Igreja: Corpo Místico de Cristo |
Queridos irmãos,
Chegamos ao nono artigo do nosso Credo que trata da nossa fé
em tudo o que a Igreja é e bem como do nosso assentimento ao que ela crê e piamente
ensina. Notoriamente, o “Creio na Santa Igreja Católica” é a primeira das
afirmações que fazemos em nosso Símbolo da Fé após termos professado a
Santíssima Trindade em cada uma de suas Três Pessoas divinas. Mas, por que
no-lo fazemos? Para encetar a origem da Igreja, ou seja, desta realidade que
nasce no coração do próprio Deus e adentra, através da vida de Cristo em nossa
realidade temporal, na história humana. São Pio X, em seu Catecismo, vai
afirmar: “Depois do artigo que trata do Espírito Santo, fala-se imediatamente
da Igreja Católica, para indicar que toda a santidade da mesma Igreja procede
do Espírito Santo, que é o autor de toda a santidade” (n. 143). Por estas
informações, já temos o vislumbre: a Igreja é uma instituição divina porque
provém de Deus mesmo.
Mas qual o porquê de chamarmos tal realidade “Igreja”? Este
cunho é proveniente do termo grego ‘ekklesía’,
sendo que esta palavra foi abduzida pela tradição cristã do seu sentido
original político entendido como assembleia, transformando-o. Na Grécia antiga,
os homens livres eram convocados para, em ‘ekklesía’,
decidirem o rumo da sua polis. Desta forma, com a canonização desta palavra, o
cristianismo, bebendo da tradição intelectual e filológica dos gregos, não quis
olvidar do seu sentido de reunião, apropriando-se desta ideia. A noção de
assembleia já se fazia presente na mentalidade judaica: a ‘qahal Iahweh’ que se
reunia para celebrar os louvores do Deus único, adorando-o. Deduzimos então que
o termo ‘ekklesía’ é uma nova
nomenclatura para uma realidade que o povo de Israel já conhecia, mas esta
mesma realidade ganha um diferencial: é uma assembleia reunida para, em nome de
Cristo, adorar o único Deus. Adorar ‘em Cristo’ é o inédito, a novidade desta
assembleia do Senhor. Eis a Igreja, tal como conhecemos hoje.
O Evangelho de São Marcos, ao relatar (ainda que brevemente)
o início do ministério público de Jesus, é preciso: [Jesus] “subiu ao monte e
chamou os que ele quis. E foram a ele. Designou doze dentre eles para ficar em
sua companhia. Ele os enviaria a pregar, com o poder de expulsar os demônios”
(Mc 3,13-15). Vemos que o Senhor Jesus Cristo convoca. De imediato, esta
convocação pode ser considerada a gênese da Igreja. Jesus convoca e seus
escolhidos atendem-lhe; é esta, ainda hoje, a dinâmica de Igreja: nós, povo
eleito pelo Senhor, somos atraídos a Ele, ao tempo, em que Lhe vamos ao
encontro. Mas, e o resto desta citação do Evangelho de Marcos: “Designou doze
dentre eles para ficar em sua companhia. Ele os enviaria a pregar, com o poder
de expulsar os demônios”? Ao sermos chamados pelo Senhor, ficamos sempre em
união com Ele, e, permanecendo nesta bendita união, fazemos-lhe as vezes,
realizamos, em continuidade, a Sua missão redentora, extirpando o mal. A missão
da Igreja é também missão nossa; a missão da Igreja, que é continuadora da
missão salvadora do Cristo, se faz, pelo nosso Batismo, missão do cristão,
porque, pelos sacramentos, somos constantemente e em dimensão sempre crescente
configurados a Ele (pelo menos deveriamos sê-lo!); e, configurados ao Cristo,
permanecemos cada vez mais Nele, ao tempo em que Ele estará sempre ao nosso
lado: “Permanecei em mim, como eu em vós […] Eu sou a videira e vós sois os
ramos” (Jo 15,4-5); “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em
mim e eu nele” (Jo 6,56); mesmo quando a Sua presença não é física, mas
espiritual: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt
28,20).
Na Teologia Paulina, é brilhante a analogia que o Apóstolo
dos Gentios faz, comparando a Igreja a um corpo. Dizemos analogia, mas esta
parecença torna-se um verdadeiro conceito eclesiológico com profunda
pertinência: “Porque, como o corpo é um todo tendo muitos membros, e todos os
membros do corpo, embora muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo […] Ora,
vós sois o corpo de Cristo e cada um, de sua parte, é um dos seus membros”
(1Cor 12,12.27). Desta maneira, muito superior à ideia de analogia, percebemos
uma unidade intrínseca entre Cristo e a Igreja, seu Corpo Místico, Sacramento
visível de Cristo invisível, no qual somos (de nossa parte, imerecidos)
participantes por querer do próprio Deus, por Sua convocação. Se somos os
membros do Corpo Místico de Cristo, há, semelhantemente a um corpo fisiológico,
uma cabeça que tudo rege, que comanda este corpo. Neste sentido, São Paulo
ainda dirá: “Ele [Cristo] é a Cabeça do corpo, da Igreja” (Cl 1,18). Como não é
possível que um corpo seja vivo sem a sua cabeça, similarmente é a Igreja.
Cristo-Cabeça, por ser o principiador deste Corpo Sagrado, Místico, a quem
chamamos Igreja, é o fundamento máximo de sua unidade, tendo em vista que,
biologicamente, todos os membros de um corpo animal (e, portanto, humano!)
estão unidos de alguma forma a um princípio, comando cerebral. Visivelmente,
Cristo-Cabeça age através dos Pastores que governam, santificam e ensinam ‘na’ e
‘pela’ Igreja, operando ‘in persona Christi
Capitis – na pessoa de Cristo Cabeça’. Deste modo, o Papa, os bispos,
presbíteros e diáconos são os representantes do Cristo que “dá a vida por suas
ovelhas” (Jo 10,11).
Uma das representações da Igreja: a Barca de Pedro |
O meio-secular Concílio Vaticano II, em uma de suas quatro
constituições dogmáticas, a Lumen Gentium,
destrincha incansavelmente sobre o mistério, a função e os membros da Igreja.
Para o leitor que desejar aprofundar no estudo da Eclesiologia, a Lumen Gentium torna-se imprescindível.
Mas, o Magistério não para aí, muito embora o que Igreja afirme doutrinalmente sejam
informações válidas para o decurso dos séculos, os santos Pastores não cessam
de, na continuidade do tesouro inexaurível da Tradição Católica, tecer,
inclusive, acerca da realidade da Igreja. Apesar de existirem escritos mais
veneráveis por sua antiguidade, o de São Cipriano, no Concílio de Cartago
(251), em defesa da Igreja e da sua unidade, dirá, dentre muitas coisas: “A
Igreja do Senhor, resplandecente de luz, lança seus raios no mundo inteiro, mas
a sua luz, difundindo-se em toda parte, continua sendo a mesma e, de modo
nenhum, é abalada a unidade do corpo. Na sua exuberante fertilidade, estende os
seus ramos em toda a terra, derrama as suas águas em vivas torrentes, mas uma
só é a cabeça, uma a fonte, uma a mãe, tão rica nos frutos da sua fecundidade.
Do parto dela nascemos, é dela o leite que nos alimenta, dela o Espírito que
nos vivifica. […] Não pode ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe. Como
ninguém se pôde salvar fora da arca de Noé, assim ninguém se salva fora da
Igreja”. Nesta riquíssima afirmação de São Cipriano, poderíamos nos demorar em
profunda reflexão; muitos os detalhes que poderíamos explorar, enriquecendo a
nossa fé, fé que da Mãe Igreja recebemos. Mas, o que queremos salientar agora
é: a única Igreja de Cristo é a Igreja Católica, não somente porque
historicamente seja a mais antiga, mas por ter sido divinamente instituída pelo
próprio Deus, Jesus Cristo. O então Cardeal Ratzinger, em documento da
Congregação para a Doutrina da Fé “Dominus
Iesus”, depois de quase dezoito séculos de São Cipriano, reafirmando a
unidade e a unicidade da Igreja de Cristo, dirá: “Existe portanto uma única
Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de
Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele […] A Igreja é sacramento universal de
Salvação, porque, sempre unida de modo misterioso e subordinada a Jesus Cristo
Salvador, sua cabeça, tem no plano de Deus uma relação imprescindível com a
salvação de cada homem. […] Com a vinda de Jesus Cristo Salvador, Deus quis que
a Igreja por ele fundada fosse o instrumento de salvação para toda a humanidade”
(n. 17;20;21). Por isto mesmo, o Magistério Católico diz ainda hoje: “Extra Ecclesia nulla salus – Fora da
Igreja não há salvação”, porque a Igreja é depositária e despenseira desta
salvação operada pelo Cristo, cuja missão redentora, santificadora é perpetuada
pela ‘Senhora Católica’.
No Novo Testamento, São Paulo afirma em relação entre Cristo
e a Igreja: A Igreja é Esposa de Cristo (cf. Ef 5,21-33). O Apocalipse também
vai nesta mesma linha de reflexão (cf. Ap 19,7; 21,2.9). Cristo, ao desposar a
Igreja, desposou-nos porque somos Igreja, sendo seus integrantes. Aqui,
recordamos-nos da Carta aos Hebreus: “A casa de Deus somos nós” (3,6). Como
casa, a Igreja é família de Deus: “Consequentemente, já não sois hóspedes nem
peregrinos, mas sois concidadãos dos santos e membros da família de Deus, edificados
sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, tendo por pedra angular o próprio
Cristo Jesus. É nele que todo edifício, harmonicamente disposto, se levanta até
formar um templo santo no Senhor. É nele que também vós outros entrais
conjuntamente, pelo Espírito, na estrutura do edifício que se torna a habitação
de Deus” (Ef 2,19-22). Mesmo com nossas fraquezas, misérias, pecados, o Senhor
nos convoca para o Seu Corpo Místico, Sua família, Sua Casa, a Sua Santa Igreja
e, nela, nos purifica. É por este ensejo que Santo Ambrósio, no distante século
IV, apregoará a Igreja “immaculata virgo,
sine ruga, pudore integra, amore plebleia, casta et meretrix, vidua sterilis,
virgo fecunda – imaculada virgem, sem ruga, íntegra no pudor, amante
pública, meretriz casta, viúva estéril, virgem fecunda” (In Lucam III,23), ressaltando a sua perfeita santidade, que
consiste tanto na adesão sem hesitações e sem incoerências a Cristo, seu Esposo,
quanto na vontade de alcançar todos para levá-los à salvação. Daí a Profissão
de Fé Niceno-Constantinopolitana rezar a santidade da Igreja como uma de suas
quatro notas fundamentais (“Creio na Igreja Una, Santa, Católica e
Apostólica”), mesmo tendo em seu seio pecadores que são santificados pela
Cabeça, Cristo.
A fé na Igreja de Cristo é a fé no seu divinal fundador; é a
fé em Deus. Assim, caros irmãos, não hesitemos em professar sempre, em espécie
de compêndio de fé: “Creio na Igreja Católica!”, sabendo que por trás desta
convicção está a certeza de crer em todo o Depósito de Fé que a Esposa de
Cristo acredita, custodia e prega para a salvação de todos os que, com ela, se
deixam alcançar por Jesus Cristo.
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