucharistia, 55). Como qualquer outra mãe, Nossa Senhora, por nove meses, levou no seio o Filho de Deus. Podemos imaginar com quanto cuidado ela preparou cada uma das coisas pertencentes ao seu Filho que estava para nascer, encontrando-Se muito bem guardado e amado. Foram nove meses de alegria; meses de contínua comunhão espiritual e física com Deus; foram meses de êxtases celestiais e muita adoração. E, a partir do seu ventre, Maria adorou o seu Filho constantemente. Se bem vivida em sua essência, a nossa devoção mariana nos conduzirá à Eucaristia, pois entendemos que a verdadeira adoração eucarística tem um singelo sentido mariano.
Para viver o memorial de Cristo na Eucaristia é preciso entrar ‘na Escola da Mãe’, ela nos ensina a procurar a intimidade com Jesus, a reconhecê-Lo e a encontrá-Lo nas diversas circunstâncias da nossa vida e, de um modo especial, nesse instante supremo – o tempo unindo-se à eternidade – do santo sacrifício da Missa, onde Jesus com gesto de Sacerdote Eterno (cf. Hb 7-9), atrai a si todas as coisas para colocá-las, com o sopro do Espírito Santo, na presença de Deus Pai. Da nossa parte, é preciso a compreensão de que a humildade, docilidade, generosidade e silêncio interior são virtudes que definem a “Mulher Eucarística”, porque são também virtudes e atitudes imprescindíveis em toda adoração eucarística.
Maria faz parte do mistério de Cristo. Sendo a Mãe do Sacramentado, ela tem fé. Por isso, o seu Sim consciente à responsabilidade abraçada. Para participar da Eucaristia é necessário estar em estado de graça. Este é um privilégio sempiterno da Imaculada Conceição. O anjo saudou a Virgem Maria: “Ave, plena de graça, o Senhor é contigo.” (Lc 1,28). E quem melhor que a Imaculada Conceição para vivenciar a graça? Nossa Senhora foi a única criatura humana a receber de Deus uma alma plena de graça. Participando da Eucaristia, antecipamos o céu. E quem melhor que a Rainha assunta aos Céus para nos demonstrar como adentrar na Igreja Triunfante? É realmente um privilégio a assunção de Maria Santíssima, é uma exceção única feita em favor da Virgem Santa.
Finalmente, podemos reafirmar o que diz o Papa João Paulo II: “Maria é a mulher eucarística na totalidade de sua vida. A Igreja, vendo em Maria o seu modelo, é chamada a imitá-la também na sua relação com este mistério santíssimo.” (Ecclesia de Eucharistia, 53). Ao participarmos da Santa Missa, não nos esqueçamos de recorrer a Maria Santíssima, pois, assim como Ela esteve diante da cruz de Cristo, estará também junto às nossas comunidades, através da sua intercessão materna e da comunhão dos santos, na Celebração da Eucaristia.
Ponhamo-nos, sobretudo, à escuta de Maria Santíssima, porque Nela, como em mais ninguém, o mistério eucarístico aparece como mistério da luz. Olhando-A, conhecemos a força transformadora que possui a Eucaristia. Nela, vemos o mundo renovado no amor. Contemplando-A elevada ao céu em corpo e alma, vemos um pedaço “do “novo céu” e da “nova terra” (cf. Ap 21, 1) que se hão de abrir diante dos nossos olhos na Segunda Vinda de Cristo. A Eucaristia constitui aqui na terra o seu penhor e antecipação: “Veni, Domine Iesu” (Ap 22,20).
Senhor Sacramentado, que a vossa Mãe interceda por nós e nos ajude a imitá-La buscando o alimento da vida eterna, que sois Vós em Corpo, Sangue, Alma e Divindade, veramente presentes no Sacramento do Altar. E que de modo especial, na preparação do jubileu da nossa Diocese de Palmeira dos Índios, que será celebrado em agosto do ano de 2012, culminando com o Congresso Eucarístico Diocesano, a nossa Igreja particular encontre novo impulso para a sua missão e “reconheça na Eucaristia a fonte e o apogeu de toda a sua vida.” (Mane Nobiscum Domine, 31).


            Dado em Palmeira dos Índios, sob os auspícios de Nossa Senhora do Amparo, padroeira diocesana, na Sé Episcopal, no dia 21 de agosto do ano da Graça do Senhor de 2011, Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, quinto ano de meu pastoreio episcopal nesta Igreja Palmeirense.




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+ Dulcenius Fontes de Matos
Episcopus Palmiriensis Indorum


[1] Termo grego que designa a presença de Jesus. Este termo também pode ser entendido como as realidades da Segunda Vinda do Senhor para, como dizemos no Credo: “Julgar os vivos e os mortos”.
[2]  Rito complementar de um sacrifício, que consistia em derramar azeite, água e vinho em torno do altar (cf. Gn 35,14;  2Sm 23,16;  Dt 32,38) .
[3] O Concílio de Trento, realizado de 1545 a 1563, foi o 19º concílio ecumênico. É considerado um dos três concílios fundamentais na Igreja Católica. Foi convocado pelo Papa Paulo III para assegurar a unidade da e a disciplina eclesiástica, no contexto da Reforma da Igreja Católica e a reação à divisão então vivida na Europa devido à Reforma Protestante, razão pela qual é denominado como Concílio da Contra-Reforma.
[4] Apresentando o pão e o vinho para serem consagrados, o sacerdote diz, respectivamente, as seguintes orações: Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo pão que recebemos de vossa bondade, fruto da terra e do trabalho humano, que agora vos apresentamos, e para nós se vai tornar Pão da vida. Bendito sejais, Senhor, Deus do universo, pelo vinho que recebemos de vossa bondade, fruto da videira e do trabalho humano, que agora vos apresentamos e que para nós se vai tornar Vinho da salvação.
[5] SAINT-OMER, Edward. In: A grandeza do Santo Sacrifício da Missa
[6] Escatologia (do grego antigo εσχατος, "último", mais o sufixo -logia) é uma parte da teologia que trata dos últimos eventos na história do mundo ou do destino final do gênero humano, bem como da realidade da Vida Eterna e dos Novíssimos (Céu, Inferno e Purgatório).