(Ano B – 09 de setembro de 2012)
I Leitura: Is 35,4-7a
Salmo Responsorial: Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10
(R/. 1.2a)
II Leitura: Tg 2,1-5
Evangelho: Mc 7,31-37 (Cura do surdo-mudo)
Queridos irmãos,
Ao presenciar,
extasiadas, tantas situações difíceis, amarguradas, muitas pessoas têm a
pretensão de afirmar que tudo está perdido. Que, diante das mazelas assistidas,
nada tem jeito, caindo, portanto, na desesperança. O cristão, em todos os
tempos, não deve se esquecer de que “a esperança não decepciona” (Rm 5,5); que
a origem e o termo da criação são Deus, e, desta forma, ele é Senhor da
história. Sim, a esperança de um porvir melhor, que necessariamente não se dará
no século, deve fazer com que o seguidor de Cristo viva de fé. Embora sejam
virtudes teologais distintas, a esperança e a fé não são desconexas, pois a
esperança é a força da fé.
A Liturgia da Palavra
deste XXIII Domingo do Tempo Ordinário traduz-nos esta visão eminentemente
judaico-cristã, conquanto com dimensões diversas entre a Primeira Leitura e o
Evangelho. O povo cristão, eleito com segundo uma presciência mais sublime do
que a do povo judeu, embutido de esperança, já possui a certeza de que esta
vida plena é uma realidade presente, pois é o próprio Cristo.
Assim sendo, na
Primeira Leitura extraída do Profeta Isaías, temos o ânimo que o Profeta injeta
no povo de Judá frente às misérias impostas pelos assírios que, querendo
invadir o país, assolam o povo da Antiga Aliança. Este trecho, que é iniciado
em 34,1 e se encerra em 35,10, pertence ao que os estudiosos denominam apocalipse
de Isaías. Logo, diante da iminente situação de crise, o povo de Judá é chamado
a encará-la de frente, com a altivez da fé, na esperança de que Deus está
consigo: “Criai ânimo, não tenhais medo! Vede, é vosso Deus, é a vingança que
vem, é a recompensa de Deus; é ele que vem para vos salvar” (Is 35,4).
Salta-nos aos olhos a expressão “vingança que vem” acompanhada de “é a
recompensa de Deus; é ele que vem para nos salvar”. A palavra vingança, em
nossa cultura ocidental, possui uma pesada carga. Porém, para o povo judeu,
nesta leitura, possui a ideia de justiça. Destarte, na concepção bíblica,
vingança significa dizer que Deus, ao libertar o seu povo das ameaças e
opressões dos inimigos, fará justiça aos opressores, recompensando a cada um
conforme o que fizera. Mas, como Deus fará justiça? O recorte seguinte responder-nos-á:
“É ele que vem para vos salvar” (v. 4).
Diante da lógica
humana, parece-nos obscuro o entrelace justiça, salvação e misericórdia. Sim,
misericórdia! Deus nos salva não porque mereçamos ou sejamos ‘bonzinhos’. Não!
Com o povo judeu também foi assim. O Senhor nos salva porque nos ama.
Há pouco, falávamos
que a Liturgia da Palavra pondera-nos desta visão de esperança comum a judeus e
cristãos, entretanto com dimensões diferentes. Aqui e agora, apresentamos três
dimensões básicas, sempre levando em consideração que a realidade cristã é
infinitamente superior à judaica: 1) A esperança de dias melhores que os judeus
possuíam é etnicamente particularizada, já que a noção de povo eleito era
restrita a Israel, assim, excluía os gentios. Nós, em compensação, temos uma
esperança universalizada, estendida a todos os homens que creem no Cristo. Por
isso, muito mais do que determinismos consanguíneos e culturais, é determinável
o ‘laço’ da fé no Cristo. 2) A esperança de dias melhores para o povo judeu é a
expectativa meramente material e temporal, que acontecerá no Israel geográfico.
Para os cristãos, ela transcende o contingente da materialidade e nos levar a
ansiar uma realidade superior: o céu e a eternidade. 3) O povo judeu possui a
palavra da Promessa, por isso espera por melhores dias. Nós os cristãos
vivemos, desde esta ‘terra de exílio’, a realidade da Promessa, pois a Palavra
feito homem no-la garantiu com o mistério de sua Encarnação e Redenção. Vivemos
o ‘já e o ainda não’. O ‘já’ porque a Promessa já se fez realidade, enquanto
que o ‘ainda não’ porque estamos no antegozo da consumação desta esperança. ‘Já’
porque o Cristo já veio a nós (Shekinah),
mantendo em nosso meio a sua ‘tenda’, a sua presença, e, fazendo jus ao seu
nome, nos salva (Jesus = Deus Salvador); o ‘ainda não’ porque, mesmo salvos,
ainda não estamos em plena posse do Senhor que se apossa de nós, alcançando-nos
em seu amor. Se os judeus buscavam a paz, tranquilidade e prosperidade em uma
terra, nós esperamos e obtivemos a salvação do Cristo e nela trilhamos, e nela
alcançaremos a paz, a tranquilidade e a prosperidade eternas porque ele é a
nossa herança.
Em um segundo momento
da Primeira Leitura, temos os sinais que acompanharão esta vinda de Deus ao seu
povo: “Então se abrirão os olhos dos cegos e se descerrarão os ouvidos dos
surdos. O coxo saltará como um cervo e se desatará a língua dos mudos, assim
como brotarão águas no deserto e jorrarão torrentes no ermo. A terra árida se
transformará em lago, e a região sedenta, em fontes d’água” (v. 5-7a). Estes
elementos figuram a felicidade e a bênção que Deus dará aos que o esperam. E,
fazendo valer a sua sempiterna fidelidade, como tal nos atesta o Salmo
Responsorial, passemos ao Evangelho.
Já na estrofe do canto
de Aclamação, temos algo que enriquece a nossa compreensão acerca do Evangelho:
“Jesus Cristo pregava o Evangelho, a boa notícia do Reino e curava seu povo
doente de todos os males, sua gente!” (cf. Mt 4,23). Assim, vem-nos à tona uma
outra passagem, a mesma que o próprio Senhor, na sinagoga de Nazaré, diz de si,
utilizando o que já havia sido profetizado por Isaías: “O Espírito do Senhor
está sobre mim, porque me ungiu; e enviou-me para anunciar a boa nova aos
pobres, para sarar os contritos de coração, para anunciar aos cativos a
redenção, aos cegos a restauração da vista, para pôr em liberdade os cativos,
para publicar o ano da graça do Senhor” (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Estes trechos,
adicionados ao Evangelho de hoje, fazem-nos recordar algo que disse um teólogo:
“Jesus não veio para fazer milagres. Ele os fez por veio”. Portanto, fazer
milagres é apenas uma consequência, o principal de sua missão é “a salvação do
que estava perdido” (cf. Mt 18,11), porque veio para salvar o homem todo e
todos os homens.
São Marcos dedica uma
boa parte do seu Evangelho a Jesus que, anunciando o Reino, encaminha-se para
Jerusalém, para lá viver o mistério pascal. Neste caminho, Jesus não se detém
apenas na terra de Israel, mas dirige-se também aos pagãos, tal como a
narrativa do Evangelho nos diz: “Jesus saiu de novo da região de Tiro, passou
por Sidônia e continuou até o mar da Galileia, atravessando a região da
Decápole” (Mc 7,31). Logo, confirma-se o que refletíamos antes acerca da
universalidade da salvação operada pelo Cristo. E o texto prossegue: “Trouxeram
então um homem surdo, que falava com dificuldade, e pediram que Jesus lhe
impusesse a mão” (v. 32). Este homem pagão, surdo-mudo, representa-nos, quando,
não escutando a Palavra de vida e salvação, não pertencendo ao Povo de Deus, não
temos nada a oferecer ao mundo. São Beda, ao comentar acerca deste surdo-mudo,
afirmará: “O surdo-mudo é aquele que não abre
as orelhas para escutar a Palavra de Deus nem abre a boca para pronunciá-la. É
necessário, portanto, que aqueles os quais, por longo costume, pronunciam e
escutam as Palavras Divinas, apresentem ao Senhor os que, por fraqueza humana,
não estão curados, assim, ele poderá salvá-los com a graça que a sua mão
transmite” (In Evang. Marc., 2, 7, 32-37).
Jesus não o cura em meio à multidão,
mas o afasta, e na intimidade com ele, cura-o com o seu poder (tocar com os
dedos) e saliva da sua língua. A saliva, muito mais do que uma substância
milagrosa produzida e proveniente da boca do Senhor, significa a sua Palavra
que, no contubérnio de coração, com o toque suave e potente do seu poder
cura-nos de nossas debilidades, ao tempo em que ordena “Éfatá!” (Abre-te!) e, curados, falamos, anunciamos. Sim, somos
esse surdo-mudo que fomos alcançados pela Graça Divina, pelo seu poder. Recebemos
a Palavra e com o mandato de Jesus dado desde o nosso Batismo, anunciamo-lo.
Não é à toa que, dentro do ritual de Batismo, temos o Éfata, quando o
presidente toca os ouvidos e a boca do neobatizado e diz: “O Senhor Jesus, que
fez os surdos ouvir e os mudos falar, lhe conceda que possa logo ouvir sua
Palavra e professar a fé para louvor e glória de Deus Pai”.
Estes sinais apresentados ao longo
do caminho de Marcos querem afirmar que o Reino já chegou e é o próprio Cristo.
Os pagãos e os outros presentes reconhecem este advento e dizem: “Ele tem feito
bem todas as coisas: aos surdos faz ouvir e aos mudos falar” (v. 37). Tal como
anunciara Isaías quando profetizava a vinda do Senhor e seu poder, seu Reino,
na Primeira Leitura desta Liturgia.
Quem são os convidados para o Reino?
A Primeira Leitura nos dá pistas. Porém, São Tiago, ao criticar certas atitudes
mesquinhas nas primeiras comunidades, denunciando a acepção de pessoas nas
reuniões, nas eucaristias, nos alerta: “Meus queridos irmãos, escutai: não
escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino
que prometeu aos que o amam?” (Tg 2,5).
Que nós, em nossa audiência à Palavra,
tenhamos firmes convicções de vida para anunciá-la, cônscios de que o Reino já
chegou: é o Cristo da fé que nós cremos e anunciamos, até a vinda definitiva do
seu Reino, quando ele nos recapitulará a si (cf. Ef 1,9).
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