sábado, 17 de novembro de 2012

XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 18 de novembro de 2012)


I Leitura: Dn 12,1-3
Salmo Responsorial: Sl 15(16),5.8.9-10.11 (R/.1a)
II Leitura: Hb 10,11-14.18
Evangelho: Mc 13,24-32 (Profecia escatológica)

Queridos irmãos,

Não é de hoje que muitos falam sobre o fim do mundo. Até mesmo, estamos por dentro, antenados, na conversa que sempre é advinda pelos mais diversos meios, inclusive dos de comunicação, acerca da existência de uma profecia maia sobre o fim do mundo para este término de ano. Muitas pessoas, ao serem interpeladas por tal temática, criam uma ojeriza, ficam horrorizadas, temendo a consumação de tudo o que existe sobre a terra. E não é para menos! Pensemos que tudo o que temos hoje, principalmente o que se é julgado por ‘bom’ é fruto de uma história, da existência de inúmeras pessoas que passaram por aqui e que ainda permanecem no hoje, construindo o presente. Assim sendo, a reflexão, ainda que longínqua, sobre o fim do mundo, se torna para tantos uma frustração, pois empenharam todo o seu existir para esta realidade temporal; consumaram seus anos, bens, sonhos... Iniciamos esta nossa meditação, falando de maneira generalizada. Faz-se urgente para os que creem no Cristo, diante da proposta da Liturgia da Palavra deste domingo, que renovemos a nossa esperança e fé nas benditas promessas que Jesus nos fez: “Depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde eu estou, também vós estejais” (Jo 14,3). Mas, para que cheguemos a tal grandeza, o próprio Senhor nos aconselha: “Não ajunteis para vós tesouros na terra, onde a ferrugem e as traças corroem, onde os ladrões furtam e roubam” (Mt 6,19).


Fim dos tempos, segunda vinda de Jesus (em grego denominado parusia = realidade próxima; que está para acontecer; iminente)... Tudo o que é ligado a estas ideias, para o cristão, deve ser motivo de alegria, de expectativa: “O Senhor virá. Ele assim prometeu-nos: Vinde, Senhor!”. Neste sentido, a liturgia de hoje, na Antífona de Entrada, nos recordar a proeminência de tal sentimento diante desta verdade professada pela Igreja: “Meus pensamentos são de paz e não de aflição, diz o Senhor. Vós me invocareis, e hei de escutar-vos, e vos trarei de vosso cativeiro, de onde estiverdes” (Jr 29,11.12.14). O fato de o Senhor vir a nós, destruir toda esta opressão presente nesta terra de exílio, de passagem, e levar-nos para junto de si, recapitulando-nos consigo, em sua Glória, é verdade que nos faz enojados do que é transitório, efêmero, trivial, ao tempo em que nos faz ansiar o que é verdadeiro, perene, eterno, consumação do que somos. Porém, este enfado às coisas terrenas não nos deve furtar a ideia de que ainda estamos peregrinos, e, que para alcançar a meta, se faz extremamente necessário caminhar. Foi por este motivo que São Paulo advertiu os cristãos de Tessalônica e nos adverte, cristãos do século XXI: “Quem não quiser trabalhar, não tem o direito de comer. Entretanto, soubemos que entre vós há alguns desordeiros, vadios, que só se preocupam em intrometer-se em assuntos alheios. A esses indivíduos ordenamos e exortamos a que se dediquem tranquilamente ao trabalho para merecerem ganhar o que comer. Vós, irmãos, não vos canseis de fazer o bem” (2Ts 3,10-13). Portanto, no dizer do Apóstolo, o furtar-se às coisas terrestres só porque o seu lugar é o céu, é ser alheio ao próprio céu, obtido também por nosso comportar-se aqui. Muitos cristãos demonizam o que é secular. Tal atitude é fruto de um pensamento alienado, de preguiçoso. Sim, devemos estar incomodados com tudo isto que vemos, porém não nos devemos desencarnar da presente realidade. Jacques Maritain, filósofo francês do século XX, homem honrado por sua conduta cristã, vai dizer acerca de si: “Sou um mendigo do céu travestido em homem deste século”. Mas, qual a fórmula (se é que ela existe) para ‘sacralizarmos’ o hoje do nosso exílio sobre a terra? Ainda São Paulo vai dizer: “Para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro” (Fl 1,21). Em outras palavras, é viver de tal forma bem, consoante com o Evangelho, na bendita esperança do Senhor, que estejamos unidos a ele, fazendo do nosso existir a manifestação de sua própria vida divina. Assim, enquanto não alcançarmos a plena vivência em Deus, que é a nossa vida verdadeira, não estamos alheios a Ele. Ainda com esta mesma ideia, temos, na liturgia deste domingo, a Oração de Coleta: “Senhor nosso Deus, fazei que nossa alegria consista em vos servir de todo o coração, pois só teremos felicidade completa, servindo a vós, o criador de todas as coisas”. O viver já neste mundo em Deus, ainda que de forma imperfeita, é um serviço cordial ao Senhor, que nos causa grande contentamento, na expectativa da verdadeira felicidade que só encontraremos nele.


Há um dito popular que servirá de entendimento para a Primeira Leitura: “Quem não deve, não teme”. O livro do profeta Daniel é considerado parte integrante do chamado ‘apocalipse do Antigo Testamento’, já que fala em destruição e em vida nova (ressurreição). Esta temática apocalíptica somente entrará no corpus do povo de Israel pela conquista da Palestina pelos gregos, aproximadamente no século II a.C.. Mediante a ressurreição, comum a todos, seremos mandados ou para a vida eterna ou para o opróbrio eterno. Mas com que critério isso se dará? Deus esclarece ao profeta: “Os que tiverem sido sábios, brilharão como o firmamento; e os que tiverem ensinado a muitos homens os caminhos da virtude brilharão como as estrelas, por toda a eternidade”. Logo, entrevemos, que os que não foram justos e sábios aos olhos de Deus, permanecerão na morte eterna, na escuridão, no afastamento daquele que é a Luz, o próprio Deus.


O Evangelho de hoje, próximo do fim do livro de Marcos, é colocado antes da narrativa do mistério pascal do Senhor. Acreditamos que esta localização não se dê aleatoriamente, mas com o propósito de inserir o leitor na dinâmica mesma da Profissão de Fé da Igreja: O Cristo padeceu, morreu, ressuscitou, subiu aos céus e virá em Sua Glória. Este capítulo de Marcos é exegeticamente conhecido como ‘apocalipse de Marcos’. Ele é iniciado com a saída do Senhor do Templo, sua predição acerca da destruição do mesmo, de Jerusalém e, por fim, de todo o mundo e, com esta a manifestação final do Cristo. Interessante é que, nas linhas do Evangelho de hoje, temos como sinais da chegada da Parusia o abalo das forças cósmicas. Este dado é visto, desde há muito pelos profetas, como descrição das potentes intervenções de Deus na história. Deus continua falando-nos. Não se revelando, pois já o fizera por completo ao longo da história da Salvação, em Cristo e no Espírito Santo. Mas fala-nos acerca de sua presença ao nosso lado. Esta é uma lição que devemos tirar para a nossa vida: Deus está onde aparentemente não está. Lembro-me de uma interrogação quando do terremoto que abalou o Haiti há alguns anos atrás: “Deus, onde estavas?”, a mesma que o Santo Padre Bento XVI fizera em Auschiwitz: “Onde estava Deus?”. Ocasiões de destruição, miséria e dor podem ser momentos de forte fala de Deus, inclusive quando essas intempéries acontecem dentro de nós. A mensagem de Deus é silenciosa, mas certeira; é um sossego entre vicissitudes, porém comunicante.


A Igreja é retratada com uma imagem peculiar de mulher, de esposa. Este arraigado atributo é perceptível em tantos momentos de sua vida, principalmente na Eucaristia, quando, tal como a amada que deseja o objeto do seu amor, a presença do amado, ela clama: “Vem, Senhor Jesus!” (cf. Ap 22,17), o que instantaneamente é correspondida: “Sim! Eu venho depressa! Amém. (Ap 22,20). A Esposa de Cristo, sem ruga e sem mancha, a nossa Mãe (cf. Gl 4,26), pede isso por nós, a cada Liturgia Eucarística, baseada em um dado fundamental: o anúncio do Cristo, morto e ressuscitado: “Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor, a vossa morte, enquanto esperamos a vossa vinda!”; ou ainda: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!”. Ao mesmo tempo, a Mãe Católica (no dizer de Santo Agostinho) diz à humanidade:  “Aquele que tem sede, venha! E que o homem de boa vontade receba, gratuitamente, da água da vida!” (Ap 22,17).

Somos o povo da espera pelo Senhor. A sua vinda encher-nos-á de alegria profunda. Somos firmados na promessa, no seu cumprimento e na expectativa futura: O Cristo nos veio e salvou; o Cristo virá e nos levará consigo. Por fim, queremos encerrar esta nossa reflexão com o pensamento de São Cirilo de Jerusalém em uma de suas Catequeses: “Anunciamos a vinda de Cristo: não apenas a primeira, mas também a segunda, muito mais gloriosa. Pois a primeira revestiu um aspecto de sofrimento, mas a Segunda manifestará a coroa da realeza divina. Aliás tudo o que concerne a nosso Senhor Jesus Cristo tem quase sempre uma dupla dimensão. Houve um duplo nascimento: primeiro, ele nasceu de Deus, antes dos séculos; depois nasceu da Virgem, na plenitude dos tempos. Dupla descida: uma discreta como a chuva sobre a relva; outra, no esplendor, que se realizará no futuro. Na primeira vinda, ele foi envolto em faixas e reclinado num presépio; na segunda, será revestido num manto de luz. Na primeira, ele suportou a cruz, sem recusar a sua ignomínia; na segunda, virá cheio de glória, cercado de uma multidão de anjos. Não nos detemos, portanto, somente na primeira vinda, mas esperamos ainda, ansiosamente, a segunda. E assim como dissemos na primeira: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor!’ (Mt 19,9), aclamaremos de novo, no momento de sua segunda vinda, quando formos com os anjos ao seu encontro para adorá-lo: ‘Bendito o que vem em nome do Senhor!’ Virá o Salvador, não para ser novamente julgado, mas para chamar o juízo aqueles que se constituíram seus juízes. Ele, que ao ser julgado, guardara silêncio, lembrará as atrocidades dos malfeitores que o levaram ao suplício da cruz, e lhes dirá: ‘Eis o que fizestes e calei-me’ (Sl 49,21). Naquele tempo ele veio para realizar um desígnio de amor, ensinando aos homens com persuasão a doçura; mas no fim dos tempos, queiram ou não, todos se verão obrigados a submeter-se à sua realeza. O profeta Malaquias fala dessas duas vindas: ‘Logo chegará ao seu templo o Senhor que tentais encontrar’ (M1 3,1). Eis uma vinda. E prossegue, a respeito da outra: ‘E o anjo da aliança, que desejais. Ei-lo que vem, diz o Senhor dos exércitos; e quem poderá fazer-lhe frente, no dia de sua chegada? E quem poderá resistir-lhe, quando ele aparecer? Ele é como o fogo da forja e como a barrela dos lavadeiros; e estará a postos, como para fazer derreter e purificar’ (M1 3,1-3). Paulo também se refere a essas duas vindas quando escreve a Tito: ‘A graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens. Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade, aguardando a feliz esperança e a manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo’ (Tt 2,11-13). Vês como ele fala da primeira vinda, pela qual dá graças, e da segunda que esperamos? Por isso, o símbolo da fé que professamos nos é agora transmitido, convidando-nos a crer naquele que subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim. Nosso Senhor Jesus Cristo virá portanto dos céus, virá glorioso no fim do mundo, no último dia. Dar-se-á a consumação do mundo, e este mundo que foi criado será inteiramente renovado” (Catequeses de São Cirilo de Jesrusalém 15,1-3).

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 11 de novembro de 2012)



I Leitura: 1Rs 17,10-16
Salmo Responsorial: Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10 (R/.1)
II Leitura: Hb 9,24-28
Evangelho: Mc 12,38-44



Queridos irmãos,



Existe uma frase bastante conhecida em nosso meio, que, inclusive, é bíblica, mas que poderia, tranquilamente, sintetizar a Liturgia da Palavra deste domingo: “O que o homem vê não é o que importa: o homem vê a face, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7). Assim sendo, ao contrastar este trecho muito difundido no meio popular com o Evangelho, perceberemos uma nuance importante: Deus conhece-nos inteiramente! Assim, acontecera através do olhar que Jesus fitou sobre aqueles tantos que frequentavam o Templo de Jerusalém, inclusive esta bendita viúva colocada no anonimato.


Faz-se necessário que entremos no panorama bíblico-teológico do Evangelho de hoje. O Evangelho de São Marcos é organizado em quatro cenários teológicos: o Deserto, a Galileia, o caminho e Jerusalém. A perícope de hoje situa-se aí, em Jerusalém. E adentramos neste cenário com a Liturgia da Palavra do XXXI Domingo do Tempo Comum (Mc 12,28-34). Só que, aqui no Brasil, este Evangelho não foi proclamado no domingo passado por conta da Solenidade de Todos os Santos, transferida do dia 1º de novembro para o domingo, 04 do mês corrente. Este cenário de São Marcos é iniciado no capítulo 11 e se estende até o término do seu Evangelho.


Jesus sobe a Jerusalém para viver o Mistério Pascal, realizando a obra de redenção do gênero humano pelo seu sangue vertido na cruz, pela sua morte salvadora. E, desde que adentra na cidade, faz observações e denúncias pertinentes acerca da prática judaica, alertando sobre a caduquice da religião dos judeus (até porque a sua prática era levada a cabo tendo como norte as aparências e os ritualismos vazios), ao contrário do que propõe Jesus: uma religião nova, baseada unicamente em sua Divina Pessoa. Por este motivo, o evangelho de hoje ser iniciado pela censura aos doutores da Lei, marcos da religião judaica, que não reconheciam a grandeza do Cristo que se lhes apresentava, fechados em realidades outras, que alienam o homem: luxo, honra, cobiça e dissimulação.


Ao criticar severamente os mestres da Lei por prezarem as vaidades e as honrarias do mundo, o Senhor recomenda aos seus discípulos para que não façam o mesmo, e os assevera, advertindo: “Tomai cuidados com os doutores da Lei! […] Eles receberão a pior condenação” (Mc 12,38.40). Percebemos ainda, pela audição das leituras deste domingo, que a figura da viúva é posta em evidência. Esta classe desfavorecida da sociedade judaica, cuja atenção já era cobrada pela Torá (cf. Ex 22,22), era defraudada pela falsa piedade das autoridades do judaísmo, pelos teoricamente versados na Palavra de Deus.


O texto de São Marcos prossegue, mostrando o Senhor no Templo, sentado, diante do cofre das esmolas, concorrido por muito ricos e pobres, inclusive viúvas, e, dentre estas, uma que, inconscientemente, furta o olhar de Jesus para si, sem pretensão alguma, ao depositar suas duas moedinhas, monetariamente insignificantes, mas valorosas porque, juntamente com aquelas frações míseras, a mulher havia colocado como oferta ao Senhor o que de mais valioso possuía: toda a sua existência, tudo o era no que tinha. Havia entregado a sua humana razão de viver Àquele de quem todo o viver procede, agradando enormemente a Deus. Neste sentido, meditando a ação desta viúva, cujo interior Jesus exaltou, um autor conhecido pelo apelido de pseudo-Jerônimo afirma: “Em sentido místico, os ricos são aqueles que tiram do tesouro de seu coração o novo e o velho, quer dizer, os segredos e recônditos mistérios da divina sabedoria de um e de outro Testamento [da Palavra de Deus]. E, quem é essa pobrezinha senão eu mesmo e meus semelhantes, que damos o que podemos e desejamos que se nos explique o que não podemos? Porque Deus não considera o que haveis entendido, mas sim o vosso ânimo de entendê-lo. Todos podemos oferecer um quadrante [duas moedas], que é a boa vontade, a qual se chama quadrante porque existe com outras três coisas, a saber: pensamento, palavra e obra”; ao mesmo tempo em que São Beda, o Venerável, alude: “Alegoricamente, os ricos que lançavam na arca representam os judeus orgulhosos da justiça e da lei; a viúva pobre representa a simplicidade da Igreja, sendo pobre porque se despojou do espírito da soberba ou das concupiscências do temporal, e viúva porque aquele a quem estava unida sofreu a morte por ela. E põe duas moedinhas na arca, porque leva as oferendas do amor a Deus e ao próximo, ou da fé e da oração. Estas moedinhas valem pouco. No entanto, têm o mérito da piedosa intenção, pela qual são aceitas e mais estimadas que tudo o oferecido pelos soberbos judeus. Estes fazem oferendas ao Senhor do que lhes sobra, enquanto que a Igreja dá-lhe tudo o que tem, porque entende que tudo o que é vida nela não é mérito seu, mas dom de Deus” (In Marcum, 3,42).


Símile atitude temos no exemplo da viúva de Sarepta, pagã, pobre e faminta juntamente com o seu filho, que não hesitando em servir o profeta Elias, quando da seca que atingiu a terra, confia na Palavra de Deus e é solícita, ofertando ao Senhor pelo profeta o que serviria para o seu parco sustento: “Pela vida do Senhor, teu Deus, não tenho pão. Só tenho um punhado de farinha numa vasilha e um pouco de azeite na jarra” (1Rs 17,12). Ao que lhe disse o profeta: “Não te preocupes! Vai e faze como disseste. […] Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘A vasilha de farinha não acabará e a jarra de azeite não diminuirá, até o dia em que o Senhor enviar a chuva sobre a terra’” (1Rs 17,13.14).


Se nos enche os olhos o agir dessas mulheres bíblicas, ambas anônimas, mas a primeira topônima, que cada uma, ao seu tempo, ofereceu ao Senhor, por meios diferentes, aquilo que lhes era necessário, o que diremos de Cristo, que o conhecemos, que, de rico, fez pobre para nos enriquecer, “sendo Deus, rebaixou-se a si mesmo, fazendo-se aos homens semelhante” (Fl 2,7), oferecendo-se, de “uma vez por todas” (Hb 9,12), tal como o reconhece a Segunda Leitura? Muito mais do que essas viúvas, não seria o Cristo, o máxime, para não dizer o Verdadeiro, o único exemplo de entrega? Muito antes de nos inspirarmos nessas mulheres, servas de Deus, não deveríamos imitar o que por nós se ofereceu? Tendo Jesus como modelo de entrega eminentíssimo, Santo Inácio de Loiola escreverá: “Recebei, Senhor, a minha liberdade inteira. Recebei minha memória, minha inteligência e toda a minha vontade. Tudo o que tenho ou possuo de vós me veio; tudo vos devolvo e entrego sem reserva para que a vossa vontade tudo governe. Dai-me somente vosso amor e vossa graça e nada mais vos peço, pois já serei bastante rico”. E, mais tarde, o que poeticamente surgirá pelos arranjos do sacerdote português Cartagena, inspirado no mesmo Santo Inácio: “Toma a minha vida, aceita, Senhor! Que a Tua chama arda no meu peito. Todo o meu ser anseia por Ti. Tu És meu Mestre, ó Divino Rei. Fonte de vida, de paz e amor. Por Ti eu clamo sempre, Senhor. Guia a minha alma, enche-a também: Sê meu refúgio e supremo bem. De todo o mal, guarda-me, Senhor. Só Tu me guias, meu Rei e meu Deus. Se a noite esconde a luz aos meus olhos, és minha estrela a brilhar nos céus. Eis que vem a aurora de um novo dia. O céu dourado, um fogo tão belo. Já vem Jesus, para quê chorar? Cabeça erguida, Ele vai chegar!”


Bastante interessante a lógica, a atitude de Deus: Ele pede de nós o essencial, o que de melhor temos, porque não dizer a nossa vida por inteiro. Concomitante o oferecemos, mais largamente nos dá e pede de nós. Retribuiremos com generosidade porque com maior gratuidade nos é sempre dado. Oferta agradável ao Senhor, pois “a oblação do justo enriquece o altar; é um suave odor na presença do Senhor” (Eclo 35,8). Desta forma, faremos valer o que Jesus já nos havia solicitado: “Recebestes de graça, de graça dai!” (Mt 10,8); e ainda: “Dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também” (Lc 6,38). Destarte, a Divina Providência, agindo no absurdo de nossa vida doada incondicional e ilimitadamente, fará dela a paradoxal famigerada e sutil vida de Deus, tal como o Cristo que se oferece inteiramente para ganhar-nos para Si.


Cabe-nos ainda mais uma consideração: aqueles outros que depositavam as suas sobras no cofre do tesouro do Templo não haviam sido impulsionados, de alguma forma, por Deus para que fizessem a sua oferta? Caso positivo, o porquê, espiritualmente e intencionalmente falando, não primaram pela generosidade? Por que não foram tão sensíveis ao influxo de Deus, tal como a viúva inominada? Caso negativo, qual foi a real motivação que os levou a depositar o seu ofertório no altar do Senhor? E nós, diante desta situação bifurcada, nos enquadramos onde? O que nos impede, se pensarmos como os demais de cuja oferta era desconexa com a vida, de fazermos o diferente?


Nas aparências que mundo bastante preza, podemos tantas vezes não ser importantes, tampouco gerarmos o interesse dos que se vão ‘na onda do momento’. O que importa? O que lhe ofereceremos nunca será tão precioso quanto aquilo que damos ao Senhor: nosso coração, com a real intenção de sermos só Dele, ele mesmo que se rejubila por um que lhe vem ao encontro, ou que por ele é alcançado no amor, do que com os que já lhe pertencem, sendo seus (cf. Lc 15,1-10). Nossa frágil vida é um tesouro indispensável aos olhos do Criador de toda vida que não deseja que ninguém se perca: “Assim é a vontade de vosso Pai celeste, que não se perca um só destes pequeninos” (Mt 18,14). A Divina Providência sempre nos surpreende. Este dar de nossa pobreza a Deus, far-nos-á, posteriormente, dignos do céu, tal como disse o Senhor no Sermão da Montanha e a estrofe do canto de aclamação recordará: “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3).


Que o exemplo dessas duas viúvas da liturgia de hoje nos inspirem. Que o Senhor Jesus, que se ofereceu inteiramente a Deus por nós, por sua morte salvadora, nos sirva de modelo. Sempre cônscios de que nosso viver não é nosso, mas é Daquele de quem tudo procede, por amor.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“A RESIGNAÇÃO DOS QUE FICAM É A CERTEZA DE QUE OS BONS ESTÃO NA CASA DE DEUS”



Queridos irmãos,


Acredito que foi no ano de 2003 (muito embora a data pouco importe de fato), ao fazer um trabalho escolar no Cemitério Senhor do Bonfim, na cidade de Lagarto, encontrei um belíssimo mausoléu revestido de um granito tirado a cor rubi, encimado com uma belíssima escultura da La Pietà e uma inscrição em uma placa de bronze: “A resignação dos que ficam é a certeza de que os bons estão na Casa de Deus”. Esta ficou gravada em minha mente e, por ocasião da morte de algum ente querido, sempre me serve de consolo. Ora, a frase da qual estamos falando é uma sintetização bem feita da esperança cristã acerca da morte.


O dia de hoje insere-se dentro da realidade da Solenidade de Todos os Santos. Santos são todos aqueles que viveram de tal forma unidos a Deus que, no ocaso de sua vida, alcançaram o prêmio eterno, a coroa imarcescível da glória. Por isso, a Igreja nomina a comemoração de hoje como dos fiéis defuntos, já que obtendo este adjetivo, hoje, merecem gozar de uma eternidade feliz e a celebra um dia após o 1º de novembro.


Ao celebrarmos a Comemoração dos Fiéis Defuntos, cuja fama é conhecida como Dia de Finados, os cristãos são convidados a um tríplice movimento de fé. O primeiro se pontua na realidade da vitória de Cristo sobre o Pecado e a Morte. Esta primordial certeza nos abastece de esperança, pois, “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé [...] E se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados” (1Cor 15,14.17). Logo, podemos perceber que esta memória litúrgica possui um laço bastante forte com a Páscoa. A partir desta afirmativa, adentramos no segundo movimento: A Páscoa (passagem) dos que já nos precederam. Cronologicamente, tantos nos antecederam na viagem rumo à Pátria dos Bem-Aventurados, o Céu. Neste sentido, a partir da redenção operada por Cristo Jesus, a morte (cuja visão era a de castigo por conta do pecado) ganha um sentido novo: a de ingresso na Vida Eterna. Santa Teresa de Lisieux, no leito de sua morte, afirma: “Eu não morro, entro na vida”. Esta verdade deve servir-nos de consolo se nos lamentamos com a perda trazida pela morte. No terceiro movimento da fé cristã, estamos nós. Nesta dimensão, somos convidados a lembrar-nos de que o nosso dia também chegará; será a nossa páscoa, nosso encontro com o Senhor. Este ingresso, esta passagem (Páscoa), em Cristo, não é mais amparada pelo pecado, mas pelo poder de sua Cruz: “Se vivemos, vivemos para o Senhor; se morremos, morremos para o Senhor. Quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor” (Rm 14,8). Destarte, a morte para o fiel cristão é a consumação da nossa pertença a Cristo, pois obteremos a visão beatífica: “Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto o veremos como ele é” (1Jo 3,2).


Sim somos convidados, no dia de finados, a pensar na nossa realidade mortal. Ontem, eles se foram; hoje, pode ser nós. Hoje, eles recebem a nossa oração e reverência; amanhã seremos nós quem as receberá. Mas, no dia do chamado do Senhor para a ‘verdadeira vida’, o que lhe apresentaremos? Este pensamento nos deve sempre invadir. Construímos com a nossa existência, com as obras cristãs unidas à fé no Senhor da Vida (cf. Tg 2, 20), a nossa trilha para a Bem-Aventurança.  Se tivermos feito por onde obtermos a Vida de Deus e a Vida Nele, adentraremos na Jerusalém Celeste, onde “Nem olho algum viu, nem ouvido algum ouviu, nem jamais passou pela cabeça do homem o que Deus preparou para os que o amam” (1Cor 2,9). Mas, por que tememos a morte? Vem-me à mente: “Onde está o teu coração aí está o teu tesouro” (Mt 6, 21), e ainda, “Somos concidadãos dos santos” (Ef  2, 9). Portanto, se estamos com os nossos pés nesta terra, mas com os olhos direcionados para o alto, não temeremos a morte, porque estaremos cônscios de que a meta desta vida não está nas realidades terrenas, mas que estas devem servir-me de meio para alcançar a meta real: a vida de Deus e a vida Nele. O Céu é o tesouro do fiel cristão, porque lá está Deus.


Em meio à explosão de tantas teorias espíritas, parece que a doutrina cristã está sendo olvidada. Nós, cristãos, não cremos na reencarnação! Nossa passagem por esta terra é única, irrepetível. A purificação de nossa alma já se deu de uma vez por todas na cruz do Senhor, e se dá cotidianamente na páscoa sacramental por meio da Confissão e da Eucaristia. Obviamente a vivência cristã deva ser regada pela caridade exteriorizada por uma vida retamente virtuosa. O Cristianismo crê na ressurreição! “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos?” (1Cor 15,12). Cristo ressuscitou, e nós ressuscitaremos com Ele! Esta é uma afirmação da Igreja, e excomungado está quem não professa este dado de fé! Dentre as provas dadas pelos Apóstolos à Igreja de Cristo, apresentamos todo capítulo quinze da Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios.


Ao refletirmos sobre a morte (cuja tratação na Teologia cabe à Escatologia), também somos chamados a ponderar acerca dos Novíssimos ou dos últimos fins do homem. A Sagrada Teologia, logicamente apoiada nas Sagradas Escrituras, afirma que os destinos do homem são basicamente dois: Paraíso e Inferno. Assim sendo, conforme reza o Catecismo da Igreja Católica, após o juízo particular de cada um, a pessoa, no estado de alma imortal, recebe uma retribuição imediata em relação à sua fé e às suas obras. Essa retribuição consiste no acesso à Glória Eterna, imediatamente ou depois de uma adequada purificação, ou no ingresso à condenação eterna (cf. Catecismo da Igreja Católica 1021-1022; 1051). Por céu, a Santa Igreja Católica entende “o estado de felicidade suprema e definitiva. Os que morrem na graça de Deus e não têm necessidade de ulterior purificação são reunidos em torno de Jesus e de Maria, dos anjos e dos santos. [...] Vivem em comunhão de amor com a Santíssima Trindade e intercedem por nós (Compêndio do Catecismo da Igreja Católica, 209). Por purgatório[1], a “Mãe Católica” prega que este estado de espírito é concedido aos que morrem reconciliados com Deus, mas que precisam de purificação para poder entrar no céu. Logo, quem, de imediato após a morte, é enviado para cumprir as suas penas no purgatório, tem a garantia do céu, pois é um estágio momentâneo, muito embora na eternidade não possua o caráter da temporalidade. Às almas que estão no purgatório, podemos ajudá-las com as nossas orações de sufrágio, em especial com a Santa Missa, como também através das esmolas, indulgências e obras penitenciais. E o que a Igreja diz acerca do inferno? No Compêndio do Catecismo da Igreja Católica encontramos a resposta: o inferno “consiste na condenação eterna dos que, por livre escolha, morrem no pecado mortal. A pena principal do inferno consiste na separação eterna de Deus, em quem unicamente o homem tem a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira” (n. 212). “Dos que morrem no pecado mortal...”, daí a extrema importância de tentar viver de maneira ilibada os valores cristãos, principalmente em um mundo tão adverso e hostil à moral trazida pelo Cristo. O pecado mortal é uma excomunhão, uma recusa espontânea por parte do homem do amor misericordioso de Deus.


Nós, os vivos, sentimos quando da morte das pessoas a quem amamos. Chegamos até a chorar. Isso é normal, pois trata-se de uma separação (ainda que momentânea). Ao cristão não é cabível o desespero. Isso é inadmissível! Pois, em Cristo, todos encontrar-nos-emos: este é o nosso alento. Nós, Igreja Peregrina neste mundo, rumamos para o lugar onde não haverá mais dores e pranto, onde habitaremos no coração de Deus, tal como os que nos precederam pela porta da morte e já gozam da feliz eternidade do convívio com Ele e n’Ele. Unir-nos-emos aos que já se rejubilam na Igreja triunfante da comunhão dos santos. Por tal motivo, concluímos que a morte é sinal de esperança para todos.


Que esta expectativa de encontro definitivo com o Senhor e com aqueles que já nos precederam no gozo celeste preencha o nosso coração, a fim de estarmos preparados com dignidade para este divino momento, onde tomaremos posse dos bens eternos reservados por Jesus para nós, onde seremos recapitulados em Cristo (cf. Ef 1, 10), onde Deus será “tudo em todos” (1Cor 15, 28).



[1] As provas bíblicas da existência do purgatório, encontramos em Mt 12, 32; 1Cor 3, 15; 1Pd 1, 7; 2Mc 12, 46; Jó 1, 15.