(25 de dezembro de 2011 – Missa da Noite)
I Leitura: Is 9, 1-6
Salmo Responsorial:
Sl 95 (96), 1-2a. 2b-3. 11-12. 13 (R/. Brilha hoje uma luz sobre nós, pois
nasceu para nós o Senhor).
II Leitura: Tt 3, 4-7
Evangelho: Lc 2,
15-20
Prorrompei, ó Igreja expectante, vibrai em altos tons: “Eis
que Ele, o Esperado, veio a nós!” Rejubilai, o Senhor está em nosso meio!
Queridos irmãos,
É um costume arraigado e milenar na Igreja, por ocasião da
data de hoje, a récita das Kalendas,
um anúncio natalino, feito na Celebração Eucarística após o sinal da cruz e a
saudação presidencial, antes do Hino de Louvor, em substituição do Ato
Penitencial: “Transcorridos muitos séculos desde que Deus criou o mundo e fez o
homem à sua imagem; séculos depois de haver cessado o dilúvio, quando o
Altíssimo fez resplandecer o arco-íris, sinal de aliança e de paz; vinte e um
séculos depois do nascimento de Abraão, nosso pai; treze séculos depois da
saída de Israel do Egito sob a guia de Moisés; cerca de mil anos depois da
unção de Davi como rei de Israel; na septuagésima quinta semana da profecia de
Daniel; na nonagésima quarta Olimpíada de Atenas; no ano 752 da fundação de
Roma; no ano 538 do Edito de Ciro autorizando a volta do exílio e a reconstrução
de Jerusalém; no quadragésimo segundo ano do império de César Otaviano Augusto,
enquanto reinava a paz sobre a terra, na sexta idade de mundo. JESUS CRISTO
DEUS ETERNO E FILHO DO ETERNO PAI, querendo santificar o mundo o mundo com a
sua vinda, foi concebido por obra do Espírito Santo e se fez homem;
transcorridos nove meses nasceu da Virgem Maria em Belém de Judá. Eis o Natal
de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo a natureza humana. Venham, adoremos o
Salvador. Ele é Emanuel, Deus Conosco”.
Esta belíssima narração tenta inserir os fiéis no contexto
histórico-teológico do nascimento do Salvador do gênero humano. Desta forma, a
Igreja assevera-nos que o Senhor, em sua atemporalidade, nos veio no tempo (de
paz, inclusive), e todos os grandes eventos bíblicos e pagãos encontram o seu
ponto convergência em Jesus, em seu nascimento. A Sábia Igreja vê estes eventos
como uma preparação, direta ou indireta, para a chegada do tempo de plenitude,
onde, de fato, Deus está conosco: “Et Verbum caro factum est et habitavit
in nobis et vidimus gloriam eius gloriam quasi unigeniti a Patre plenum gratiae
et veritatis” (Jo 1, 14). Sim, o Menino que hoje nos nasceu é
manifestação autêntica e singular de Deus. É Deus mesmo que, em um movimento de
‘abaixamento’ e amor, faz questão de adentrar na pobre história dos homens,
elevando-nos a si, revelando-se. Que mistério inaudito de amor!
Na Plenitude dos tempos, Deus, revelando-se a nós na
simplicidade e doçura de criança, é-nos um farol: “O povo, que andava na
escuridão, viu uma grande luz; para os que habitavam nas sombras da morte uma
luz resplandeceu” (Is 9, 1). Quem é este povo senão uma gama de gerações que
abarca milênios, e em cuja participação somos inseridos? Nós, transeuntes sem
perspectivas; nós, que estávamos sem rumo, fomos visitados pelo Senhor e a sua
luz nos invadiu, atraindo-nos a si. Tal como o navegante perdido em meio ao mar
que, ao avistar o fanal, é impelido àquele lume, nós também andávamos náufragos
no mar do mundo, sendo engolidos pelas ondas do pecado, quando avistamos o
Senhor travestido em nossa essência sem abandonar o que é por divindade, na
meiguice de um recém-nascido, esbanjando-nos alegria. Sim, ele é a nossa luz! “Ego Sum Lux Mundi!” (Jo 8, 12). Por
isso, a solenidade do Natal do Senhor ser celebrada no dia 25 de dezembro, no
hemisfério norte do planeta, data do solstício de inverno, quando os pagãos
celebravam a festa do Natale solis
invicti, Nascimento do sol invencível, comemorando o nascimento do deus sol.
No século IV, estabelecendo uma relação entre o simbolismo bíblico luz-trevas e
Cristo, vitorioso absoluto da noite do pecado, a Igreja canoniza esta data para
fazer memória do Nascimento do ‘Sol da Justiça que há de iluminar os que jazem
nas trevas e na sombra da morte e dirigir os passos no caminho da paz’ (cf. Lc
2, 78-79). “Ó,
quão maravilhosamente agiu a Providência que naquele dia em que o sol nasceu
[…] Cristo deveria nascer”, afirma São Cipriano; e, João Crisóstomo: “Eles
chamam isso de 'aniversário do invicto'. Quem de fato é tão invencível como
Nosso Senhor?”
As Kalendas ainda
afirmam: “enquanto reinava a paz sobre a terra”; ou seja: quando tudo
estava favorável, ele veio para reordenar o mundo com a paz que este
Menino-Deus nos traz. Veio para apagar do mundo a iníqua violência que oprime e
destrói vidas e corações, pois ele abate o jugo opressor, as botas de tropa de
assalto e os trajes manchados de sangue ele destrói por trazer a paz ao mundo,
ele que é prometido – dentre tantos cognomes – como “Príncipe da paz” (cf. Is
9, 5) ao implantar o seu reino fazendo com que a paz não tenha fim. E Jesus,
como cumprimento das Escrituras, por cujo nascimento é apresentado pelo
Evangelho de hoje, é concretude disso: “E, de repente, juntou-se ao anjo uma
multidão da corte celeste. Cantavam louvores a Deus, dizendo: ‘Glória a Deus no
mais alto do céu, e paz na terra aos homens por ele amados’” (Lc 2, 14). A
atitude do Senhor de fazer-se homem e nascer é uma ocasião estupenda de glorificação
de Deus e pacificação do ser humano. Mais uma vez nos deparamos com o mistério:
Deus que nasce e o seu nascimento é glorificação de si mesmo.
Hoje, Deus nos nasceu! É neste tempo teológico desta noite
santa que contemplamos a bondade de Deus sacramentada em uma criança para a
nossa salvação, tal como explicita a Segunda Leitura: “A graça de Deus se
manifestou trazendo salvação para todos os homens […] (pois) ele se entregou
por nós, para nos resgatar de toda a maldade e purificar para si um povo que
lhe pertença e que se dedique a praticar o bem” (Tt 2, 11. 14). Hoje, em Jesus,
Deus ganha um ‘endereço’ em meio à humanidade; nesta noite, vemos no Menino
Jesus o sublimíssimo sacramento de Deus, como nos diz São Leão Magno: “O Natal
do Senhor, pelo qual o Verbo se fez carne, nos ensina não só a recordar o
passado, mas nos parece vê-lo presente”. Portanto, o Menino e a noite são
sacramentos de Deus: o Menino, por ser Deus mesmo, tal como reza a Igreja no
prefácio de hoje: “E, reconhecendo a Jesus como Deus visível a nossos olhos,
aprendemos a amar nele a divindade que não vemos” (Prefácio do Natal do Senhor
I); a noite, por abrigar no tempo e no espaço àquele que essencialmente não se
influi pelos caracteres temporais nem tampouco se prende à contingência
espacial. A noite, para Leão Magno, ainda é sacramento porque “Celebrando a
inefável condescendência da misericórdia divina, pela qual o Criador dos homens
dignou-se fazer-se homem, sejamos incorporados à natureza daquele que adoramos
encarnado na nossa natureza”. Destarte, tanto a noite quanto o Menino são
sacramentos (sinais). Porém, o primeiro inferior ao segundo porque aquele nos
insere no mistério deste. Ou seja, na festa de Natal, Cristo opera e em tal
celebração atua a graça da sua renovada presença.
Esta santa e memorável noite é ainda o momento escolhido
para o mistério da restauração do gênero humano, pois é neste santo momento
misticamente vivenciado pela Igreja que acontece o intercâmbio entre Deus e a
humanidade: “E assumindo a humanidade sem deixar de ser Deus, uniu em si mesmo
duas realidades contrárias, a saber, a carne e o espírito. Uma delas conferiu a
divindade, a outra recebeu-a. Aquele que enriquece os outros torna-se pobre.
Aceita a pobreza de minha condição humana para que eu possa receber os tesouros
de sua divindade. Aquele que possui tudo em plenitude, aniquila-se a si mesmo;
despoja-se de sua glória por algum tempo, para que participe de sua plenitude.
[…] Ele assumiu a minha condição humana para restaurar a perfeição dessa imagem
e dar a imortalidade a esta minha condição” (São Gregório de Nazianzo).
Como estamos nos portando na presença de “Jesus, a Alegria
dos homens”, para fazer menção ao que compusera Johann Sebastian Bach? Quais os
sentimentos do nosso coração ao vermos desvelados em uma frágil criança os
mistérios da suma grandeza de Deus, nesta data em que a sentimentalidade aflora
na humanidade? Nesta noite, as palavras cessam e fala o olhar ao contemplar o
Pequenino reclinado em sua manjedoura; nesta noite, a razão humana se cala
diante do escândalo da Encarnação e Nascimento do Salvador, e ressoa a fé.
Ó venerável noite que assististe absorta o nascimento do
Deus Menino, diz-nos o que viste: uma Virgem parindo um Deus-Homem? Responde-nos,
ó estrela-guia: quem te ensinou o lugar da reclinação deste Menino Adorável? Falai-nos,
pastores, contai-nos a emoção que sentiste! Dizei para nós, ó corte angelical,
a alegria de ver o gênero humano sendo elevado à condição de Deus, sendo-vos
superior o homem que, outrora, era nada mais do que cinza e pó! Ó Reis Magos,
como vos curvastes ao Rei que o mundo governa, que se nos apresenta em uma
criança? Ó Herodes, porque te turbaste, já que o que nasceu possui o verdadeiro
Reino de per si inabalável? E, tu,
manjedoura, com as tuas finas tábuas, como suportaste o peso Daquele que tudo
sustém? Belém, casa do pão, não soubeste acolher em teu meio o que faz valer o
teu nome, aquele que é o “Verdadeiro Pão do Céu” (Jo 6, 32 ss.). Testemunha-nos
José, com o teu silêncio proclamador, como foi grandiosa esta experiência de
receber o teu Deus nos braços, sendo-lhe pai. Ninguém melhor do que ti, ó Santa
Maria, para ensinar-nos a contemplar, extasiados, tamanho mistério, mesmo sem
entender, guardando tudo no coração. Ó Santo Menino porque nos amas tanto?
Que este mistério, celebrado nesta feliz e silenciosa noite
de Natal, invada o nosso coração para que, vislumbrado-o nos mais puros
sentimentos, possamos fazer com que o Salvador nasça e renasça constantemente
em nosso interior, até gozarmos dele plenamente no céu, quando renasceremos
para a glória.
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