(Ano
B – 11 de novembro de 2012)
I Leitura: 1Rs 17,10-16
Salmo Responsorial: Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10
(R/.1)
II Leitura: Hb 9,24-28
Evangelho: Mc 12,38-44
Queridos irmãos,
Existe uma frase
bastante conhecida em nosso meio, que, inclusive, é bíblica, mas que poderia,
tranquilamente, sintetizar a Liturgia da Palavra deste domingo: “O que o homem
vê não é o que importa: o homem vê a face, mas o Senhor olha o coração” (1Sm
16,7). Assim sendo, ao contrastar este trecho muito difundido no meio popular
com o Evangelho, perceberemos uma nuance importante: Deus conhece-nos
inteiramente! Assim, acontecera através do olhar que Jesus fitou sobre aqueles
tantos que frequentavam o Templo de Jerusalém, inclusive esta bendita viúva
colocada no anonimato.
Faz-se necessário que
entremos no panorama bíblico-teológico do Evangelho de hoje. O Evangelho de São
Marcos é organizado em quatro cenários teológicos: o Deserto, a Galileia, o
caminho e Jerusalém. A perícope de hoje situa-se aí, em Jerusalém. E adentramos
neste cenário com a Liturgia da Palavra do XXXI Domingo do Tempo Comum (Mc
12,28-34). Só que, aqui no Brasil, este Evangelho não foi proclamado no domingo
passado por conta da Solenidade de Todos os Santos, transferida do dia 1º de
novembro para o domingo, 04 do mês corrente. Este cenário de São Marcos é
iniciado no capítulo 11 e se estende até o término do seu Evangelho.
Jesus sobe a Jerusalém
para viver o Mistério Pascal, realizando a obra de redenção do gênero humano
pelo seu sangue vertido na cruz, pela sua morte salvadora. E, desde que adentra
na cidade, faz observações e denúncias pertinentes acerca da prática judaica,
alertando sobre a caduquice da religião dos judeus (até porque a sua prática
era levada a cabo tendo como norte as aparências e os ritualismos vazios), ao
contrário do que propõe Jesus: uma religião nova, baseada unicamente em sua
Divina Pessoa. Por este motivo, o evangelho de hoje ser iniciado pela censura
aos doutores da Lei, marcos da religião judaica, que não reconheciam a grandeza
do Cristo que se lhes apresentava, fechados em realidades outras, que alienam o
homem: luxo, honra, cobiça e dissimulação.
Ao criticar
severamente os mestres da Lei por prezarem as vaidades e as honrarias do mundo,
o Senhor recomenda aos seus discípulos para que não façam o mesmo, e os
assevera, advertindo: “Tomai cuidados com os doutores da Lei! […] Eles
receberão a pior condenação” (Mc 12,38.40). Percebemos ainda, pela audição das
leituras deste domingo, que a figura da viúva é posta em evidência. Esta classe
desfavorecida da sociedade judaica, cuja atenção já era cobrada pela Torá (cf.
Ex 22,22), era defraudada pela falsa piedade das autoridades do judaísmo, pelos
teoricamente versados na Palavra de Deus.
O texto de São Marcos
prossegue, mostrando o Senhor no Templo, sentado, diante do cofre das esmolas,
concorrido por muito ricos e pobres, inclusive viúvas, e, dentre estas, uma
que, inconscientemente, furta o olhar de Jesus para si, sem pretensão alguma,
ao depositar suas duas moedinhas, monetariamente insignificantes, mas valorosas
porque, juntamente com aquelas frações míseras, a mulher havia colocado como
oferta ao Senhor o que de mais valioso possuía: toda a sua existência, tudo o
era no que tinha. Havia entregado a sua humana razão de viver Àquele de quem
todo o viver procede, agradando enormemente a Deus. Neste sentido, meditando a
ação desta viúva, cujo interior Jesus exaltou, um autor conhecido pelo apelido
de pseudo-Jerônimo afirma: “Em sentido místico, os ricos são aqueles que tiram
do tesouro de seu coração o novo e o velho, quer dizer, os segredos e
recônditos mistérios da divina sabedoria de um e de outro Testamento [da Palavra
de Deus]. E, quem é essa pobrezinha senão eu mesmo e meus semelhantes, que
damos o que podemos e desejamos que se nos explique o que não podemos? Porque
Deus não considera o que haveis entendido, mas sim o vosso ânimo de entendê-lo.
Todos podemos oferecer um quadrante [duas moedas], que é a boa vontade, a qual
se chama quadrante porque existe com outras três coisas, a saber: pensamento, palavra
e obra”; ao mesmo tempo em que São Beda, o Venerável, alude: “Alegoricamente,
os ricos que lançavam na arca representam os judeus orgulhosos da justiça e da
lei; a viúva pobre representa a simplicidade da Igreja, sendo pobre porque se
despojou do espírito da soberba ou das concupiscências do temporal, e viúva
porque aquele a quem estava unida sofreu a morte por ela. E põe duas moedinhas
na arca, porque leva as oferendas do amor a Deus e ao próximo, ou da fé e da
oração. Estas moedinhas valem pouco. No entanto, têm o mérito da piedosa
intenção, pela qual são aceitas e mais estimadas que tudo o oferecido pelos
soberbos judeus. Estes fazem oferendas ao Senhor do que lhes sobra, enquanto
que a Igreja dá-lhe tudo o que tem, porque entende que tudo o que é vida nela não
é mérito seu, mas dom de Deus” (In Marcum, 3,42).
Símile atitude temos no exemplo da
viúva de Sarepta, pagã, pobre e faminta juntamente com o seu filho, que não
hesitando em servir o profeta Elias, quando da seca que atingiu a terra, confia
na Palavra de Deus e é solícita, ofertando ao Senhor pelo profeta o que
serviria para o seu parco sustento: “Pela vida do Senhor, teu Deus, não tenho
pão. Só tenho um punhado de farinha numa vasilha e um pouco de azeite na jarra”
(1Rs 17,12). Ao que lhe disse o profeta: “Não te preocupes! Vai e faze como
disseste. […] Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘A vasilha de farinha
não acabará e a jarra de azeite não diminuirá, até o dia em que o Senhor enviar
a chuva sobre a terra’” (1Rs 17,13.14).
Se nos enche os olhos o agir dessas
mulheres bíblicas, ambas anônimas, mas a primeira topônima, que cada uma, ao
seu tempo, ofereceu ao Senhor, por meios diferentes, aquilo que lhes era
necessário, o que diremos de Cristo, que o conhecemos, que, de rico, fez pobre
para nos enriquecer, “sendo Deus, rebaixou-se a si mesmo, fazendo-se aos homens
semelhante” (Fl 2,7), oferecendo-se, de “uma vez por todas” (Hb 9,12), tal como
o reconhece a Segunda Leitura? Muito mais do que essas viúvas, não seria o
Cristo, o máxime, para não dizer o Verdadeiro, o único exemplo de entrega?
Muito antes de nos inspirarmos nessas mulheres, servas de Deus, não deveríamos
imitar o que por nós se ofereceu? Tendo Jesus como modelo de entrega
eminentíssimo, Santo Inácio de Loiola escreverá: “Recebei, Senhor, a minha
liberdade inteira. Recebei minha memória, minha inteligência e toda a minha
vontade. Tudo o que tenho ou possuo de vós me veio; tudo vos devolvo e entrego
sem reserva para que a vossa vontade tudo governe. Dai-me somente vosso amor e
vossa graça e nada mais vos peço, pois já serei bastante rico”. E, mais tarde, o
que poeticamente surgirá pelos arranjos do sacerdote português Cartagena,
inspirado no mesmo Santo Inácio: “Toma a
minha vida, aceita, Senhor! Que a Tua chama arda no meu peito. Todo
o meu ser anseia por Ti. Tu És meu Mestre, ó Divino Rei. Fonte de
vida, de paz e amor. Por Ti eu clamo sempre, Senhor. Guia a minha
alma, enche-a também: Sê meu refúgio e supremo bem. De todo o
mal, guarda-me, Senhor. Só Tu me guias, meu Rei e meu Deus. Se a
noite esconde a luz aos meus olhos, és minha estrela a brilhar nos céus.
Eis que vem a aurora de um novo dia. O céu dourado, um fogo tão belo.
Já vem Jesus, para quê chorar? Cabeça erguida, Ele vai chegar!”
Bastante interessante a lógica, a
atitude de Deus: Ele pede de nós o essencial, o que de melhor temos, porque não
dizer a nossa vida por inteiro. Concomitante o oferecemos, mais largamente nos
dá e pede de nós. Retribuiremos com generosidade porque com maior gratuidade
nos é sempre dado. Oferta agradável ao Senhor, pois “a oblação do justo
enriquece o altar; é um suave odor na presença do Senhor” (Eclo 35,8). Desta
forma, faremos valer o que Jesus já nos havia solicitado: “Recebestes de graça,
de graça dai!” (Mt 10,8); e ainda: “Dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no
regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida
com que medirdes, sereis medidos vós também” (Lc 6,38). Destarte, a Divina
Providência, agindo no absurdo de nossa vida doada incondicional e
ilimitadamente, fará dela a paradoxal famigerada e sutil vida de Deus, tal como
o Cristo que se oferece inteiramente para ganhar-nos para Si.
Cabe-nos ainda mais uma
consideração: aqueles outros que depositavam as suas sobras no cofre do tesouro
do Templo não haviam sido impulsionados, de alguma forma, por Deus para que
fizessem a sua oferta? Caso positivo, o porquê, espiritualmente e
intencionalmente falando, não primaram pela generosidade? Por que não foram tão
sensíveis ao influxo de Deus, tal como a viúva inominada? Caso negativo, qual
foi a real motivação que os levou a depositar o seu ofertório no altar do
Senhor? E nós, diante desta situação bifurcada, nos enquadramos onde? O que nos
impede, se pensarmos como os demais de cuja oferta era desconexa com a vida, de
fazermos o diferente?
Nas aparências que mundo bastante
preza, podemos tantas vezes não ser importantes, tampouco gerarmos o interesse
dos que se vão ‘na onda do momento’. O que importa? O que lhe ofereceremos
nunca será tão precioso quanto aquilo que damos ao Senhor: nosso coração, com a
real intenção de sermos só Dele, ele mesmo que se rejubila por um que lhe vem
ao encontro, ou que por ele é alcançado no amor, do que com os que já lhe
pertencem, sendo seus (cf. Lc 15,1-10). Nossa frágil vida é um tesouro
indispensável aos olhos do Criador de toda vida que não deseja que ninguém se
perca: “Assim é a vontade de vosso Pai celeste, que não se perca um só destes
pequeninos” (Mt 18,14). A Divina Providência sempre nos surpreende. Este dar de
nossa pobreza a Deus, far-nos-á, posteriormente, dignos do céu, tal como disse
o Senhor no Sermão da Montanha e a estrofe do canto de aclamação recordará:
“Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3).
Que o exemplo dessas duas viúvas da
liturgia de hoje nos inspirem. Que o Senhor Jesus, que se ofereceu inteiramente
a Deus por nós, por sua morte salvadora, nos sirva de modelo. Sempre cônscios
de que nosso viver não é nosso, mas é Daquele de quem tudo procede, por amor.
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