sexta-feira, 9 de novembro de 2012

XXXII DOMINGO DO TEMPO COMUM


(Ano B – 11 de novembro de 2012)



I Leitura: 1Rs 17,10-16
Salmo Responsorial: Sl 145(146),7.8-9a.9bc-10 (R/.1)
II Leitura: Hb 9,24-28
Evangelho: Mc 12,38-44



Queridos irmãos,



Existe uma frase bastante conhecida em nosso meio, que, inclusive, é bíblica, mas que poderia, tranquilamente, sintetizar a Liturgia da Palavra deste domingo: “O que o homem vê não é o que importa: o homem vê a face, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7). Assim sendo, ao contrastar este trecho muito difundido no meio popular com o Evangelho, perceberemos uma nuance importante: Deus conhece-nos inteiramente! Assim, acontecera através do olhar que Jesus fitou sobre aqueles tantos que frequentavam o Templo de Jerusalém, inclusive esta bendita viúva colocada no anonimato.


Faz-se necessário que entremos no panorama bíblico-teológico do Evangelho de hoje. O Evangelho de São Marcos é organizado em quatro cenários teológicos: o Deserto, a Galileia, o caminho e Jerusalém. A perícope de hoje situa-se aí, em Jerusalém. E adentramos neste cenário com a Liturgia da Palavra do XXXI Domingo do Tempo Comum (Mc 12,28-34). Só que, aqui no Brasil, este Evangelho não foi proclamado no domingo passado por conta da Solenidade de Todos os Santos, transferida do dia 1º de novembro para o domingo, 04 do mês corrente. Este cenário de São Marcos é iniciado no capítulo 11 e se estende até o término do seu Evangelho.


Jesus sobe a Jerusalém para viver o Mistério Pascal, realizando a obra de redenção do gênero humano pelo seu sangue vertido na cruz, pela sua morte salvadora. E, desde que adentra na cidade, faz observações e denúncias pertinentes acerca da prática judaica, alertando sobre a caduquice da religião dos judeus (até porque a sua prática era levada a cabo tendo como norte as aparências e os ritualismos vazios), ao contrário do que propõe Jesus: uma religião nova, baseada unicamente em sua Divina Pessoa. Por este motivo, o evangelho de hoje ser iniciado pela censura aos doutores da Lei, marcos da religião judaica, que não reconheciam a grandeza do Cristo que se lhes apresentava, fechados em realidades outras, que alienam o homem: luxo, honra, cobiça e dissimulação.


Ao criticar severamente os mestres da Lei por prezarem as vaidades e as honrarias do mundo, o Senhor recomenda aos seus discípulos para que não façam o mesmo, e os assevera, advertindo: “Tomai cuidados com os doutores da Lei! […] Eles receberão a pior condenação” (Mc 12,38.40). Percebemos ainda, pela audição das leituras deste domingo, que a figura da viúva é posta em evidência. Esta classe desfavorecida da sociedade judaica, cuja atenção já era cobrada pela Torá (cf. Ex 22,22), era defraudada pela falsa piedade das autoridades do judaísmo, pelos teoricamente versados na Palavra de Deus.


O texto de São Marcos prossegue, mostrando o Senhor no Templo, sentado, diante do cofre das esmolas, concorrido por muito ricos e pobres, inclusive viúvas, e, dentre estas, uma que, inconscientemente, furta o olhar de Jesus para si, sem pretensão alguma, ao depositar suas duas moedinhas, monetariamente insignificantes, mas valorosas porque, juntamente com aquelas frações míseras, a mulher havia colocado como oferta ao Senhor o que de mais valioso possuía: toda a sua existência, tudo o era no que tinha. Havia entregado a sua humana razão de viver Àquele de quem todo o viver procede, agradando enormemente a Deus. Neste sentido, meditando a ação desta viúva, cujo interior Jesus exaltou, um autor conhecido pelo apelido de pseudo-Jerônimo afirma: “Em sentido místico, os ricos são aqueles que tiram do tesouro de seu coração o novo e o velho, quer dizer, os segredos e recônditos mistérios da divina sabedoria de um e de outro Testamento [da Palavra de Deus]. E, quem é essa pobrezinha senão eu mesmo e meus semelhantes, que damos o que podemos e desejamos que se nos explique o que não podemos? Porque Deus não considera o que haveis entendido, mas sim o vosso ânimo de entendê-lo. Todos podemos oferecer um quadrante [duas moedas], que é a boa vontade, a qual se chama quadrante porque existe com outras três coisas, a saber: pensamento, palavra e obra”; ao mesmo tempo em que São Beda, o Venerável, alude: “Alegoricamente, os ricos que lançavam na arca representam os judeus orgulhosos da justiça e da lei; a viúva pobre representa a simplicidade da Igreja, sendo pobre porque se despojou do espírito da soberba ou das concupiscências do temporal, e viúva porque aquele a quem estava unida sofreu a morte por ela. E põe duas moedinhas na arca, porque leva as oferendas do amor a Deus e ao próximo, ou da fé e da oração. Estas moedinhas valem pouco. No entanto, têm o mérito da piedosa intenção, pela qual são aceitas e mais estimadas que tudo o oferecido pelos soberbos judeus. Estes fazem oferendas ao Senhor do que lhes sobra, enquanto que a Igreja dá-lhe tudo o que tem, porque entende que tudo o que é vida nela não é mérito seu, mas dom de Deus” (In Marcum, 3,42).


Símile atitude temos no exemplo da viúva de Sarepta, pagã, pobre e faminta juntamente com o seu filho, que não hesitando em servir o profeta Elias, quando da seca que atingiu a terra, confia na Palavra de Deus e é solícita, ofertando ao Senhor pelo profeta o que serviria para o seu parco sustento: “Pela vida do Senhor, teu Deus, não tenho pão. Só tenho um punhado de farinha numa vasilha e um pouco de azeite na jarra” (1Rs 17,12). Ao que lhe disse o profeta: “Não te preocupes! Vai e faze como disseste. […] Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel: ‘A vasilha de farinha não acabará e a jarra de azeite não diminuirá, até o dia em que o Senhor enviar a chuva sobre a terra’” (1Rs 17,13.14).


Se nos enche os olhos o agir dessas mulheres bíblicas, ambas anônimas, mas a primeira topônima, que cada uma, ao seu tempo, ofereceu ao Senhor, por meios diferentes, aquilo que lhes era necessário, o que diremos de Cristo, que o conhecemos, que, de rico, fez pobre para nos enriquecer, “sendo Deus, rebaixou-se a si mesmo, fazendo-se aos homens semelhante” (Fl 2,7), oferecendo-se, de “uma vez por todas” (Hb 9,12), tal como o reconhece a Segunda Leitura? Muito mais do que essas viúvas, não seria o Cristo, o máxime, para não dizer o Verdadeiro, o único exemplo de entrega? Muito antes de nos inspirarmos nessas mulheres, servas de Deus, não deveríamos imitar o que por nós se ofereceu? Tendo Jesus como modelo de entrega eminentíssimo, Santo Inácio de Loiola escreverá: “Recebei, Senhor, a minha liberdade inteira. Recebei minha memória, minha inteligência e toda a minha vontade. Tudo o que tenho ou possuo de vós me veio; tudo vos devolvo e entrego sem reserva para que a vossa vontade tudo governe. Dai-me somente vosso amor e vossa graça e nada mais vos peço, pois já serei bastante rico”. E, mais tarde, o que poeticamente surgirá pelos arranjos do sacerdote português Cartagena, inspirado no mesmo Santo Inácio: “Toma a minha vida, aceita, Senhor! Que a Tua chama arda no meu peito. Todo o meu ser anseia por Ti. Tu És meu Mestre, ó Divino Rei. Fonte de vida, de paz e amor. Por Ti eu clamo sempre, Senhor. Guia a minha alma, enche-a também: Sê meu refúgio e supremo bem. De todo o mal, guarda-me, Senhor. Só Tu me guias, meu Rei e meu Deus. Se a noite esconde a luz aos meus olhos, és minha estrela a brilhar nos céus. Eis que vem a aurora de um novo dia. O céu dourado, um fogo tão belo. Já vem Jesus, para quê chorar? Cabeça erguida, Ele vai chegar!”


Bastante interessante a lógica, a atitude de Deus: Ele pede de nós o essencial, o que de melhor temos, porque não dizer a nossa vida por inteiro. Concomitante o oferecemos, mais largamente nos dá e pede de nós. Retribuiremos com generosidade porque com maior gratuidade nos é sempre dado. Oferta agradável ao Senhor, pois “a oblação do justo enriquece o altar; é um suave odor na presença do Senhor” (Eclo 35,8). Desta forma, faremos valer o que Jesus já nos havia solicitado: “Recebestes de graça, de graça dai!” (Mt 10,8); e ainda: “Dai, e dar-se-vos-á. Colocar-vos-ão no regaço medida boa, cheia, recalcada e transbordante, porque, com a mesma medida com que medirdes, sereis medidos vós também” (Lc 6,38). Destarte, a Divina Providência, agindo no absurdo de nossa vida doada incondicional e ilimitadamente, fará dela a paradoxal famigerada e sutil vida de Deus, tal como o Cristo que se oferece inteiramente para ganhar-nos para Si.


Cabe-nos ainda mais uma consideração: aqueles outros que depositavam as suas sobras no cofre do tesouro do Templo não haviam sido impulsionados, de alguma forma, por Deus para que fizessem a sua oferta? Caso positivo, o porquê, espiritualmente e intencionalmente falando, não primaram pela generosidade? Por que não foram tão sensíveis ao influxo de Deus, tal como a viúva inominada? Caso negativo, qual foi a real motivação que os levou a depositar o seu ofertório no altar do Senhor? E nós, diante desta situação bifurcada, nos enquadramos onde? O que nos impede, se pensarmos como os demais de cuja oferta era desconexa com a vida, de fazermos o diferente?


Nas aparências que mundo bastante preza, podemos tantas vezes não ser importantes, tampouco gerarmos o interesse dos que se vão ‘na onda do momento’. O que importa? O que lhe ofereceremos nunca será tão precioso quanto aquilo que damos ao Senhor: nosso coração, com a real intenção de sermos só Dele, ele mesmo que se rejubila por um que lhe vem ao encontro, ou que por ele é alcançado no amor, do que com os que já lhe pertencem, sendo seus (cf. Lc 15,1-10). Nossa frágil vida é um tesouro indispensável aos olhos do Criador de toda vida que não deseja que ninguém se perca: “Assim é a vontade de vosso Pai celeste, que não se perca um só destes pequeninos” (Mt 18,14). A Divina Providência sempre nos surpreende. Este dar de nossa pobreza a Deus, far-nos-á, posteriormente, dignos do céu, tal como disse o Senhor no Sermão da Montanha e a estrofe do canto de aclamação recordará: “Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3).


Que o exemplo dessas duas viúvas da liturgia de hoje nos inspirem. Que o Senhor Jesus, que se ofereceu inteiramente a Deus por nós, por sua morte salvadora, nos sirva de modelo. Sempre cônscios de que nosso viver não é nosso, mas é Daquele de quem tudo procede, por amor.

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