sábado, 10 de setembro de 2011

XXIV DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano A – 11 de setembro de 2011)








I Leitura: Eclo. 27, 33-28,3
Salmo Responsorial: Sl 102 (103), 1-2. 3-4. 9-10. 11-12 (R/.8)
II Leitura: Rm 14, 7-9
Evangelho: Mt 18, 21-35 (Perdoar aos irmãos)


 

Queridos irmãos,


O relacionamento inter-humano na cultura do Oriente Antigo era marcado por um princípio básico: a Lei de Talião, da qual provinha a regra “Olho por olho e dente por dente”. Esta legislação provavelmente remontava ao Código de Hamurábi, que regia a Babilônia no século XVIII a.C.. Tal código, antes de ser um código escrito, já era praticado como uma espécie de “castigo-espelho”. Curiosamente, apelidamos a Lei Talião com este predicativo, não por conta da sua autoria, mas por se tratar de uma expressão latina (taliter) que significa de igual ao dano causado ao outro.

Por que estamos nos referindo a isso? Porque tal informação é esclarecedora para o entendimento da Liturgia da Palavra de hoje. A Palavra de Deus, antes mesmo da Encarnação do Verbo, já se reportava a importância do perdão. Se para muitos estudiosos a Lex Talionis foi importante para o ordenamento social e para o desenvolvimento do Direito, para os crentes no Deus Único, Verdadeiro e Misericordioso, a Lei do Perdão vai suplantar a tida como exímia pelos doutos. Dessa forma, o Eclesiástico, na Primeira Leitura de hoje, quer incutir em Israel a primazia do perdão sobre uma lei estéril e mortífera. Dizemos mortífera porque se não levasse o indivíduo acusado a uma pena de morte, ela dava brechas para uma execração para o réu. O contexto da Primeira Leitura de hoje se passa no século II a. C., momento em que Israel estava como uma colônia Greco - macedônica. Logo, a Babilônia já tinha perdido a sua fase áurea. No entanto, como que uma espécie de característica cultural, a prática de alguns elementos do Código de Hamurábi ainda persistiam, inclusive a da impiedade para com o pecador de qualquer sorte.




O Eclesiástico quer propor uma nova dinâmica, ou melhor, recorda que a prática do talionato não é a prática de Deus, que é rico em misericórdia e, por isso, “não nos trata como exigem as nossas faltas” (Sl 102, 10). Para alguns, este texto seria uma espécie de antecipação involuntária do Pai-Nosso ou mesmo do Sermão da Montanha. Este dado não pode ser descartado. A leitura inicia tratando os sentimentos do ódio e do rancor como detestáveis, abomináveis. O hagiógrafo tem consciência de que tais respostas do coração humano não possuem capacidades de construção, de edificação de valores, ao contrário. O ódio e a ira impedem o crescimento e desenvolvimento pessoal e espiritual do homem, seja ele crente ou pecador. O rancor e a raiva são incompatíveis com o projeto de um Deus amoroso, misericordioso; atrapalham o agir da sua Graça em nós. Este impedimento não se dá por parte Dele, mas por conta da limitação do nosso coração: nele, por estar incrementado de tal forma com sentimentos desgastantes, não terá lugar para emprenharmos com os desígnios do amor de Deus; estará dividido. Devemos levar em conta que a medida da justiça de Deus é conforme a nossa capacidade de abertura ao perdão: “Quem se vingar encontrará a vingança do Senhor, que pedirá severas contas do seu pecado” (Eclo 28, 1). Parafraseando, podemos concluir: “Quem perdoar encontrará o perdão do Senhor”. O Eclesiástico, didaticamente, nos apresenta algumas motivações para o perdão: perdoa e serás perdoado (cf. v. 2); perdoa e alcançarás a cura (cf. 3); perdoa já tendo em vista a sua morte (cf. v. 6 e 7); perdoa porque esta prática é cumprimento dos mandamentos, da Aliança do Senhor (cf. 7-9). Esta última nos recorda o que São João afirmará em sua Carta: “Se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão, é mentiroso. Porque aquele que não ama seu irmão, a quem vê, é incapaz de amar a Deus, a quem não vê” (1Jo 4,20). Ou mesmo o que São Paulo afirmou na semana passada: “O amor é o cumprimento perfeito da Lei” (Rm 13, 10).

O Salmo Responsorial, ao apresentar Deus como bondoso, compassivo e carinhoso, apresenta o agir do perdão de Deus. Já no versículo segundo nos convida para bendizê-lo por cômputo dos favores que Ele nos concede. Mas o que é que Ele nos faz? Esta resposta todos nós a temos, pois tudo o que temos e somos é dádiva sua. Porém, o salmista apresenta a misericórdia de Deus como um máximo favor: “Pois ele te perdoa toda culpa, e cura toda a tua enfermidade; da sepultura ele salva a tua vida” (Sl 102, 3 e 4). Lembremo-nos, irmãos, que a enfermidade na concepção judaica era tida como um castigo consequente do pecado: “Mestre, quem pecou, este homem ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9,2). Logo, se Deus perdoa, o homem encontra a sua saúde no perdão do Senhor. Ora, esta mentalidade, muito embora ultrapassada (pois em Jesus ela não possui mais sentido nenhum), deve ser por nós remanejada para a uma conotação espiritual: o homem pecador não tem paz, pois a Paz Verdadeira é Deus; não tem prazer, pois o Prazer Verdadeiro é Ele; não tem saúde, pois a Salvação é Ele. O Salmo ainda nos mostra a metodologia da misericórdia do Senhor: “[Ele] Não fica sempre repetindo as suas queixas, nem guarda eternamente o seu rancor. Não nos trata como exigem as nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas” (v. 9-10). A misericórdia de Deus é eterna e superabunda em nossas vidas dando-nos os frutos de seu amor, não obstante os nossos desinteresses e infidelidades, exemplo disso é a salvação: para nós que não éramos nada, para nós com nossas ingratidões, Ele nos envia o Filho para salvar-nos. Será que queremos maior dádiva que esta: a misericórdia que nos traz a salvação?

No Evangelho, temos a pergunta emblemática de Pedro: “Quantas vezes devo perdoar, se o meu irmão pecar contra mim? Até sete vezes?” (v. 21). Percebamos as nuances que existem nesta indagação. Pedro pergunta a Jesus sobre um possível perdão ao irmão. Podemos constatar que ele já tem consciência do peso que tal termo possui na Boa Nova de Jesus: o outro é irmão. Esta palavra já traz embutida em si uma gama de idéias que nos remonta um parentesco próximo que, no cristianismo, independe de graus geneticamente consanguineos. Todos os que pertencem ao Cristo são irmãos. Pedro ainda recorre a uma possibilidade numérica: sete vezes. O número sete, na numerologia bíblica, representa o número da perfeição. Pedro acha que perdoar sete vezes é o máximo cumprimento do perdão. Jesus responde que um seguidor dele (“Por isso eu te digo”) não só perdoa sete vezes, mas “setenta vezes sete”, ou seja, sempre, pois setenta é um número decimal perfeito que é multiplicado por um outro número perfeito, o sete. Portanto, para cumprir a prática do perdão se faz necessário perdoar sempre, tal como Deus o faz.



A fim de ilustrar este “novo” mandamento (dizemos “novo”, pois, como já vimos na Primeira Leitura, o perdão não é algo inédito na Escritura), Jesus conta uma parábola. Um rei que começou a fazer um acerto de contas com os seus empregados. Eis que ele começa o acerto com um empregado que lhe devia uma enorme fortuna. Percebamos que é um acerto de contas entre desiguais: um rei, que naturalmente era rico e de importância superior a dos empregados que, por sua vez, eram simples criados. A partir daqui, já podemos deduzir quem é quem na parábola: Deus é figurado pelo rei, a humanidade pelos empregados de uma forma geral. Coloquemo-nos no lugar deste empregado que devia uma grande fortuna a Deus. O que é que devemos a ele? Anteriormente, dissemos que a maior de todas as dádivas que recebemos dele é a sua misericórdia. Quantas vezes pecamos? Tantas vezes ele nos perdoa. E nossa dívida de gratidão vai aumentando. Somos devedores a Deus, muito embora tudo já seja Dele porque de Sua bondade tudo recebemos, não porque mereçamos, Ele sabe que, de per si, não somos capazes de retribuir-lhe algo à Sua altura divina, mas Ele pede de nós o mínimo, apesar do Cristo nos já ter reconciliado com o Pai. O empregado devedor não foi por livre vontade, foi levado como que à força. Como poderíamos entender este “à força” se somos dotados de liberdade? Certo, somos livres, mas o somos em um sentido perfeito para tudo o que foi criado por Deus, ou seja, para o bem. O mal não está em Deus, é subversão ao seu projeto. Destarte, não somos livres para o mal. Somos levados a Deus pelas circunstâncias da vida. Diante dele, percebemos o quão devedores somos. No entanto, somos felizardos porque ele é compassivo, já que ele sempre nos perdoa. Quantas vezes em nossa vida, quando algo desanda e temos a impressão de que Deus está querendo acertar as nossas contas com Ele, ou seja, quando estamos na pior, fazemos juras a Deus para tentarmos reverter a situação? Claro que o Senhor não quer o nosso mal. Por isso, quando O buscamos arrependidos, em sua misericórdia Ele nos perdoa. Somos esse empregado penitente.

O Evangelho é claro: “Diante disso, o patrão teve compaixão, soltou o empregado e perdoou-lhe a dívida” (v. 27). Perdoou-lhe, e não “prorrogou o prazo”, “cassou-lhe os bens”, “fez com que o empregado assinasse um acordo, uma promissória”. Perdoou-lhe! Deus tem a “memória” curta para os nossos crimes, parafraseando o Salmo (cf. 102, 9). Porém, não tardando sair da presença do rei-patrão, o empregado encontrou um companheiro seu que também lhe devia, porém, comparado ao que foi perdoado pelo Senhor, a dívida era um nada, uma “merreca” como vulgarmente afirmamos, e, violentamente, impera, agredindo-lhe fisicamente: “Paga o que me deves” (v. 28), ao que o seu devedor, implorando, pedia tal como antes fizera esse seu agressor ao Patrão: “Dá-me um prazo, e eu te pagarei!” (v. 29). Percebamos, caríssimos, que o primeiro empregado devedor disse ao patrão a quem devia uma enorme fortuna: “Dá-me um prazo, e eu te pagarei tudo!”, ao que o segundo empregado, cuja dívida era de cem moedas, dizia ao empregado perdoado: “Dá-me um prazo, eu te pagarei!”. Percebamos que nesta última fala não há a presença do pronome indefinido tudo, ou seja, o segundo é consciente de que não conseguirá pagar as “cem moedas” que devia ao seu colega, ao tempo em que o empregado que devia a fortuna ao seu senhor é presunçoso: “Eu pagarei tudo!” Muitas vezes, fazemos afirmações penitencias a Deus, prometendo-lhe que nunca vamos pecar, tal como fazemos no Ato de Contrição (“Prometo nunca mais pecar”), mas somos pouco generosos no perdão oferecido ao próximo. Cabe colocarmos a mão na consciência e nos interrogarmos: Quem peca mais: eu contra o coração de Deus ou meu irmão contra os meus caprichos? Quem perdoa mais? A resposta para este questionamento naturalmente já sabemos qual é. O remédio para combatermos o coração petrificado para o perdão deve, pelo menos, estar na consciência temerária: “Seremos julgados pelo amor!”, como afirma São João da Cruz. Diz-nos o santo: “No crepúsculo da vida seremos julgados pelo amor”. E certamente é isso que vai acontecer: se tivermos amado muito, consequentemente teremos perdoado bastante e ganharemos o céu como recompensa; se tivermos amado pouco, perdoamos pouco e conseguintemente não ganharemos o céu, mas a prisão eterna, onde seremos torturados, até que paguemos a nossa eterna dívida.


Em suma, podemos ver neste Evangelho uma belíssima exegese sobre o quinto pedido do Pai-Nosso: “Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido” (Mt 6, 12), pois a medida do perdão de Deus deve ser a do nosso perdão, bem como a medida do nosso perdão deve ser aquela que possui o perdão Dele. Devemos perdoar com largueza, tal como Deus faz. Por tal motivo é que Jesus, ao falar do castigo para os insensíveis, encerra o texto do Evangelho dizendo: “É assim que o meu Pai que está nos céus fará convosco, se cada um não perdoar de coração ao seu irmão”. Assim, na Oração Pós-Comunhão de hoje, iremos pedir: “Ó Deus, que a ação da vossa Eucaristia penetre todo o nosso ser para que não sejamos movidos por nossos impulsos, mas pela graça do vosso sacramento”. A insensibilidade é um impulso que precisa ser domado pelo exercício do perdão constante e sincero. A prática do perdão é ascética, ninguém começa a perdoar do dia para a noite. Dizemos sincero porque há muitos que dizem perdoar, porém na realidade não se atentam sobre o que é o perdão, que não comporta rancor, raiva, ressentimento, mas é algo que parte da caridade desinteressada (ágape). Esta é a atitude daquele que vive para Deus, como São Paulo nos lembra na Segunda leitura, pois “ninguém dentre nós vive para si mesmo ou morre para si mesmo” (Rm 14, 7), mas é para o Senhor que vivemos e morremos (cf. v. 8).
           
São Josemaria Escrivá de Balaguer nos interpela: “Doem-te as faltas de caridade do próximo para contigo. Quanto não hão de doer a Deus as tuas faltas de caridade – de Amor – para com Ele? […] Esforça-te, se é preciso, por perdoar sempre aos que te ofendem, desde o primeiro instante, já que, por maior que seja o prejuízo ou a ofensa que te façam, mais te tem perdoado Deus a ti” (Caminho, 441; 452). Peçamos ao Senhor a graça do perdão de nossos numerosos pecados. Que os choremos arrependidos, tal como nos aconselha o Papa Clemente XI em sua Oração Universal. Mas que nunca nos fechemos para o perdão a quem nos ofende, dando-lhe com alegria, por mais que seja preciso morremos na vontade para que isso aconteça.

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