domingo, 16 de setembro de 2012

A IGREJA E A SUA SANTIDADE INDEFECTÍVEL


          
       

             De veneranda memória, as Profissões de Fé da Igreja Católica sempre foram uma síntese riquíssima das verdades da nossa fé, logicamente apoiadas na mais sã teologia, provenientes da Escrituras Sagradas e da Tradição dos Apóstolos. Assim, perpassaram ao longo da história da Igreja o que os fiéis sempre creram com fundamentos doutrinais da fé católica. Debruçados sobre elas, nós decidimos fazer uma acurada pesquisa acerca daquilo que constantemente professamos: “Credo in Sancta Ecclesia”. Portanto, constatamos que esta ideia de que a Igreja é Santa graças aos méritos de seu Divinal Fundador já é arraigada desde cedo em esmagadora maioria das fórmulas de fé e que é uma constante independentemente do lugar em que são professadas. Mesmo as que não fazem referência direta a santidade da Igreja não fazem uma alusão contrária. A partir deste dado inicial, supomos logicamente que se a Igreja, de fato, fosse pecadora, maculada pelos erros de seus membros, o Magistério da Igreja já havia, há muito, acenado para este dado, não o excluindo do seu Credo. Com estas informações iniciais, queremos, utilizando documentações não segundo uma devida ordem cronológica, mas conforme o desejado para ilustrar o nosso pensamento, provar a santidade da Igreja como elemento ontológico de seu ser e agir no mundo, continuadora da missão de Cristo, sendo Sacramento de Salvação operada pelo seu Deus e Fundador.


          O Catecismo Romano nos diz: “Crer que a Igreja é ‘santa’ e ‘católica’ e que ela é ‘una’ e ‘apostólica’ é inseparável da fé em Deus Pai, Filho e Espírito Santo” (1,10). As quatro notas revelam a identidade da Igreja e a sua operação no mundo. A Igreja não é uma mera reunião de pessoas, mas, existindo já no coração de Deus (cf. LG 2), é uma ‘convocatio fidelis’, existindo independentemente de nós, pois é uma instituição do próprio Cristo. É convocação de fiéis porque, mesmo tendo sido querida e edificada pelo Senhor, nós, pelo Batismo, somos integrados nela: “Já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo por pedra angular o próprio Cristo Jesus. É nele que todo edifício, harmonicamente disposto, se levanta até formar um templo santo no Senhor. É nele que também vós outros entrais conjuntamente, pelo Espírito, na estrutura do edifício que se torna a habitação de Deus” (Ef 2,19-22). Desta forma, excluamos a pretensa e reducionista ideia de que formamos a Igreja por nós mesmos, fazendo com que todas as nossas atividades (inclusive os míseros nossos pecados) sejam também do “Corpo Místico de Cristo”, tal como aconteceria em uma relação hipostática. Somos Igreja por uma alusão, que é verdadeira e válida, mas alusão.  Daqui, somos suficientemente inteligentes para excluirmos a ideia herética de que a Igreja é santa e pecadora.


      Coadunando com o que já afirmamos, exporemos, adiante, o que a Igreja, em seus diversos pronunciamentos em concílios, sínodos e outras formas do exercício do seu Magistério, afirma:


          “Cremos também que a Igreja Católica, sem mancha no operar e sem ruga [cf. Ef 5,23-27] na fé, é o seu corpo [de Cristo] e possuirá o Reino, com a sua Cabeça, o onipotente Cristo Jesus, depois que esta realidade corruptível se tiver vestido com a incorrupção e esta realidade mortal, com a imortalidade [1Cor 15,53], ‘a fim de que Deus seja tudo em todos’ [ib. 15,53]. Por meio desta fé são purificados os corações [cf. At 15,9], mediante ela são extirpadas as heresias, nela, a Igreja inteira já toma lugar no Reino celeste e, permanecendo (ainda) no século presente, se gloria; e não há salvação em outra fé ‘pois não foi dado aos homens outro nome debaixo do céu, no qual devamos ser salvos’ (At 4,12)” (VI Sínodo de Toledo, iniciado em 9 de janeiro de 638; Denzinger 493).


           “Se alguém, de modo confesso, pensa e louva a opinião dos iníquos hereges e com apresentada tolice diz que estas são as doutrinas da piedade, transmitidas pelos que desde o início foram testemunhas oculares e ministros da Palavra – isto é, os cinco Sínodos santos e ecumênicos –, enquanto calunia os próprios cinco santos Sínodos ecumênicos, para engano dos mais simples ou amparo à própria fé errônea e profana, esse tal seja condenado. Se alguém, de acordo com os iníquos hereges, de algum modo…remove ilicitamente os marcos que fixaram de modo irremovível os santos Padres da Igreja Católica – isto é, os cinco Sínodos santos e ecumênicos –, e temerariamente inventa inovações e exposições de outra fé, ou fórmulas ou leis ou estatutos, ou livros, ou artigos, ou cartas, ou assinaturas, ou falsos testemunhos, ou sínodos, ou atos de registro, ou ordenações inválidas não reconhecidas pela regra eclesiástica, ou representações ou representantes sem legalidade e acanônicos; e, em suma, se faz qualquer outra coisa que os ímpios hereges costumam fazer, mediante operação diabólica, tortuosa e astutamente, contrariando as pias e ortodoxas pregações da Igreja católica – isto é, dos seus Padres e Sínodos –, para destruir a sincera profissão do Senhor nosso e Deus Jesus Cristo; e se persevera até o fim sem arrependimento neste ímpio agir, seja condenado pelos séculos dos séculos, ‘e todo o povo dirá: assim seja, assim seja’ [Sl 106,48]” (Sínodo de Latrão, ocorrido entre 5-31 de outubro de 649, cânones 19-20. Denzinger 521-522).


 “Como, porém, ‘sem a fé é impossível agradar a Deus’ [Hb 11,6] e chegar ao consórcio dos seus filhos, ninguém jamais pode ser justificado sem ela, nem conseguir a vida eterna se nela não ‘perseverar até o fim’ [Mt 10,22 ;24,13]. Ora, para que pudéssemos cumprir o dever de abraçar a verdadeira fé e nela perseverar constantemente, Deus instituiu, por meio de seu Filho Unigênito, a Igreja, e a muniu com os sinais manifestos da sua instituição, para que pudesse ser por todos reconhecida como guarda e mestra da palavra revelada. Porquanto somente à Igreja Católica pertencem tudo o que, tão numeroso e tão prodigioso, foi por Deus disposto para tornar evidente a credibilidade da fé cristã. Além disso, a Igreja em si mesma, pela sua admirável propagação, exímia santidade e inesgotável fecundidade em todos os bens, por sua unidade católica e invicta estabilidade, é um grave e perpétuo motivo de credibilidade, e um testemunho irrefutável da sua missão divina” (Concílio Ecumênico Vaticano I: Constituição “Dei Filius”. Denzinger 3012-3013).



Cristo, mediador único, estabelece e continuamente sustenta sobre a terra, como um todo visível, a Sua santa Igreja, comunidade de fé, esperança e amor, por meio da qual difunde em todos a verdade e a graça. Porém, a sociedade organizada hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons celestes não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino. Apresenta por esta razão uma grande analogia com o mistério do Verbo encarnado. […] Esta é a única Igreja de Cristo, que no Credo confessamos ser una, santa, católica e apostólica; depois da ressurreição, o nosso Salvador entregou-a a Pedro para que a apascentasse (Jo 21,17), confiando também a ele e aos demais Apóstolos a sua difusão e governo (cf. Mt 28,18 ss.), e erigindo-a para sempre em ‘coluna e fundamento da verdade’ (I Tim 3,5). […] Enquanto Cristo ‘santo, inocente, imaculado’ (Hb 7,26), não conheceu o pecado (cf. 2Cor 5,21), mas veio apenas expiar os pecados do povo (Hb 2,17), a Igreja, contendo pecadores no seu próprio seio, simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação, exercita continuamente a penitência e a renovação” (LG 8).


“A Igreja é santa, mesmo tendo pecadores em seu seio, pois não possui outra vida senão a da graça: é vivendo de sua vida que seus membros se santificam; é subtraindo-se à vida dela que caem nos pecados e nas desordens que impedem a irradiação da santidade dela. É por isso que ela sofre e faz penitência por essas faltas, das quais tem o poder de curar seus filhos, pelo sangue de Cristo e pelo dom do Espírito Santo” (Paulo VI. Credo do Povo de Deus, 19).                                                                                 


“A Igreja, à qual todos somos chamados e na qual por graça de Deus alcançamos a santidade, só na glória celeste alcançará a sua realização acabada, quando vier o tempo da restauração de todas as coisas (cf. At 3,21) e, quando, juntamente com o gênero humano, também o universo inteiro, que ao homem está intimamente ligado e por ele atinge o seu fim, for perfeitamente restaurado em Cristo (cf. Ef, 1,10; Col. 1,20; 2Pd. 3,10-13). […] Já chegou, pois, a nós, a plenitude dos tempos (cf. 1Cor 10,11), a restauração do mundo foi já realizada irrevogavelmente e, de certo modo, encontra-se já antecipada neste mundo: com efeito, ainda aqui na terra, a Igreja está aureolada de verdadeira, embora imperfeita, santidade. Enquanto não se estabelecem os novos céus e a nova terra em que habita a justiça (cf. 2Pd 3,13), a Igreja peregrina, nos seus sacramentos e nas suas instituições, que pertencem à presente ordem temporal, leva a imagem passageira deste mundo e vive no meio das criaturas que gemem e sofrem as dores de parto, esperando a manifestação dos filhos de Deus (cf. Rom 8,19-22)” (LG 48).


         “Sendo desta fé, a santa Igreja católica, purificada pela água do batismo, redimida mediante o precioso sangue de Cristo e sem ruga na fé nem mancha de obras sórdidas [cf. Ef 5,23-27], é rica de insígnias, reluz pelas virtudes e resplandece cheia de dons do Espírito Santo. Ela reinará para sempre com a sua Cabeça, nosso Senhor Jesus Cristo, de quem, sem sombra de dúvida, é o corpo; e todos aqueles que agora de modo algum estão nela, ou nela não estarão, ou se afastaram ou dela se afastarão, ou que, pelo mal da incredulidade, negam que nela os pecados são remitidos, se não retornarem a ela com o auxílio da penitência e não tiverem crido de sombra de dúvida todas as afirmações que o Sínodo de Niceia ..., a reunião de Constantinopla … e a autoridade do primeiro Concílio de Éfeso decidiram aceitar e que a vontade unânime dos santos Padres de Calcedônia ou dos outros Concílios, ou também de todos os venerandos Padres que viveram retamente na santa fé prescrevem observar, (todos eles) serão sancionados com a condenação à punição eterna e, no fim do tempo, serão queimados com o diabo e os seus asseclas em fogueiras vomitando chamas” (XVI Sínodo de Toledo, iniciado em 02 de maio de 693, cânones 36-37. Denzinger 575).


        Pode aparentar uma pretensão e arrogância, porém, acreditamos que diante destas considerações nossas, utilizando as palavras mesmas da Igreja para uma definição acerca de si mesma, deva ser execrado todo o pensar tortuoso de alguns ditos ‘teólogos católicos’ que levantam a bandeira sorrateiramente contra as ortodoxas fé e teologia da Imaculada Esposa de Cristo e que invadem a prática de piedade e o conhecimento de muitos dos que professamos, desde há muito, a fé dada por Jesus aos seus para que a guardassem e a anunciassem.


       Que ao Supremo Pastor da Mater Ecclesia seja dada a glória imensa que lhe é devida e que a Santidade que dele brota e que perpassa pelo úbere do seu ditoso redil possa alcançar-nos mediante a abertura de nosso ser à experiência de uma fé sem arestas e confusões ensinadas pela sua mesma Igreja.

sábado, 8 de setembro de 2012

XXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 09 de setembro de 2012)




I Leitura: Is 35,4-7a
Salmo Responsorial: Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10 (R/. 1.2a)
II Leitura: Tg 2,1-5
Evangelho: Mc 7,31-37 (Cura do surdo-mudo)



Queridos irmãos,


Ao presenciar, extasiadas, tantas situações difíceis, amarguradas, muitas pessoas têm a pretensão de afirmar que tudo está perdido. Que, diante das mazelas assistidas, nada tem jeito, caindo, portanto, na desesperança. O cristão, em todos os tempos, não deve se esquecer de que “a esperança não decepciona” (Rm 5,5); que a origem e o termo da criação são Deus, e, desta forma, ele é Senhor da história. Sim, a esperança de um porvir melhor, que necessariamente não se dará no século, deve fazer com que o seguidor de Cristo viva de fé. Embora sejam virtudes teologais distintas, a esperança e a fé não são desconexas, pois a esperança é a força da fé.


A Liturgia da Palavra deste XXIII Domingo do Tempo Ordinário traduz-nos esta visão eminentemente judaico-cristã, conquanto com dimensões diversas entre a Primeira Leitura e o Evangelho. O povo cristão, eleito com segundo uma presciência mais sublime do que a do povo judeu, embutido de esperança, já possui a certeza de que esta vida plena é uma realidade presente, pois é o próprio Cristo.


Assim sendo, na Primeira Leitura extraída do Profeta Isaías, temos o ânimo que o Profeta injeta no povo de Judá frente às misérias impostas pelos assírios que, querendo invadir o país, assolam o povo da Antiga Aliança. Este trecho, que é iniciado em 34,1 e se encerra em 35,10, pertence ao que os estudiosos denominam apocalipse de Isaías. Logo, diante da iminente situação de crise, o povo de Judá é chamado a encará-la de frente, com a altivez da fé, na esperança de que Deus está consigo: “Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar” (Is 35,4). Salta-nos aos olhos a expressão “vingança que vem” acompanhada de “é a recompensa de Deus; é ele que vem para nos salvar”. A palavra vingança, em nossa cultura ocidental, possui uma pesada carga. Porém, para o povo judeu, nesta leitura, possui a ideia de justiça. Destarte, na concepção bíblica, vingança significa dizer que Deus, ao libertar o seu povo das ameaças e opressões dos inimigos, fará justiça aos opressores, recompensando a cada um conforme o que fizera. Mas, como Deus fará justiça? O recorte seguinte responder-nos-á: “É ele que vem para vos salvar” (v. 4).


Diante da lógica humana, parece-nos obscuro o entrelace justiça, salvação e misericórdia. Sim, misericórdia! Deus nos salva não porque mereçamos ou sejamos ‘bonzinhos’. Não! Com o povo judeu também foi assim. O Senhor nos salva porque nos ama.


Há pouco, falávamos que a Liturgia da Palavra pondera-nos desta visão de esperança comum a judeus e cristãos, entretanto com dimensões diferentes. Aqui e agora, apresentamos três dimensões básicas, sempre levando em consideração que a realidade cristã é infinitamente superior à judaica: 1) A esperança de dias melhores que os judeus possuíam é etnicamente particularizada, já que a noção de povo eleito era restrita a Israel, assim, excluía os gentios. Nós, em compensação, temos uma esperança universalizada, estendida a todos os homens que creem no Cristo. Por isso, muito mais do que determinismos consanguíneos e culturais, é determinável o ‘laço’ da fé no Cristo. 2) A esperança de dias melhores para o povo judeu é a expectativa meramente material e temporal, que acontecerá no Israel geográfico. Para os cristãos, ela transcende o contingente da materialidade e nos levar a ansiar uma realidade superior: o céu e a eternidade. 3) O povo judeu possui a palavra da Promessa, por isso espera por melhores dias. Nós os cristãos vivemos, desde esta ‘terra de exílio’, a realidade da Promessa, pois a Palavra feito homem no-la garantiu com o mistério de sua Encarnação e Redenção. Vivemos o ‘já e o ainda não’. O ‘já’ porque a Promessa já se fez realidade, enquanto que o ‘ainda não’ porque estamos no antegozo da consumação desta esperança. ‘Já’ porque o Cristo já veio a nós (Shekinah), mantendo em nosso meio a sua ‘tenda’, a sua presença, e, fazendo jus ao seu nome, nos salva (Jesus = Deus Salvador); o ‘ainda não’ porque, mesmo salvos, ainda não estamos em plena posse do Senhor que se apossa de nós, alcançando-nos em seu amor. Se os judeus buscavam a paz, tranquilidade e prosperidade em uma terra, nós esperamos e obtivemos a salvação do Cristo e nela trilhamos, e nela alcançaremos a paz, a tranquilidade e a prosperidade eternas porque ele é a nossa herança.
Em um segundo momento da Primeira Leitura, temos os sinais que acompanharão esta vinda de Deus ao seu povo: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos, assim como brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo. A terra árida se transformará em lago, e a região sedenta, em fontes d’água” (v. 5-7a). Estes elementos figuram a felicidade e a bênção que Deus dará aos que o esperam. E, fazendo valer a sua sempiterna fidelidade, como tal nos atesta o Salmo Responsorial, passemos ao Evangelho.


Já na estrofe do canto de Aclamação, temos algo que enriquece a nossa compreensão acerca do Evangelho: “Jesus Cristo pregava o Evangelho, a boa notícia do Reino e curava seu povo doente de todos os males, sua gente!” (cf. Mt 4,23). Assim, vem-nos à tona uma outra passagem, a mesma que o próprio Senhor, na sinagoga de Nazaré, diz de si, utilizando o que já havia sido profetizado por Isaías: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos, para publicar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Estes trechos, adicionados ao Evangelho de hoje, fazem-nos recordar algo que disse um teólogo: “Jesus não veio para fazer milagres. Ele os fez por veio”. Portanto, fazer milagres é apenas uma consequência, o principal de sua missão é “a salvação do que estava perdido” (cf. Mt 18,11), porque veio para salvar o homem todo e todos os homens.


São Marcos dedica uma boa parte do seu Evangelho a Jesus que, anunciando o Reino, encaminha-se para Jerusalém, para lá viver o mistério pascal. Neste caminho, Jesus não se detém apenas na terra de Israel, mas dirige-se também aos pagãos, tal como a narrativa do Evangelho nos diz: “Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da Decápole” (Mc 7,31). Logo, confirma-se o que refletíamos antes acerca da universalidade da salvação operada pelo Cristo. E o texto prossegue: “Trouxeram então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe impusesse a mão” (v. 32). Este homem pagão, surdo-mudo, representa-nos, quando, não escutando a Palavra de vida e salvação, não pertencendo ao Povo de Deus, não temos nada a oferecer ao mundo. São Beda, ao comentar acerca deste surdo-mudo, afirmará: “O surdo-mudo é aquele que não abre as orelhas para escutar a Palavra de Deus nem abre a boca para pronunciá-la. É necessário, portanto, que aqueles os quais, por longo costume, pronunciam e escutam as Palavras Divinas, apresentem ao Senhor os que, por fraqueza humana, não estão curados, assim, ele poderá salvá-los com a graça que a sua mão transmite” (In Evang. Marc., 2, 7, 32-37).


Jesus não o cura em meio à multidão, mas o afasta, e na intimidade com ele, cura-o com o seu poder (tocar com os dedos) e saliva da sua língua. A saliva, muito mais do que uma substância milagrosa produzida e proveniente da boca do Senhor, significa a sua Palavra que, no contubérnio de coração, com o toque suave e potente do seu poder cura-nos de nossas debilidades, ao tempo em que ordena “Éfatá!” (Abre-te!) e, curados, falamos, anunciamos. Sim, somos esse surdo-mudo que fomos alcançados pela Graça Divina, pelo seu poder. Recebemos a Palavra e com o mandato de Jesus dado desde o nosso Batismo, anunciamo-lo. Não é à toa que, dentro do ritual de Batismo, temos o Éfata, quando o presidente toca os ouvidos e a boca do neobatizado e diz: “O Senhor Jesus, que fez os surdos ouvir e os mudos falar, lhe conceda que possa logo ouvir sua Palavra e professar a fé para louvor e glória de Deus Pai”.


Estes sinais apresentados ao longo do caminho de Marcos querem afirmar que o Reino já chegou e é o próprio Cristo. Os pagãos e os outros presentes reconhecem este advento e dizem: “Ele tem feito bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Tal como anunciara Isaías quando profetizava a vinda do Senhor e seu poder, seu Reino, na Primeira Leitura desta Liturgia.


Quem são os convidados para o Reino? A Primeira Leitura nos dá pistas. Porém, São Tiago, ao criticar certas atitudes mesquinhas nas primeiras comunidades, denunciando a acepção de pessoas nas reuniões, nas eucaristias, nos alerta: “Meus queridos irmãos, escutai: não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino que prometeu aos que o amam?” (Tg 2,5).


Que nós, em nossa audiência à Palavra, tenhamos firmes convicções de vida para anunciá-la, cônscios de que o Reino já chegou: é o Cristo da fé que nós cremos e anunciamos, até a vinda definitiva do seu Reino, quando ele nos recapitulará a si (cf. Ef 1,9).

LAGARTO VOS VENERA, Ó VIRGEM DA PIEDADE



NOSSA SENHORA DA PIEDADE DO LAGARTO
UMA HISTÓRIA DE AMOR E DE GRATIDÃO

Pelo Prof. Ms. Claudefranklin Monteiro Santos* 


Na segunda metade do século XVI, período de reconhecimento e colonização das terras brasileiras, dois sacerdotes, Gaspar Lourenço e João Salônio, sob a orientação do Padre Manoel da Nóbrega estiveram em Lagarto com a missão de conquistar a confiança dos índios Kiriri, que habitavam a região há anos. Na ocasião, teriam erguido uma capela e dedicado ao apóstolo São Tomé.



A partir de 05 de maio de 1596, seguindo o exemplo de Gaspar de Menezes e Gaspar de Almeida, o sesmeiro Antônio Gonçalves de Santana iniciou o processo de povoamento de Lagarto, fundando mais tarde o que seria seu primeiro núcleo populacional, no dia 13 de junho de 1604. Na ocasião, duas imagens foram entronizadas na humilde capelinha, a de Santo Antônio e a de Senhora Sant’Ana. Como de costume, a exemplo do que ocorrera com São Cristóvão (Cristóvão de Barros – 1590), a invocação dos santos faz uma referência direta ao seu fundador (Antônio e Santana).



Em 1645, uma epidemia teria provocado uma tragédia na recém-criada povoação, dizimando uma considerável parte de sua população. Para escapar do flagelo provocado pela doença, que se alastrava assustadoramente, frades do Convento dos Palmares teriam vindo em socorro dos sobreviventes e deslocado os mesmos para uma localidade próxima do que é hoje o Bairro Hortas, numa região que era conhecida por Colina do Lagarto.



Naquela ocasião, os frades teriam invocado a Nossa Senhora da Piedade para vir em auxílio dos convalescentes e perseguidos pela moléstia. As preces foram atendidas e em pouco tempo a população não mais apresentaria a doença.



Por esse motivo, em 8 de setembro de 1679, como gratidão pela graça alcançada, foi inaugurada uma capela (atual Matriz) dedicada a Santa e nela entronizada a sua imagem, que chegou dias antes, em 05 de setembro do mesmo ano. A imagem teria sido uma encomenda do jesuíta Geraldino de Santa Rita Loiola ao Arcebispo da Bahia, Dom Gaspar Barata de Mendonça. No mesmo ano, como consequência do progresso religioso da região, é criada a Freguesia de Nossa Senhora da Piedade do Lagarto.
            

Reza a lenda, ainda carente de comprovação histórica, porém marcada com o fervor criativo da gente do Lagarto, que a imagem de madeira, em tamanho natural (uma obra-prima da escultura portuguesa do século XVII), que hoje repousa no altar-mor da Matriz que leva seu nome, deveria ter ido para Salvador e uma réplica, em tamanho menor, ter ficado por aqui. Porém, um acidente no deslocamento das mesmas para seus destinos teria provocado uma atrapalhação e então, a troca. Mais tarde, o Arcebispado da Bahia tentou desfazer o ocorrido, mas já era tarde: a imagem já havia passado pelo processo ritualístico de entronização. Conta-se, inclusive que o nicho preparado para a Santa ficou apertado, pois se imaginava que viria a outra.



Ao longo dos anos, Nossa Senhora da Piedade tornou-se a excelsa protetora do povo lagartense, que por sua vez vem lhe rendendo justíssimas homenagens, a exemplo da Coroação Canônica de sua imagem tricentenária, ocorrido por inspiração do Papa Paulo VI, em 1979, ocasião em que se realizava em Lagarto o Congresso Eucarístico.



Certamente, o momento mais marcante dessa secular devoção é o Novenário dedicado a sua memória durante a primeira semana de setembro. Preparada com muito esmero, a Festa da Padroeira se transformou ao longo da História de Lagarto na mais entusiasmada manifestação religiosa de sua gente. Contando com a liderança do Pároco, as festividades ganham um brilho todo especial graças a sua comissão organizadora, composta por casais devotos da cidade, que desde agosto, através da Quermesse, se desdobram para homenagear à altura a amada padroeira.



Na Matriz de Nossa Senhora ainda ecoam e testemunham os vivas e cantos efusivos dedicados a Padroeira, capitaneados por figuras inesquecíveis como Monsenhor Daltro, Monsenhor Juarez, Frei Isaías, Dom Mário Rino Sivieri, Monsenhor José Carvalho, Padre Celso, Padre Pedro Vidal..., que não cessaram de dizer: “ a tua imagem é amor e gratidão!”.


*

HINO DE NOSSA SENHORA DA PIEDADE

Ó Virgem da Piedade,
Mãe do Divino Jesus,
Pela Tua caridade,
a Teu Filho nos conduz!


Em Lagarto, os filhos teus,
Vem lembrar-te entre louvores
Que não só és Mãe de Deus
Mas também dos pecadores.


Ó Santíssima Criatura,
Filha, Esposa e Mãe de Deus,
Dirigi, com a mão segura,
Nesta vida os passos meus!


Olha com ternura e agrado, 
Ó excelsa padroeira,
Por Lagarto, pelo Estado,
Pela Pátria brasileira!


Para que passando a vida
Segundo a Tua vontade,
Possa ver-te, ó Mãe querida,
Na Glória da eternidade!




FESTA DA NATIVIDADE DE NOSSA SENHORA


                                                 (08 de setembro de 2012)



Queridos irmãos,


A Igreja se reveste de júbilo pelo natal Daquela que foi a predestinada para a Mãe do Salvador. Hoje, nasceu-nos a Imaculada Senhora Mãe de Deus e Nossa!


Esta festa originariamente oriental, passados nove meses da Solenidade da Imaculada Conceição de Maria, é tida pelos bizantinos como “o anuncio jubiloso de uma boa nova: a Mãe do Salvador já está entre nós!”. Ao festejarmos o nascimento de Nossa Senhora, celebramos o início histórico da nossa redenção, pois o Tabernáculo Puro e Digníssimo do Divino Salvador nasceu. Logo, antes mesmo de ser uma festa de caráter mariológico ela possui eminentemente um teor cristocêntrico, embora todas as celebrações marianas já o tenham por natureza. Por tal motivação, São Pedro Damião atesta: “Hoje é o dia em que Deus começa a pôr em prática o seu plano eterno, pois era necessário que se construísse a casa, antes que o Rei descesse para habitá-la. Casa linda, porque, se a Sabedoria constrói uma casa com sete colunas trabalhadas, este palácio de Maria está alicerçado nos sete dons do Espírito Santo. Salomão celebrou de modo soleníssimo a inauguração de um templo de pedra. Como celebraremos o nascimento de Maria, templo do Verbo encarnado? Naquele dia a glória de Deus desceu sobre o templo de Jerusalém sob forma de nuvem, que o obscureceu” (Segundo Sermão sobre a Natividade da Virgem Maria). Se por ocasião da dedicação do templo dos judeus a nuvem pousou como símbolo da pertença divina, na concepção do ventre da Menina que hoje nos nasceu, não é uma imagem, mas o próprio Espírito que a cobre com a sua divinal sombra.


A Igreja convida a percebemos em Maria uma criança inigualável, o fruto do ditoso ventre de uma estéril anciã, cujo cônjuge era um velho sacerdote. Ó quão ditoso sois venerável Joaquim porque de vossa estirpe sacerdotal brotou o Lírio da Integridade Materno-Virginal, a “Filha de Sião”! Ó quão feliz sois, Ana, porque daquilo que era ressequido pela tua esterilidade nos veio a Aurora do grande Sol da Justiça. A Igreja contempla o fruto do vosso ventre, ó Ana, a Igreja se vê, como que em protótipo, em vossa venerável Menina, a “Flor de Israel”. Com razão veneramos a vossa família, ó Joaquim e Ana!


Em Maria, a Escritura encontra cumprimento de forma plena: eis que o Esperado das nações já se aproxima; eis o Noivo da Igreja. No ventre da Menina hoje nascida, toda a Escritura se converge: os Patriarcas do Antigo Testamento se alegram porque, em Maria, reconheceram a figura da Mãe do Cristo, a Regina Patriarcharum. Eles e os justos do Antigo Documento há muito aguardavam, queriam serem admitidos na glória celeste pela aplicação na fé dos méritos de Cristo, o bendito fruto da Virgem Maria, Ela a Ianua Caeli. Todos os homens se alegram, porque o nascimento da Virgem, o Auxilium Christianorum, veio anunciar-lhes a aurora do grande dia da libertação pela qual aguardam todos os povos. Todos os anjos de Deus se alegram, porque neste dia foi-lhes dada pela primeira vez a ocasião de reverenciar a sua futura Rainha, a Regina Angelorum.


Ó Imaculada e Doce Menina, o que poderíamos vos oferecer como donativo pelo vosso nascimento? Eis que “conceberás e darás a luz” (Lc 1, 31) ao Rei do Universo. O que poderíamos vos ofertar? Eis que a Esposa de vosso Filho vos rende louvores. Com a corte dos justos vos aclamamos:


“Vinde, todas as nações, vinde, homens de todas as raças, línguas e idades, de todas as condições: com alegria celebremos a natividade da alegria do mundo inteiro! Se os gregos destacavam com todo o tipo de honras - com os dons que cada um podia oferecer - o aniversário das divindades, impostos aos espíritos por mitos mentirosos que obscureciam a verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem o flagelo de toda a existência, que deveríamos nós fazer para honrar o aniversário da Mãe de Deus, por quem toda a raça mortal foi transformada, por quem o castigo de Eva, nossa primeira mãe, foi mudada em alegria? Com efeito, uma ouviu a sentença divina: “Darás à luz no meio de penas” (Gn 3, 16); a outra ouviu, por seu turno: “Alegra-te, oh Cheia de Graça” (Lc 1, 28). À primeira disse-se: “Inclinar-te-ás para o teu marido” (Gn 3, 16), mas à segunda: “O Senhor está contigo” (Lc 1, 28). Que homenagem ofereceremos então nós à Mãe do Verbo, senão outra palavra? Que a criação inteira se alegre e festeje, e cante a natividade de uma santa mulher, porque ela gerou para o mundo um tesouro imperecível de bondade, e porque por ela o Criador mudou toda a natureza num estado melhor, pela mediação da humanidade. Porque se o homem, que ocupa o meio entre o espírito e a matéria, é o laço de toda a criação, visível e invisível, o Verbo criador de Deus, ao se unir à natureza humana, uniu-se através dela a toda a criação. Festejemos assim o desaparecimento da humana esterilidade, pois cessou para nós a enfermidade que nos impedia a posse dos bens. Mas porque nasceu a Virgem Maria de uma mulher estéril? Àquele que é o único verdadeiramente novo debaixo do sol, como coroamento das Suas maravilhas, deviam ser preparados os caminhos por maravilhas, para que lentamente as realidades mais baixas se elevassem de modo a serem as mais altas. E eis uma outra razão, mais alta e mais divina: a natureza cedeu o lugar à graça, pois ao vê-la tremeu, e não quis mais ter o primeiro lugar. Como a Virgem Mãe de Deus devia nascer de Ana, a natureza não ousou prevenir o fruto da graça, mas permaneceu ela própria sem fruto, até que a graça trouxesse o seu. Era necessário que fosse primogênita aquela que deveria gerar “o Primogênito de toda a criação, no Qual tudo subsiste” (Cl 1, 15). Oh Joaquim e Ana, casal venturoso! Toda a criação está em dívida para convosco, porque através de vós ela pôde oferecer ao Criador o dom - entre todos o mais excelso - de uma Mãe venerável, a única digna d'Aquele que a criou. Ditosos os rins de Joaquim, de onde saiu uma semente totalmente imaculada, e admirável o seio de Ana,  graças ao qual se desenvolveu lentamente, onde se formou e de onde nasceu uma tão santa criança! Oh entranhas que levastes um céu vivo, mais vasto que a imensidade dos céus! Oh moinho onde foi amassado o Pão vivificante, segundo as próprias palavras de Cristo: “Se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só” (Jo 12, 24). Oh seio que aleitaste aquela que alimentou o Aquele que alimenta o mundo! Maravilha das maravilhas, paradoxo dos paradoxos! Sim, a inexprimível Encarnação de Deus, cheia de condescendência, devia ser precedida por estas maravilhas. [...] Hoje as portas da esterilidade abrem-se, e uma porta virginal e divina avança: a partir dela, por ela, o Deus que está acima de todos os seres deve “vir ao mundo” “corporalmente” (Cl 2, 9), segundo a expressão de Paulo, ouvinte dos segredos inefáveis. Hoje, da raiz de Jessé saiu uma vergôntea, de onde surgirá para o mundo uma flor substancialmente unida à divindade. Hoje, a partir da natureza terrena, um céu foi formado sobre a terra por Aquele que outrora o tornara sólido separando-o das águas, elevando o firmamento nas alturas. É um céu verdadeiramente mais divino e mais elevado que o primeiro, porque Aquele que no primeiro céu criara o sol Se elevou a Si próprio neste novo como um sol de justiça.(...) Hoje, o “Filho do Carpinteiro” (Mt 13, 25), O Verbo universalmente ativo d'Aquele que tudo construiu por Ele, o Braço Poderoso do Deus Altíssimo, querendo afiar pelo Espírito - que é como o seu dedo - a lâmina embotada da natureza, construiu para Si uma escada viva, cuja base está firmada na terra, com o cimo a tocar os céus: Deus repousa sobre ela. É dela a figura que Jacó contemplou, e por ela Deus desceu da Sua imobilidade, ou melhor, inclinou-Se com condescendência, tornando-Se assim “visível sobre a terra, e conversando com os homens”. [...] A escada espiritual, a Virgem, está fixa na terra, pois na terra ela tem a sua origem, mas a sua cabeça eleva-se até ao céu. A cabeça de toda a mulher é o homem, mas para ela, que não conheceu homem, Deus Pai ocupa o lugar de sua cabeça: pelo Espírito Santo, Ele concluiu uma aliança e, como semente divina e espiritual, enviou o Seu Filho e Verbo, força onipotente. Em virtude do beneplácito do Pai, não é por uma união natural, mas é superando as leis da natureza, pelo Espírito Santo e pela Virgem Maria, que o Verbo Se fez carne e habitou entre nós. É por aqui que se vê que a união de Deus com os homens se cumpre pelo Espírito Santo.  Hoje é edificada a Porta do Oriente, que dará a Cristo “entrada e saída” (Jo 10, 9), e “essa porta estará fechada” (Jo 10, 9). Nela está Cristo, “a Porta das Ovelhas” (Jo 10,7), e “o Seu nome é Oriente” (cf. Is 41, 25): por Ele obtivemos acesso ao Pai das Luzes. Hoje sopraram as brisas anunciadoras duma alegria universal. Alegre-se o céu nas alturas, que debaixo dele “exulte a terra”, que os mares do mundo bramam, porque no mundo acaba de ser concebida uma concha, a qual pelo clarão celeste da divindade conceberá em seu seio, gerando a pérola inestimável, Cristo. Dela sairá o “Rei da Glória” (Sl 23), revestido da púrpura de sua carne, para “visitar os cativos, e proclamar a libertação” (Is 61, 1; Lc 4, 19). Que a natureza transborde de alegria: a cordeirinha vem ao mundo, graças à qual o Pastor revestirá a ovelha, tirando-lhe as túnicas da antiga mortalidade. Que a virgindade forme os seus coros de dança, pois nasceu a Virgem que, segundo Isaías, “conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emanuel, o que quer dizer Deus conosco” (Is 7, 14). [...] “Deus conosco”! Não é nem só um homem, nem um mensageiro, mas o Senhor em Pessoa que virá e nos salvará” (São João Damasceno, Homilia da Natividade de Nossa Senhora).


Abençoai-nos, ó Menina venerada pela Trindade e pela humanidade, para que cheguemos a gozar eternamente o que vós já vivenciais!

sábado, 1 de setembro de 2012

XXII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 02 de setembro de 2012)



I Leitura: Dt 4,1-2.6-8
Salmo Responsorial: Sl 14(15),2-3ab.3cd.4ab.5 (R/.1a)
II Leitura: Tg 1,17-18.21b-22.27
Evangelho: Mc 7,1-8.14-15.21-23 (Observância e mandamentos)


Queridos irmãos,


O mundo hodierno, imerso nos joguetes de inumeráveis explosões de informações que lhe são lançadas, esteriliza-se à voz de Deus, à sua Palavra de Vida, por ser Palavra de Salvação. Olvida-se da Palavra em prol das ‘palavras’, do vozerio de corações outros que não o de Deus, fonte de toda a Graça e de toda bênção; do vozerio de um mundo perturbado por conta de ideias igualmente conturbadas e, pior, ateias. Diante deste complexo quadro, sabemos que se faz necessário um discernimento e perguntamo-nos: Como faremos para escutar Deus? O que ele, em seu amor, nos diz?


Deus não nos criou à toa. E, para descobrirmos o porquê de nos haver querido, não precisamos de muitas indicações, bastando-nos apenas a razão iluminada pela fé. Por elas, chegamos à certeza de que ele nos criou para a Vida Nele. Sim, ‘Vida’ e não ‘vida’, porque como dissera Santo Irineu: “A glória de Deus é o homem vivente”.


Dizemos estas coisas, porque, na Revelação, ele nos deixa entrever acerca de si: Vivente; doador da vida verdadeira. E como nos aportaremos nesta vida? A Liturgia de hoje, pela Primeira Leitura, indicar-nos-á: “Agora, Israel, ouvi as leis e os decretos que eu vos ensino a cumprir, para que, fazendo-o, vivais e entreis na posse da terra prometida pelo Senhor Deus de vossos pais” (Dt 4,1). Integralmente, a Palavra de Deus eleva o homem. Dizemos integralmente porque muitos têm a infeliz atitude de selecionar ao seu modo ‘retalhos’ das Divinas Palavras, pretendendo ilusoriamente moldar a vida de Deus, proveniente dele, à mercê de seus caprichos e opiniões pessoais.


Os mandamentos do Senhor concentram em si as inteiras satisfações para a vida do homem. Ainda no texto da Primeira Leitura, esta afirmação se esconde nos termos ‘sabedoria’ e ‘inteligência’. Logo, o que é sabedoria senão deixar-se guiar pelo Espírito de Deus e, por meio dele, tornar-se próximo, íntimo das realidades transcendentais a este mundo, pois, como assevera-nos Santo Agostinho: “São néscios todos aqueles que desejam ver a Deus com os olhos exteriores, quando só pode ver-se com o coração, segundo o que está escrito no livro da Sabedoria: ‘Busca-o por meio da humildade de coração’ (Sb 1,1)” (De sermone Domini, 1, 2)? Deixar-se guiar por Deus é uma atitude típica dos humildes e, portanto, dos sábios. Já por inteligência, entendamos uma razão lúcida diante das interpelações das realidades temporais. Também esta é dom de Deus. Assim sendo, os mandamentos do Senhor auxiliam-nos em nossa vida de interioridade e em nossa ação neste mundo.


Interessante é que estas verdades acerca da importância da conservação e observância dos mandamentos do Senhor encontram-se no quarto capítulo do Deuteronômio, cujo nome, proveniente do grego, significa, segundas palavras. É aqui, neste livro, que temos o grande discurso de Moisés antes de o povo adentrar na Terra Prometida, antes da morte deste grande líder do povo hebreu, na região de Moab. No Deuteronômio, temos compendiados tudo aquilo que era vontade do Senhor para o povo que iria apossar-se de sua tão almejada terra; uma espécie de normas de conduta. Ali estava toda a vontade de Deus para o seu povo, não precisando acrescer ou adulterar nada, tal como nos indica a perícope: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,2). A eminente e fiel observância da palavra do Senhor seria nota característica daquela nação, inclusive demonstrando essa intimidade com o seu Deus, encontrando aí o seu benfazejo, a sua alegria e, porque não dizer, a sua glória, tal como diz a própria leitura: “Pois, qual é a grande nação cujos deuses lhe são tão próximos como o Senhor nosso Deus, sempre que o invocamos? E que nação haverá tão grande que tenha leis e decretos tão justos, como esta lei que hoje ponho diante dos teus olhos?” (v. 7-8). Por isso, o salmo 32 canta: “Feliz a nação que tem o Senhor por seu Deus, e o povo que ele escolheu para sua herança” (Sl 32,12).


Ser fiel observante daquilo que é vontade do Senhor, dos seus mandamentos, é uma via ditosa que não se encerra nesta terra de exílio, mas que nos aponta a uma realidade mais profunda: o céu. Desta forma, o responsório do Salmo desta Liturgia Dominical questiona: “Senhor, quem morará em vossa casa e no vosso monte santo, habitará?”. O corpo do Salmo 14 responderá no que sintetizamos ser uma vida de santidade e justiça. Essas duas realidades são como um medidor eficiente de que somos ou não amantes e cumpridores dos Divinos Preceitos.


No ápice das leituras proclamadas, temos o Santo Evangelho. Depois de ter dado uma pausa na leitura do Evangelho de Marcos, em exatos cinco domingos, lemos o capítulo sexto do Evangelho de São João, acerca do discurso do pão da vida. Hoje, retornamos ao proto-evangelho de Marcos e nos deparamos com as censuras de Jesus aos mestres da Lei e aos fariseus que, vindos de Jesus, reuniram-se em torno de Jesus. Para que vieram? Porque a pregação de Jesus atraia inúmeras multidões, incomodando as antigas estruturas do judaísmo. Reuniram-se junto ao Cristo não para escutá-lo e encontrarem aí alento, mas para flagrá-lo em palavras e ações que, possivelmente, fossem de encontro ao judaísmo. Para que isso se fizesse, os mestres da Lei e fariseus, não conseguindo achar alguma acusação em Jesus contrária a Torá, recorreram às suas tradições vazias. Assim, agarrando-se em questões acessórias e não fundamentais como a palavra de Deus, questionaram Jesus irritando-o: “Por que os teus discípulos não seguem a tradição dos antigos, mas comem o pão sem lavar as mãos?”. Neste sentido, ajuda-nos na compreensão São Beda, o Venerável, ao comentar tal passagem: “Haviam recebido em um sentido material as palavras espirituais dos profetas, que se referiam à correção do espírito e do corpo, dizendo: ‘Lavai-vos, purificai-vos’ (Is 1,16); e: ‘Purificai-vos, vós que levais os vasos do Senhor’ (Is 52,11), e observavam somente estes preceitos lavando-se corporalmente. Portanto, é tola a tradição de lavar-se várias vezes para comer, havendo-o feito já uma vez, e de não comer nada sem fazer antes estas purificações. No entanto, é necessário para os que desejam participar do pão que desce do céu, o purgar com frequência as suas obras com esmolas, lágrimas e os demais frutos de justiça. Necessário é igualmente purificar sob a ação incessante dos bons pensamentos e obras as manchas que possamos contrair nos cuidados temporais dos negócios. Assim, pois, inutilmente os judeus lavam as mãos e se purificam exteriormente enquanto não o fazem na fonte do Salvador. Em vão purificam seus vasos, sendo assim que descuidam do lavar das verdadeiras manchas de seus corpos, isto é, as dos seus espíritos” (In Marcum, 2, 29).




Os mestres da Lei e os fariseus ofuscavam com as suas tradições a Palavra de Deus, promotora de vida e liberdade por ser a verdade. Caiam na iniquidade prescrita pelo texto do Deuteronômio, já refletido por nós: “Nada acrescenteis, nada tireis, à palavra que vos digo, mas guardai os mandamentos do Senhor vosso Deus que vos prescrevo” (Dt 4,2), por isso, Jesus dizer: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mc 7,6). Muitas vezes, nosso coração se mancha no descompromisso com a Palavra de Deus. Isso nos acontece quando nos apegamos às falsas estruturas de vida e de religião, marginalizando o que é realmente vontade de Deus em favor dos nossos ‘achismos’. E pior, podemos cair até na censura de Jesus: “Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com o dedo” (Mt 23,4). Logo, com o coração transviado, alheio à Palavra de Deus, porque chegamos a adulterá-la, caímos em rigorismos vazios e opressores.


A vivência integral da Palavra, de per si, nos purifica, pois é a carta magna do agir do cristão. Por isso, irmãos, não nos cansemos de adicionar à nossa prática da Palavra a vivência do bem: “Escutai todos e compreendei: o que torna impuro o homem não é o que entra nele vindo de fora, mas o que sai do seu interior. pois é de dentro do coração humano que saem as más intenções, imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, ambições desmedidas, maldades, fraudes, devassidão, inveja, calúnia, orgulho, falta de juízo. Todas essas coisas más saem de dentro, e são elas que tornam impuro o homem” (Mc 7,14-15.21-23). Ou, como nos fala São Paulo: “Nenhuma palavra má saia da vossa boca, mas só a que for útil para a edificação, sempre que for possível, e benfazeja aos que ouvem. Não contristeis o Espírito Santo de Deus, com o qual estais selados para o dia da Redenção. Toda amargura, ira, indignação, gritaria e calúnia sejam desterradas do meio de vós, bem como toda malícia. Antes, sede uns com os outros bondosos e compassivos. Perdoai-vos uns aos outros, como também Deus vos perdoou, em Cristo” (Ef 4,29-32).


Na Segunda Leitura, temos São Tiago que, em sua Carta, vai nos afirmar a importância das obras na prática da fé: “Recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas. Todavia, sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo” (Tg 1,21b-22.27). Destarte, consoantemente com o restante da Liturgia da Palavra deste domingo, a Segunda Leitura reforça a importância de escutarmos a voz do Senhor e, com a nossa vivência, deixarmos que ela frutifique, purificando-nos e purificando o mundo, fazendo o bem, passando-a adiante. Pois para isto fomos gerados por ela (cf. Tg 1,18).



Que o Espírito Santo nos dê força e coragem neste intento!