(Ano C – 20 de janeiro de 2013)
I Leitura: Is 62,1-5
Salmo Responsorial:
95(96),1-2a.2b-3.7-8a. 9-10a e c (R/.8a.9a)
II Leitura: 1Cor
12,4-11
Evangelho: Jo 2,1-11
Queridos irmãos,
Após as festividades do Tempo do Natal, a Igreja inicia o
Tempo Comum ou o também chamado Ordinário. Para tanto, já na sua estreia,
notamos a apresentação de Jesus sempre feita pelo Evangelho de São João. Assim,
no Ano A, temos a narração joanina do depoimento do Batista acerca de Jesus:
“Este é o Filho de Deus” (Jo 1,34). No Ano B, temos o testemunho do mesmo
Precursor que O aponta “Eis o Cordeiro de Deus”, bem como dos discípulos de
João que O denominam Mestre e Messias. Já no ciclo do Ano C, a apresentação de
Jesus se dá nas bodas de Caná e quer manifestar Jesus como Alegria dos homens,
já que o sentido cultural e teológico do vinho se situa aí.
Interessante averiguarmos que, se fizermos uma contagem de
dias desde o fim do prólogo de São João (ou seja, a partir do 1,19) até a passagem
do Evangelho de hoje (2,12), temos o total de sete dias, uma semana. O
casamento ocorre três dias após o encontro de Jesus com os primeiros
discípulos. Estes três dias fazem referência ao tríduo do Mistério Pascal
(Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus), e, neles, é aberta ao homem a
oportunidade da intimidade plena com Deus, graças à redenção oferecida pelo
Senhor. No tocante aos sete dias, temos a alusão feita por João à criação, já
que conforme o protolivro do Gênesis (1,1ss), o mundo e tudo o que nele existe
foi criado em um setenário. Em Jesus, somos recriados. O seu Sangue é ingresso
e garantia na ordem da Nova Criação, pois é também Sangue da Nova Aliança. Desta
forma, São João parece querer designar que a felicidade do homem, como nova
criatura, está na sua íntima relação com Deus que se dá em Cristo Jesus, por
isso, este dado bíblico-teológico encerrar-se com a narrativa de uma festa de
casamento. Se dissemos anteriormente que Jesus é o vinho novo, a alegria
inédita, a felicidade original da humanidade que O encontra, Ele também pode
ser visto, graças à passagem de hoje, como o Noivo tão esperado para desposar a
humanidade. Jesus coaduna em si esta união matrimonial, desde a Sua Encarnação,
ao se fazer verdadeiramente homem sem deixar de ser divino, até o extremar-se
da Cruz e da Ressurreição. Ao assumir-nos, estabelece esta troca de dons e
relações, figurada em uma relação marital, onde ‘os dois são uma só carne’ (cf.
Mt 19,5).
Mas, quando, de fato, ocorreu esta união entre Deus e o
homem? Toda a vida de Jesus é unânime, visando à salvação da humanidade. É com
o Mistério Pascal, que em cujo interior também se situa a Sua morte na cruz,
que esta redenção é consumada. É no exaspero da vida do Senhor que a criatura
humana se entrega, pelo Cristo, a Deus de maneira nunca antes vista, unindo-se
perfeitamente a Ele. É desta Vida ceifada que nasce a autêntica felicidade do
homem; é do sangue do Cristo derramado. Por isso, lemos: “Como o vinho veio a
faltar, a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho’. Jesus
respondeu-lhe: ‘Mulher, por que dizes isto a mim? A minha hora ainda não
chegou’” (Jo 2,3-4). Maria aparece e sua fala é profética, pois alude toda a
humanidade cabisbaixa porque não tem o pleno sentido de sua vida, a salvação,
mesmo sendo ela a primeira na ordem da redenção pelos méritos de seu Filho.
Nesta relação entre sangue e vida, é-nos dada a lembrança do mesmo João sobre o
discurso do pão da vida: “Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a
carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós
mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o
ressuscitarei no último dia. Pois a minha carne é verdadeiramente uma comida e
o meu sangue, verdadeiramente uma bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu
sangue permanece em mim e eu nele” (Jo 6,53-56); ou então o brado odioso, mas
cheio de um rico significado teológico, da humanidade sedenta de salvação,
quando da condenação de Jesus à cruz: “Que o sangue dele caia sobre nós e
nossos filhos!” (Mt 27,25).
Pela resposta de Jesus à Sua Mãe, entrevemos uma preocupação
de São João, que sempre a nomina pelo vocativo ‘Mulher’. No Evangelho de João,
Maria é sempre contraposta a Eva graças ao seu gênero feminino. Se Eva deixa-se
iludir com perspectivas de uma vida que prescinde de Deus, Maria é diferente.
Chamada ‘Mulher’, Maria é posta ao lado daquelas que a figuram no Antigo
Testamento, de uma maneira mais direta a rainha Ester, quando ambas
preocupam-se pela vida dos seus: “Se achei graça a teus olhos, ó rei, e se ao
rei lhe parecer bem, concede-me a vida, eis o meu pedido; salva meu povo, eis o
meu desejo” (Est 7,3). Ao que o Senhor responde, parece-nos ressoar que a
glorificação total não se dará em Caná, nestas bodas figurativas, mas no alto
do suplício da Cruz e no júbilo da ressurreição: eis a Nova e Eterna Aliança.
Por isso, mais adiante, no desfecho desta passagem, lermos: “Este foi o início
dos sinais de Jesus. Ele o realizou em Caná da Galileia e manifestou a Sua
glória e Seus discípulos creram nele” (v. 11). E ainda em São João, quando da
Oração Sacerdotal de Jesus: “Pai, é chegada a hora. Glorifica teu Filho, para
que teu Filho glorifique a ti” (Jo 17,1). São João Crisóstomo, comentando esta
expressão de Jesus, questiona-se: “Ainda que havia dito ‘não é chegada a minha
hora’, ao fim fez o que a sua Mãe Lhe havia pedido. E assim prova
suficientemente que não estava sujeito a horas. Pois, se O tivesse estado, como
fez isto quando não havia chegado a hora devida?” (In
Ioannem, hom. 21).
À ordem de Maria aos serventes “Fazei tudo o que Ele vos
disser”, temos os dados das talhas: a sua quantidade era seis, no seu interior
cabiam aproximadamente cem litros de água, que era usada para a purificação
exigida pelo judaísmo. Estas informações nos remetem a ver teologia também aí.
Seis é tido na numerologia judaica como designação de imperfeição, assim como
imperfeito era o judaísmo e seus rituais; cem, o número completo, expressa que
a totalidade dos antigos ritos judeus não é capaz de levar o homem às alegrias
e felicidades, à comunhão íntima com Deus, à Nova e Eterna Aliança. Jesus é a
sétima talha que aperfeiçoa, de sobremaneira, as outras seis, não mais em um
sentido meramente ritual, mas deste ao que significam e transmitem: a vida da
Graça. Logo, se completa todo o quadro-mosaico de Jesus para este Evangelho:
vinho, água, noivo, talha. Água que é transformada em vinho para alegria dos
participantes das Bodas em uma talha especial. Vinho até então não degustado,
mas cujo paladar é surpreendente, pois pelo Sangue de Cristo não fomos
igualados à condição humana anterior ao pecado, mas fomos dignificados ainda
mais, a um ponto nunca antes vivenciado pela criatura humana, condição superior
aos anjos. Ensejo pelo qual o mestre-sala exclama ao noivo: “Todo mundo serve
primeiro o vinho melhor e, quando os convidados já estão embriagados, serve o
vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!” (v. 10).
Cônscios de que somos escolhidos pelo Senhor, porque assim
Ele o quis para nos desposar, trilhemos, caríssimos irmãos, neste mundo, rumo
às nossas bodas definitivas, ou melhor, ao festim real em que seremos abraçados
e deleitados com a presença deste Noivo. É no Céu que sentiremos a plenitude do
amor e da nossa feliz realização, mas que, desta terra de peregrinos, já o
pré-degustemos, na certeza de nossa Salvação, iniciada pela Páscoa de Cristo
Noivo, completada pela nossa Páscoa de Esposa, de membros da Igreja, Única e
Verdadeira Esposa de Cristo, de cujo matrimônio participamos pela nossa pertença
batismal ao Corpo Místico do Senhor. Quando isso acontecer, quando nos
‘perdermos’ totalmente em Deus, acontecerá o que foi profetizado no Cântico dos
Cânticos, posto na boca da Igreja-Esposa: “Arrasta-me após ti; corramos! O rei
introduziu-me nos seus aposentos. Exultaremos de alegria e de júbilo em ti.
Tuas carícias nos inebriarão mais que o vinho. Quanta razão há de te amar!” (Ct
1,4).
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