terça-feira, 19 de março de 2013

ENSAIO ANTROPOLÓGICO A PARTIR DA MÚSICA CRISTÃ CONTEMPORÂNEA











Pelo Seminarista David Ângelo Oliveira Rocha*

Refletir sobre música cristã não é uma reflexão meramente abstrata, mas, concreta. Porque não é um problema baseado tão somente na arte (música), mas é uma reflexão antropológica. Se a música cristã anda mal é sinal que o homem, este ser pós-moderno está perdido em si mesmo, com o mundo e com Deus.

No decorrer da caminhada histórica da música cristã é possível perceber que há algum tempo (e mais agora) a música cristã está cada vez mais caindo em pé de igualdade à música profana. Um relativismo musical está cada vez mais forte na cabeça dos cristãos a tal ponto de introduzir músicas internacionais, MPB como fundo musical para matrimônios ou como músicas de entrada ou pós-comunhão.

Santo Agostinho já dizia que “a música, isto é, a doutrina e arte de bem modular, como anúncio de grandes coisas foi concedida pela divina liberalidade aos mortais dotados de alma racional” (Apud Papa Pio XII, Sacrae Disciplina). Aqui temos algo bastante interessante em relação aos termos utilizados pelo Santo Agostinho: doutrina e arte de bem modular. É assim que ele chama a música cristã, mas infelizmente é possível perceber na nossa pós-modernidade o esquecimento da própria doutrina católica dando lugar a letras puramente sentimentais feitas em primeira pessoa do singular: “Eu”. Uma música cristã sem doutrina cristã é uma música falseada, mascarada, ilusória. Sem doutrina nas letras, sem citar passagens bíblicas, mas ao contrário, narrando problemas pessoais o compositor cria suas obras buscando abranger a todos e ao mesmo tempo a ninguém.

Mas o que esperar de compositores que estão aderindo a cultura relativista e egoísta? Tanto faz utilizar o ritmo de forró em música endereçada ao momento de comunhão como criar músicas para adoração, mas, feitas com a intenção de narrar suas angústias ao invés de ser na primeira pessoa do plural ( Nós). Está cada vez mais urgente uma renovação na mentalidade dos músicos e dos ouvintes católicos, “o problema da renovação da música religiosa não é somente um problema artístico: implica o da renovação do homem, que é quem há de cantar” (BASURKO, 2005, p.17). Mas, como a música não surgiu primeiro e depois o homem, mas ao contrário, primeiro surgiu o homem e depois veio a música, é necessário uma renovação no homem (antropós), já que, a música é o exterior do que habita no interior do homem, é a manifestação daquilo que mexia com sua mente e coração. “O que sai do homem é o que contamina o homem” (Mc 7, 20), ou seja, o que sai do mais profundo do ser humano é o que destrói, atrapalha a si mesmo.

O motivo de estar utilizando aqui Música Cristã Contemporânea é proposital. Por conta dessa mistura (ou fusão) entre música sacra e música religiosa, seja ela música religiosa protestante ou não, com uma cadência melódica tendenciosa ao sentimentalismo, “sem querer”, acabamos colocando músicas dentro das nossas Igrejas Católicas mais direcionadas ao nosso eu (o eu do músico principal) do que ao tu (povo, assembleia) e o Tu (Deus). Logo, o egoísmo é externado pela música. É possível saber quando um músico é tocado pelo Evangelho ou é um profissional, porque este deve lembrar que a música é ali na Liturgia um meio que expressa e toca na mente e no coração do homem a nível totalitário e não apenas pessoal.

Sendo assim, percebemos aqui que a função da música cristã é tocar na consciência, no ser total do homem pós-moderno e fazer com que ele coloque a sua frente, sem máscaras, quem ele está sendo realmente. Como estou levando a minha vida? O que sou? Quem eu sou? É esta a vida que quero continuar até o meu último suspiro? Será que as nossas músicas católicas estão levando as pessoas à colocarem suas vidas em suas mãos e analisa-las a partir do Evangelho? Será que está tocando na consciência ao começar pelo próprio músico que executa? Ter a consciência do que está cantando, por que e para Quem está cantando? Se a música não levar a pessoa a refletir sobre sua vida, se não mexer na mente e no coração não acontecerá o mesmo que aconteceu com Santo Agostinho, foi a partir da música que o levou a chorar na entrada da Igreja e perceber que Deus existe. Só quando o homem for tocado pela música cristã madura ele sempre entoará “salmos, hinos e cantos inspirados, cantando e tocando de coração em honra do Senhor” (Efésios 5, 19). Deus manifesta-se também pelos acordes e pelas mãos dos homens: pelo simples músico.

* Seminarista da Arquidiocese de Aracaju. Aluno do IV Ano de Teologia do Seminário Maior Nossa Senhora da Conceição.

REFERÊNCIAS

SCHOKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. 2ª edição. São Paulo: Paulus, 2006.

BASURKO, Xabier. O canto cristão na tradição primitiva. São Paulo: Paulus, 2005.

PIO XII, Papa. Carta Encíclica Musicae Sacrae Displina- Sobre a música sacra. 1955.
Acessar: Vaticano – Santa Sé Page: http://www.vatican.va

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO NA INAUGURAÇÃO DO SEU PONTIFICADO


Praça de São Pedro
Terça-feira, 19 de março de 2013
Solenidade de São José


Queridos irmãos e irmãs!


Agradeço ao Senhor por poder celebrar esta Santa Missa de início do ministério petrino na solenidade de São José, esposo da Virgem Maria e patrono da Igreja universal: é uma coincidência densa de significado e é também o onomástico do meu venerado Predecessor: acompanhamo-lo com a oração, cheia de estima e gratidão.

Saúdo, com afeto, os Irmãos Cardeais e Bispos, os sacerdotes, os diáconos, os religiosos e as religiosas e todos os fiéis leigos. Agradeço, pela sua presença, aos Representantes das outras Igrejas e Comunidades eclesiais, bem como aos representantes da comunidade judaica e de outras comunidades religiosas. Dirijo a minha cordial saudação aos Chefes de Estado e de Governo, às Delegações oficiais de tantos países do mundo e ao Corpo Diplomático.

Ouvimos ler, no Evangelho, que «José fez como lhe ordenou o anjo do Senhor e recebeu sua esposa» (Mt 1, 24). Nestas palavras, encerra-se já a missão que Deus confia a José: ser custos, guardião. Guardião de quem? De Maria e de Jesus, mas é uma guarda que depois se alarga à Igreja, como sublinhou o Beato João Paulo II: «São José, assim como cuidou com amor de Maria e se dedicou com empenho jubiloso à educação de Jesus Cristo, assim também guarda e protege o seu Corpo místico, a Igreja, da qual a Virgem Santíssima é figura e modelo» (Exort. ap. Redemptoris Custos, 1).

Como realiza José esta guarda? Com discrição, com humildade, no silêncio, mas com uma presença constante e uma fidelidade total, mesmo quando não consegue entender. Desde o casamento com Maria até ao episódio de Jesus, aos doze anos, no templo de Jerusalém, acompanha com solicitude e amor cada momento. Permanece ao lado de Maria, sua esposa, tanto nos momentos serenos como nos momentos difíceis da vida, na ida a Belém para o recenseamento e nas horas ansiosas e felizes do parto; no momento dramático da fuga para o Egito e na busca preocupada do filho no templo; e depois na vida quotidiana da casa de Nazaré, na carpintaria onde ensinou o ofício a Jesus.

Como vive José a sua vocação de guardião de Maria, de Jesus, da Igreja? Numa constante atenção a Deus, aberto aos seus sinais, disponível mais ao projeto d’Ele que ao seu. E isto mesmo é o que Deus pede a David, como ouvimos na primeira Leitura: Deus não deseja uma casa construída pelo homem, mas quer a fidelidade à sua Palavra, ao seu desígnio; e é o próprio Deus que constrói a casa, mas de pedras vivas marcadas pelo seu Espírito. E José é «guardião», porque sabe ouvir a Deus, deixa-se guiar por sua vontade e, por isso mesmo, se mostra ainda mais sensível com as pessoas que lhe estão confiadas, sabe ler com realismo os acontecimentos, está atento àquilo que o rodeia, e toma as decisões mais sensatas. Nele, queridos amigos, vemos como se responde à vocação de Deus: com disponibilidade e prontidão; mas vemos também qual é o centro da vocação cristã: Cristo. Guardemos Cristo na nossa vida, para guardar os outros, para guardar a criação!

Entretanto a vocação de guardião não diz respeito apenas a nós, cristãos, mas tem uma dimensão antecedente, que é simplesmente humana e diz respeito a todos: é a de guardar a criação inteira, a beleza da criação, como se diz no livro de Gênesis e nos mostrou São Francisco de Assis: é ter respeito por toda a criatura de Deus e pelo ambiente onde vivemos. É guardar as pessoas, cuidar carinhosamente de todas elas e cada uma, especialmente das crianças, dos idosos, daqueles que são mais frágeis e que muitas vezes estão na periferia do nosso coração. É cuidar uns dos outros na família: os esposos guardam-se reciprocamente, depois, como pais, cuidam dos filhos, e, com o passar do tempo, os próprios filhos tornam-se guardiões dos pais. É viver com sinceridade as amizades, que são um mútuo guardar-se na intimidade, no respeito e no bem. Fundamentalmente tudo está confiado à guarda do homem, e é uma responsabilidade que nos diz respeito a todos. Sede guardiões dos dons de Deus!

E quando o homem falha nesta responsabilidade, quando não cuidamos da criação e dos irmãos, então encontra lugar a destruição e o coração fica ressequido. Infelizmente, em cada época da história, existem «Herodes» que tramam desígnios de morte, destroem e deturpam o rosto do homem e da mulher.

Queria pedir, por favor, a quantos ocupam cargos de responsabilidade em âmbito econômico, político ou social, a todos os homens e mulheres de boa vontade: sejamos «guardiões» da criação, do desígnio de Deus inscrito na natureza, guardiões do outro, do ambiente; não deixemos que sinais de destruição e morte acompanhem o caminho deste nosso mundo! Mas, para «guardar», devemos também cuidar de nós mesmos. Lembremo-nos de que o ódio, a inveja, o orgulho sujam a vida; então guardar quer dizer vigiar sobre os nossos sentimentos, o nosso coração, porque é dele que saem as boas intenções e as más: aquelas que edificam e as que destroem. Não devemos ter medo de bondade, ou mesmo de ternura.

A propósito, deixai-me acrescentar mais uma observação: cuidar, guardar requer bondade, requer ser praticado com ternura. Nos Evangelhos, São José aparece como um homem forte, corajoso, trabalhador, mas, no seu íntimo, sobressai uma grande ternura, que não é a virtude dos fracos, antes pelo contrário denota fortaleza de ânimo e capacidade de solicitude, de compaixão, de verdadeira abertura ao outro, de amor. Não devemos ter medo da bondade, da ternura!

Hoje, juntamente com a festa de São José, celebramos o início do ministério do novo Bispo de Roma, Sucessor de Pedro, que inclui também um poder. É certo que Jesus Cristo deu um poder a Pedro, mas de que poder se trata? À tríplice pergunta de Jesus a Pedro sobre o amor, segue-se o tríplice convite: apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas. Não esqueçamos jamais que o verdadeiro poder é o serviço, e que o próprio Papa, para exercer o poder, deve entrar sempre mais naquele serviço que tem o seu vértice luminoso na Cruz; deve olhar para o serviço humilde, concreto, rico de fé, de São José e, como ele, abrir os braços para guardar todo o Povo de Deus e acolher, com afeto e ternura, a humanidade inteira, especialmente os mais pobres, os mais fracos, os mais pequeninos, aqueles que Mateus descreve no Juízo final sobre a caridade: quem tem fome, sede, é estrangeiro, está nu, doente, na prisão (cf. Mt 25, 31-46). Apenas aqueles que servem com amor capaz de proteger.


Na segunda Leitura, São Paulo fala de Abraão, que acreditou «com uma esperança, para além do que se podia esperar» (Rm 4, 18). Com uma esperança, para além do que se podia esperar! Também hoje, perante tantos pedaços de céu cinzento, há necessidade de ver a luz da esperança e de darmos nós mesmos esperança. Guardar a criação, cada homem e cada mulher, com um olhar de ternura e amor, é abrir o horizonte da esperança, é abrir um rasgo de luz no meio de tantas nuvens, é levar o calor da esperança! E, para o crente, para nós cristãos, como Abraão, como São José, a esperança que levamos tem o horizonte de Deus que nos foi aberto em Cristo, está fundada sobre a rocha que é Deus.

Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma está chamado a cumprir, mas para o qual todos nós estamos chamados, fazendo resplandecer a estrela da esperança: Guardemos com amor aquilo que Deus nos deu!

Peço a intercessão da Virgem Maria, de São José, de São Pedro e São Paulo, de São Francisco, para que o Espírito Santo acompanhe o meu ministério, e, a todos vós, digo: rezai por mim! Amém.

sábado, 16 de março de 2013

V Domingo da Quaresma

(Ano C - 17 de março de 2013)

Pelo Seminarista André Fernandes



I Leitura: Is 43,16-21
Salmo Responsorial: Sl 125(126),1-2ab. 2cd.-3.4-5.6 (R/ 3)
II Leitra: Fl 3,8-14
Evangelho: Jo 8,1-11


Caros irmãos,


A Liturgia deste Domingo, no Quinto da Quaresma, expor-nos-á aquele quadro do Evangelho de Jesus Cristo segundo São João: a mulher surpreendida em adultério. 

Alguns estudiosos dizem que, na verdade, o acontecido foi uma situação criada para apanhar Jesus nalguma situação para condená-lo à morte. Todavia, a passagem da Escritura nos concede importantíssimas lições para a nossa ''praxe'' de cristãos. Antes de analisarmos os pormenores do texto, recobremos a Liturgia do Quarto Domingo Comum, ''O filho pródigo, o filho mais velho e o Pai misericordioso'' uma vez que a Liturgia deste domingo aponta para o mesmo viés: A Misericórdia Deus, encarnada e personificada no Filho de Deus. Vejamos: são os fariseus, os mestres da Lei, aqueles ditos doutos das Sagradas Escrituras, mas que se tornaram insensíveis e não foram capazes de reconhecer Aquele que da Lei é o Suplemento; a Plenitude! 

Há um dado na Primeira Leitura do Profeta Isaías e que devemos trazer à lume da nossa consciência de homens e outrossim de cristãos. Diz-nos Isaías: ''Eis que faço nova todas as coisas''. O contexto abordado pelo Profeta é a volta do povo de Israel do Cativeiro da Babilônia. Um momento triste, como sabemos. Um tempo em que o Povo de Deus esqueceu o Deus da Aliança e entregou-se à prostituição idolátrica servindo aos deuses estrangeiros. Mas, eis que Deus não se cansa de fazer e refazer! Que se pode concluir, senão as palavras do salmista que a Igreja cantará no Segundo Domingo da Páscoa: ''Eterna é a sua misericórdia.''


No pensamento do quadro do Evangelho, podemos, sim, considerar o renovado feito do Senhor de Israel em Jesus, quando, com Aquela, tida por ''mulher adúltera'', põe-se face a face. Nosso Senhor vai no mais profundo do ''ente''. Pergunta-lhe: ''Quem te condenou? [...] Nem eu te condeno! Vai e não voltes mais a pecar.'' Pronto, aqui se encontra o miolo do colóquio de Jesus com a mulher. A misericórdia de Deus para conosco é eterna. Ela suplanta as mais possíveis e impossíveis concepções criadas. Mas, lembremo-nos: Deus, que é misericordioso, deseja-a, o que significa querer a nossa libertação total das algemas do pecado, por isso diz Jesus: ''Vai e não voltes mais a pecar''. Renovar-se em plenitude significa encontrar-se com a Misericórdia e, com ela, confrontar a nossa existência e crermos nas palavras do salmista: ''Transformastes meus farrapos em adornos de alegria''.

Um santo Domingo para todos e acompanhemos o primeiro Ângelus com o Santo Padre, o Papa Francisco!

quinta-feira, 14 de março de 2013

HABEMUS PAPAM!




Ao vermos a fumaça branca saindo da chaminé mais famosa do mundo, a de um Conclave, adicionado ao repique festivo dos sinos da majestosa Basílica que abriga o corpo daquele que foi o primeiro Vigário de Cristo, o Apóstolo Pedro, ao tempo em que contemplávamos rostos, gritos de toda uma catolicidade à espera do seu pastor universal, a Doce Presença de Cristo sobre a Terra, arrepiávamo-nos de emoção ao saber que o novo Romano Pontífice já estava eleito e confirmado. Sim, eleito e confirmado: eleito pelo Sacro Colégio Cardinalício, mas confirmado pelo Senhor através do Seu Espírito Santo, já que Deus, em seu desígnio eterno, já havia escolhido aquele a quem confiaria o seu redil, tal como aconteceu com Simão, que mais cedo havia se tornado Pedro por mandato divino, o ‘Pedro Apóstolo, Príncipe dos Apóstolos’ (PAPA), quando inquirido por seu Mestre: Simon Ioannis, amas me? […] Pasce oves meas” – Simão, filho de João, tu me amas? Apascenta as minhas ovelhas (Jo 21,17).


E, depois de aproximadamente uma hora, exatamente às 20 horas e 12 minutos (horário local), enquanto a noite avançava gélida na ‘Cidade Lustrada pelo sangue dos Hérois de Cristo’, a ‘Cidade Eterna’, Roma, abrem-se, na sacada principal da Basílica, as janelas e as cortinas que privavam o balcão dos olhos ansiosos do mundo. E, mediante aplausos e brados de “Viva il Papa!”, aparece um pregoeiro que, com um corpo carcomido pelos anos, é portador de voz rouca e trêmula, quiçá fosse, além dos seus janeiros, por conta do misto entre o júbilo e a grandiosidade da notícia a ser divulgada: “Annuntio vobis gaudium magnum: habemus Papam! Eminentissimum ac reverendissimum dominum, dominum, Georgium Marium Sanctae Romanae Ecclesiae Cardinalem Bergoglio, qui sibi nomen imposuit Franciscum” Era a rumor cálido que cortava o frio sentido pela multidão, era a frase que todos desejávamos escutar; palavras ansiadas e previstas para o cardeal francês, Jean-Louis Tauran. O eleito, um jesuíta, cardeal Jorge Mario Bergoglio, de 76 anos, até então Arcebispo de Buenos Aires. Logo, um ‘hermano nuestro’. A turba foi aos aplausos.


Quando o relógio de São Pedro cravava ponteiros em 20h23min, aparece o mais esperado argentino da história, os fiéis acolheram-no com festa. Francisco, mas que nome diferente para um papa? E, com a sua primeira aparição e fala, entendemos o porquê, ou pelo menos supomo-lo: o Bispo de Roma se nos vem apenas com uma sotaina branca, e, com o seu pronunciamento afável, entrevemos a humildade de São Francisco de Assis e o seu espírito de reformador da Igreja (“Francisco, reconstrói a minha Igreja!”, tal como ouvira o ‘pobrezinho de Assis’ no século XIII), mas não olvidamos de outro exemplo de santidade que, com o mesmo onomástico, também marcou a História da Igreja, o também jesuíta São Francisco Xavier, um grande missionário, desbravador de terras longínquas em prol do Evangelho, que viveu no século XVI: “Irmãos e Irmãs, boa noite! Vocês sabem que o dever do Conclave era de dar um Bispo a Roma. Parece que meus irmãos cardeais foram buscá-lo quase no fim do mundo. Mas, estamos aqui! Agradeço-vos pela acolhida da comunidade diocesana ao seu Bispo. Obrigado! Antes de tudo, gostaria de fazer uma oração pelo nosso Bispo Emérito Bento XVI . Rezemos todos juntos por ele, para que Deus o abençoe e Nossa senhora o proteja. E agora comecemos este caminho: Bispo e povo, povo e Bispo. Este é o caminho da Igreja de Roma que é aquela que precede na caridade todas as outras Igrejas. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre por nós, um pelo outro, rezemos por todo o mundo, para que exista uma grande fraternidade. Desejo que este caminho da Igreja, que hoje começamos e que me ajudará o meu Cardeal Vigário aqui presente, seja frutuoso para a evangelização desta tão bela cidade. E agora gostaria de dar uma bênção, mas antes vos peço um favor: antes de o Bispo abençoar o povo, peço que vocês rezem ao Senhor para que me abençoe. A oração do povo pedindo a bênção pelo seu Bispo. Façamos em silêncio esta oração de vocês por mim!”. Sendo sempre interrompido pelos aplausos.


Pois eis que o Espírito Santo, o grande artífice de toda a caminhada da Igreja, nos reservou uma grande surpresa, excelente, mas surpresa. Não nos cabe um juízo precipitado, ou mesmo enquadrarmos o 266º Vigário de Cristo em alas conformes aos padrões teológicos delineados ao bel-prazer de outrem. É a novidade do Paráclito! Esta é, como bem frisou Sua Santidade, uma página nova que se abre no livro da vida da Igreja. E “os filhos das trevas” já começam a traquinar contra o novo guia do leme da Barca de Pedro, isto é, da Igreja. Quanto a nós, “filhos da luz”, bastam-nos o grave e honroso deveres de rogar ao Senhor que abençoe o escolhido para apascentar as ovelhas de Cristo, o nosso já amado Papa: “Deus, Pastor e guia de todos os fiéis, olhai com bondade para o vosso servo o Papa Francisco, a quem pusestes como Pastor de vossa Igreja. Concedei-lhe que guie suas ovelhas com a palavra e o exemplo e, assim, ele e o rebanho alcancem a vida eterna. Por Cristo, nosso Senhor. Amém!”

   

segunda-feira, 11 de março de 2013

PEDRO?... SEM CHANCE!



Dom Fernando Arêas Rifan*


Toda a Igreja está em oração pelo bom sucesso do Conclave que se reúne para eleger o sucessor de São Pedro, o próximo Papa. Por mais que falem mal dela, os meios de comunicação se veem obrigados a confessar involuntariamente a importância excepcional que a Igreja tem na história do mundo e a repercussão que sua vida provoca em toda a humanidade.

Mas, infelizmente, os homens do mundo em geral só vêm a face humana da Igreja, não tendo capacidade de ver o que nela há de sobrenatural. “O homem natural (animal) não compreende as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras, nem as pode compreender, porque é espiritualmente que se devem ponderar” (I Cor 2, 14). Por isso o candidato a usar o anel do pescador, ao papado, é em geral analisado nos seus aspectos humanos e mundanos, sendo as qualidades do futuro Papa assim ressaltadas.

Sob esse prisma e pelos parâmetros atuais, como me disse certa vez um Cardeal, São Pedro não teria a menor chance de ser eleito em um Conclave. Com efeito, seu currículo era bem fraco e nada entusiasmante. Oriundo da Galileia  região não muito apreciada, pescador do lago de Genesaré, só falava uma língua, assim mesmo em dialeto, e não tinha grandes estudos.

Era um instável emocional e impulsivo, foi até chamado por Jesus de “satanás”, quer dizer, adversário, quando, com vistas humanas, quis impedi-lo de ir a Jerusalém para sofrer sua Paixão. Mesmo com todas as promessas a ele feitas, acabou fugindo quando Jesus foi preso, e, pior ainda, negou que o conhecia, para escapar de uma eventual prisão. Era, humanamente falando, alguém não confiável para exercer qualquer cargo de importância. E, se houvesse “mídia” naquele tempo, ele seria completamente desmoralizado. Numa banca de apostas, qual chance teria Pedro de ser eleito em um Conclave? Você apostaria nele e, se fosse Cardeal, votaria nele?

“Meus pensamentos não são os vossos, e vosso modo de agir não é o meu, diz o Senhor, mas tanto quanto o céu está acima da terra, tanto é superior à vossa a minha conduta e meus pensamentos ultrapassam os vossos” (Is 55, 8-9).

Assim, “onde abundou o pecado, superabundou a graça” (Rm 5, 20). Pedro foi a “pedra” escolhida por Jesus para ser o fundamento de sua Igreja, o primeiro Papa, o seu “vigário” aqui na terra. Assim como Jesus, “a pedra rejeitada pelos construtores tornou-se a pedra angular” (Mt 21, 42). Pedro caracteriza bem a Igreja, em seu aspecto humano e divino. 

Fraca e forte, desprezível e imbatível, sacudida, mas indefectível, cheia de pecadores, mas santa em sua doutrina e na sua graça. E isso por causa da garantia que lhe dá o próprio Jesus Cristo. A vinda do Espírito Santo transformou aquele pescador em um sábio poliglota, em um valente defensor de Cristo, até com a própria vida. Por isso, apesar de todas as fraquezas da sua parte humana, ele recebeu o carisma de confirmar os seus irmãos na Fé e de apascentar as ovelhas e os cordeiros do Senhor. E os poderes do Inferno jamais prevalecerão contra a Igreja, edificada sobre essa pedra: “Non praevalebunt! (Mt 16, 18)”.

*Bispo da Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney

sábado, 9 de março de 2013

IV DOMINGO DA QUARESMA


 (Ano C - 10 de março de 2012)



Pelo Seminarista André Fernandes

I Leitura: Js 5,9a.10-12
Salmo Responsorial: Sl 33 (34),2-3.4-5.6-7 (R/.9a)
II Leitura: 2Cor 5,17-21
Evangelho: Lc 15,1-3.11-32 (Filho pródigo)


Caros irmãos e irmãs, na fé trinitária, a "graça e paz da parte de Deus, o Pai e do Senhor Nosso Jesus Cristo na potência do Espírito Santo",


Eis que adentramos à metade da bendita via dos exercícios da Sagrada Quaresma. A Igreja celebra neste Domingo o quarto do supracitado Tempo Litúrgico. Observamos na venerável pedagogia da Liturgia deste domingo, através dos sinais vislumbrados e experimentados com os nossos sentidos, o mistério da fé. Esse domingo é há mui conhecido de maneira vulgar como o "Domingo da Alegria". À grosso modo, podemos, a priori, indagar-nos: Por que a Igreja, prestes a celebrar a Páscoa anual do Filho de Deus, cognomina o presente "Dies Domini", como "Domenica in Laetare"? Por que este regozijamento, uma vez que "o Esposo ser-nos-á tirado"? É justificativa tamanha alegria?


Recordemos que o Domingo é a Páscoa de Cristo. É o dia por antonomásia. É o primeiro dia da Nova Criação sancionada na Aliança sempiterna do Novo Adão. É o oitavo dia! O referido dia pascal em que a Igreja, na porção dos seus fieis engendrados nas águas santificantes do lavacro batismal, reúne-se, tal como os primeiros cristãos, para celebrar a memória atualizada, o "zikaron", da Páscoa de Cristo: sua crua Paixão Morte e refulgente Ressurreição ao terceiro dia. Ainda somos formados pela Igreja em permanecermos sabidos de que no Domingo algum cristão utilizar-se-á das práticas exteriores da Quaresma.  Os domingos são subtraídos dos quarenta dias.


O Quarto Domingo da Quaresma é, como já pontuamos, o Domingo Laetare. Segundo a tradição, neste dia,  com um sentimento de júbilo,a Igreja benzia outrora a "rosa" e outrossim é marcado pelas palavras, com as quais, o sacerdote introduz a Liturgia hodierna, presente na Antífona da Entrada, extraída do Livro do Profeta Isaías: "Regozija-te, Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais; vós que estais tristes, exultai de alegria! Saciai-vos com a abundância de suas consolações" (cf. Missal Romano).


Neste dia, o sacerdote, tem a faculdade de usar o róseo na vestição dos sagrados paramentos, porquanto significa a quebra do roxo e adição do branco que posteriormente cingirá os sacerdotes ao decurso dos cinquenta dias do Tempo "em que Cristo, nossa Páscoa, foi imolado".


Observemos, irmãos, quão rico é o ensinamento que a Igreja nos insere, quando, na Liturgia, abstraímos a Catequese. O Papa Emérito Bento XVI nos admoesta: "A melhor catequese é uma Liturgia bem celebrada". É neste ponto em que podemos experimentar, como dissera Santo Agostinho, "a Beleza que salva". Na Liturgia, nós nos encontramos com o nosso nada, como Moisés, na visão teofânica da sarça: "Não te aproximes! Tira as sandálias dos pés, porque o lugar onde estás é uma terra santa" (cf. Êx 3, 4) uma vez que é nossa pequenez o magno acesso e condição única para celebrarmos, como nos diz São Josemaría Escrivá de Balaguer, "o rigor da Liturgia".


Eis, Domenica in Laetare! Porque é anunciada a alegria do Mistério Pascal de Nosso Senhor Jesus Cristo que, na árvore da obediência, realizou a consumação da sua vida como vontade do Pai para resgate de muitos. A alegria cristã que prorrompe dos nossos mais profundos intentos é a certeza da vida eterna, fruto da nossa reconciliação com Deus em seu Filho, o Pio Pelicano, como ilustra Santo Tomás na belíssima peça "Adoro-Te devote", "uma só gota do vosso sangue purificar-nos-á".


À Primeira Leitura, do Livro de Josué, contemplamos a concretização do poderio de Adonai para com Israel que, após a servidão no Egito e a idolatria, abandonando o Deus de seus pais, e nas duras pelejas à caminho da 'terra da promessa' é nesta introduzido. Ei-la: Canaã! A terra prometida desde Abraão aos seus descendentes. Ela é significado pleno da liberdade do Senhor para com o povo eleito, segregado para reconhecê-Lo como Aquele que fez bem todas as coisas.


O fato por excelência que Israel precisara fazer memória doravante e perpetuado para as gerações é o Êxodo, ou seja, a travessia da escravidão para a liberdade, deste modo a Páscoa! "Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito".  Com isto, o que Deus quer exortar para o seu povo? É como se dissesse: - Faraó foi derrotado! Faraó e seu grandioso exército foram tragados pelas águas! Deus estabelece, como bem já sabemos, com tamanho evento, uma aliança com o seu povo, um pacto de amor por predileção!


Ainda percebemos na Primeira Leitura que o maná caído desde lá, quando das murmurações no deserto, é cessado. "O maná cessou de cair no dia seguinte, quando comeram dos frutos da terra. Os israelitas não mais tiveram o maná. Naquele ano comeram dos frutos da terra de Canaã" (cf. Js 9, 12)  O que nos leva a entender tamanha imagem? O maná já não é mais necessário. O povo de Deus fora empossado da terra preparada desde todo o sempre. O maná era um anuncio que Deus prepara maravilhas. Canaã, terra da fartura, "onde leite e mel são corridos", consoante a Sagrada Escritura para, servindo-se dessa ilustração, mostre a Páscoa. Podemos, ainda assim, trazer para a nossa vivência cristã o quadro de Israel, Canaã e o maná.


A Igreja é o Novo Israel do Senhor; o novo Povo de Deus, prefigurado e estado já no primeiro Israel. No mergulho da pia batismal, fomos enxertados, tais como ramos, à preciosíssima Oliveira, isto é, ao Corpo Místico de Cristo, logo, tornamo-nos um povo de sacerdotes, uma nação santa e, destarte, um povo a peregrinar para a verdadeira Canaã, a Jerusalém do Alto, na qual consumiremos do Pão dos Anjos tido já hoje para nós já na Eucaristia, tal como o é, pré-gustação, antevisão e penhor da Páscoa eterna. Eis! Israel colhera da semeadura da terra para se alimentar. E nós, o que executaremos? Como assinala o apóstolo São João, numa de suas missivas, "veremos a Deus, tal qual Ele é!" Esta será a alegria de todos os homens após as lamúrias desta terra de Adão!


Na Segunda Leitura, ouvimos da boca do Apóstolo das Gentes, São Paulo, a saber, o desenvolvimento solene da teologia do homem novo a partir de Cristo. "Se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo" (cf. 2 Cor 5,17ss). À lume da Palavra de Deus explanada pelo venerável apóstolo, podemos, na dinâmica da Quaresma, fazer um acurado exame da nossa consciência. O que será este "está em Cristo"? Ainda me comporto como se fosse "inimigo da cruz de Cristo", menosprezando o gesto sacerdotal e reconciliador da sua oferta por causa de mim? Será às trevas serem a minha morada?


"Está em Cristo" é viver a capacidade da liberdade interior alcançada para nós, ainda que não merecedores, pelos méritos da Sua Paixão redentora. O convite do Apóstolo à comunidade cristã já foi ouvido por nós, na Celebração da Quarta-Feira de Cinzas: "Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus" (Ibidem).  "Está em Cristo" é buscar a constante reconciliação com Deus e com os irmãos através do longínquo e contínuo processo de "metanoia", ou seja, radicalidade de mentalidade, transformarmos a nossa maneira de pensar e agir, para "produzirmos bons frutos".


A tônica desta Sagrada Liturgia é colocada no Evangelho. Neste, as duas leituras ouvidas, encontram a profunda síntese. Uma vez que celebramos o Domingo da Alegria, a Palavra de Deus, nos reserva, no ano de São Lucas, o quadro da parábola dita do "Filho Pródigo". Em verdade, trata-se do capítulo quinze de Lucas, assinalado como "As três parábolas da misericórdias". Ei-las  a saber: a da ovelha perdida, a da dracma perdida e, por fim, a do filho perdido e o filho fiel, conhecida como "o filho pródigo".


Ao limiar, percebemos a presença dos fariseus e os escribas que condenavam a hospitalidade de Nosso Senhor para com os publicanos e pecadores. Acerca disso exorta-nos o Papa Bento XVI: "Encontramos aqui dois grupos, dois 'irmãos': publicanos e pecadores; fariseus e escribas. Jesus responde-lhes com três parábolas: com as 99 ovelhas que ficaram em casa e a ovelha perdida; com a parábola da dracma perdida; e, finalmente, acrescenta outra e diz 'um homem tinha dois filhos'. Trata-se, portanto, dos dois.’’ (cf. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à Transfiguração, p. 180)


Jesus é incisivo com os fariseus e escribas que se consideravam detentores da Lei de Moisés de maneira tal à emancipar-se, estabelecendo juízos temerários. Ao depararmo-nos com a alegoria da Parábola do Pai misericordioso podemos aferir o desígnio de salvação, a Aliança estabelecida em Cristo, advindo da parte do Pai, do seio da Trindade Santíssima, para "salvar o que estava perdido".


O Evangelho pormenoriza toda a decisão dos filhos e é justamente aí a centralidade da literalidade do gênero literário, a parábola. Aquele declara: "Pai, dá-me a parte da herança que me cabe. E o pai dividiu os haveres entre  eles". Qual o significado deste gesto?  Na Filosofia moderna diríamos ser a declaração da 'morte de Deus', conforme a ideia de Nietzsche dentre alhures. A decisão do filho mancebo é o sonho de ser livre, de emancipar-se. Fazer da sua existência uma satisfação vazia. Não devendo satisfação a ninguém. É a triste ilustração da conjuntura do homem moderno. Deus é um ser que em minha vida não deve intrometer-se.  Eu me basto! "Dá-me a parte que me cabe!" É a debalde utopia da autossuficiência. 


O distanciamento do filho para com o pai foi catastrófico, o que, deveras, podemos, a partir deste fato, vislumbrar o amor de Deus deixando-nos livres para escolhermos entre o caminho da plena felicidade ou a perdição eterna. O Senhor respeita as nossas conclusões. Nas entrelinhas do Evangelho, somos surpreendidos pelas consequências, às quais, o filho mais novo passará. É a vida mergulhada na escolha pelo pecado: "Foi ele para um lugar distante. E ali esbanjou tudo numa vida desenfreada" (Ibidem).


A resolução de vivermos por nós mesmos conduz-nos a referida distância pela qual fora conduzido o pródigo. A distância é vista aqui como privação da graça de Deus, sem a qual, vivemos apenas da aparência. Nas terras longínquas, o filho viveu uma vida desmedida. Um prazer destruidor. É clarividente tamanha realidade quando escutamos de uns e outros a satisfação de si pelo possuir, por concentrar nos bens transitórios, as suas esperanças.


Abandonado na imundície da iniquidade, aquele filho, sente a necessidade de manter-se, porque a herança que lhe fora merecida foi arremessada ao lixo. Eis: vai trabalhar cuidando dos porcos! Para a mentalidade cultural-religiosa do crente judeu, o porco é tido como um animal impuro: "(...) servir aos porcos é então a expressão da extrema alienação e da extrema miséria do homem. O totalmente livre tornou-se um escravo miserável" (cf. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à Transfiguração, p. 181) E esta a condição imersa quando decidimos abdicarmo-nos de Deus: somos, ligeiramente, conduzidos para cuidar dos porcos, ou seja, rastejamos, mendigamos, maculamos a suma dignidade da humanidade que, em Jesus Cristo, atingiu o seu máximo!


O pródigo cai por terra na situação de penúria. Nalguma daquela situação poderia suprir as suas necessidades. .Logo é acometido pelo exame de consciência. A má liberdade só não rouba a consciência doutrem: "Quantos empregados do meu pai tem pão com fartura, e eu aqui, morrendo de fome. Vou-me embora, vou voltar para meu pai e dizer-lhe: Pai, pequei contra Deus e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho. Trata-me como a um dos teus empregados" (Ibidem).  O sinal da consciência é perlustrar as atitudes, as decisões, desta maneira, reconhecemos as nossas transgressões ferindo a aliança que Deus, conosco, estabelecera.
  

A resolução em regressar para o Pai é o processo de 'metanoia', converter-se da antiga forma de perceber-se e decidir. "Vou voltar para o meu Pai".  O gesto soberano do Pai sinaliza a própria misericórdia, cuja personificação é o Filho de Deus, como nos exorta o Papa Bento XVI, citando Santo Irineu de Lião: "O braço do Pai é o Filho". E assegura o Papa: "quando Ele coloca esse braço nos nossos ombros como o 'seu doce jugo'; então não é nenhum peso nos carregar, mas sim um gesto de amorosa aceitação" (cf. Jesus de Nazaré: primeira parte: do batismo no Jordão à Transfiguração, p. 183).


Em Cristo, o Verbo encarnado, crucificado e ressuscitado a face misericordiosa de Deus atinge a plenitude da perfeita caridade porque Ele, "Deus de Deus" aniquila-se ao homem e abraça-o! Na verdade, é na ara da Cruz que o Senhor com os seus braços abertos, elevados, acolhe os pródigos desde à desobediência de Adão.


Que acolhida permeada de "hesed", ou seja, de profunda bondade, na qual, enxergamos a misericórdia! "'Trazei depressa a melhor túnica para vestir meu filho.  E colocai um  anel no seu dedo e sandálias nos pés. Trazei um novilho gordo e matai-o. Vamos fazer um banquete. Porque este meu filho estava morto e tornou a viver; estava perdido e foi encontrado'. E começaram a festa'". Eis: o filho transviado recobrou a dignidade perdida pelo pecado. Esse festim é o caudaloso manancial da salvação presente realmente nos sacramentos, sobretudo, aqui, trata-se da Penitência e da Eucaristia.  A túnica e  o anel posto no dedo nos recorda a reconciliação operada e o banquete é o mistério sacrossanto da Sagrada Eucaristia, banquete sacrifical, no qual a Vítima é o Cordeiro Pascal, pelo qual exultantes ficamos.


Que a celebração deste Quarto Domingo da Quaresma, Laetare, seja-nos propício a robustecermos a alegria da nossa profissão de fé em Cristo morto e ressuscitado, para, no dia último, tomarmos parte da Páscoa eterna, a perene alegria. Ao Filho de Deus, o primogênito de entre os mortos, a sabedoria, a adoração e a reverência pelos séculos infindos. Amém!

segunda-feira, 4 de março de 2013

“CREIO EM DEUS, CRIADOR DO CÉU E DA TERRA...” (PARTE II)




Na primeira parte de nossa redação, tratávamos acerca da criatura angélica. Hoje, como nos propusemos anteriormente, falaremos sobre a criatura humana. Para tanto, cremos que seja interessante fazermos desde já uma citação bíblica que nos norteará, aguçando o nosso tino de fé. Assim, com o salmista, questionamo-nos: “Quid est homo, quod memor es eius, aut filius hominis, quoniam visitas eum?” – Que é o homem, digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles?” (Sl 8,5).
            Com a sua ação criadora, Deus cunha o homem e o dota de uma nobreza inigualável a nenhuma criatura da terra: “Faciamus hominem ad imaginem et similitudinem nostram; et praesint piscibus maris et volatilibus caeli et bestiis universaeque terrae omnique reptili, quod movetur in terra” – Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra (Gn 1,26); e ainda, no Salmo 8: “Minuisti eum paulo minus ab angelis, gloria et honore coronasti eum et constituisti eum super opera manuum tuarum. Omnia subiecisti sub pedibus eius” – Entretanto, vós o fizestes quase igual aos anjos, de glória e honra o coroastes. Destes-lhe poder sobre as obras de vossas mãos, vós lhe submetestes todo o universo (Sl 8,6-7).
Mesmo possuidor de um corpo, cujo arquétipo fisiológico é único, o homem é também constituído de uma alma animal, que lhe faz um ser vivo, tal como as feras, as aves e os demais componentes do reino animália, mas também de uma alma espiritual, parte mais sublime do seu ser, porque é substância espiritual, detentora de inteligência e de vontade, capaz de conhecer a Deus e de O possuir eternamente. E toda esta realidade transcendental por conta da racionalidade que lhe é característica. Não se pode ver nem apalpar a alma, porque é espírito. Porém, esta realidade espiritual é imortal, ao contrário da corporal.
O homem, dotado de transcendentalidade, e, por conta desta, de racionalidade, é livre em todas as suas ações, em suas escolhas, inclusive para não optar por Deus, o que se constitui uma tremenda negação ao Ser Supremo, Absoluto, Doador de Vida, o que sintetizamos na palavra ‘soberba’ ante Deus, ao tempo em que contribuímos, portanto, para a desarmonia e desordem causadas pelo ato de pecar. Única criatura terrena capaz de amar Deus – ou como denominara Santo Agostinho “capax Dei”[1] (capaz de Deus), o homem é chamado a experimentar a infinita grandeza do Altíssimo. Igualmente por isto é que se reforça a ideia afirmada pelo Gênesis de que o homem foi criado à Sua imagem e semelhança. 
Ao fazer o homem, representado nas Sagradas Escrituras pelas figuras de Adão (etimologicamente, o que é proveniente do barro) e Eva (“mãe de todos viventes” – Gn 3,20), Deus o coloca no estado de inocência e de graça, não obstante a rapidez com que ele perde, pelo pecado, tal condição originária, atraindo para si, junto com o pecado, a morte.  Além da inocência e da graça santificante, Deus concedeu aos nossos primeiros pais, Adão e Eva, e a partir deles, outros dons que eles deveriam transmitir, juntamente com a graça santificante, aos seus descendentes: a integridade, isto é, a perfeita sujeição dos sentidos à razão; a imunidade de todas as dores e misérias; e a ciência proporcionada ao seu estado; e, como já dissemos anteriormente a imortalidade, pois “Stipendia enim peccati mors” – O preço do pecado é a morte (Rm 6,23).
Todo o pecado cometido por nós parte da soberba, tal como prefigura a desobediência de Adão, também proveniente de sua presunção: “Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo, aperientur oculi vestri, et eritis sicut Deus scientes bonum et malum. Vidit igitur mulier quod bonum esset lignum ad vescendum et pulchrum oculis et desiderabile esset lignum ad intellegendum; et tulit de fructu illius et comedit deditque etiam viro suo secum, qui comedit” – Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente (Gn 3,5-6).
E qual a consequência de tudo isto? Adão e Eva, bem como toda a sua descendência, perderam a graça de Deus e o direito que tinham ao céu, foram expulsos do Paraíso Terrestre, sujeitos a muitas misérias na alma e no corpo, e condenados a morrer (cf. Gn 3).
            Diante do que, sinteticamente, já foi apresentado por nós, principalmente no tocante a esta última afirmativa, poderemos, levados pelo anseio investigativo da fé, indagarmos: Se Adão e Eva não tivessem pecado, ficariam livres da morte? A Sã Doutrina responder-nos-á: “Se Adão e Eva não tivessem pecado, mas se tivessem conservado fiéis a Deus, depois de uma permanência feliz e tranquila neste mundo, teriam sido levados por Deus ao Céu, sem morrer, a gozar uma vida eterna e gloriosa” (Terceiro Catecismo Romano, 60). Se o homem não tivesse pecado, ou seja, tivesse permanecido fiel a Deus pela obediência, estas benesses originárias, inclusive a da vida eterna e gloriosa, dar-se-iam pelo beneplácito divino e não por seus próprios méritos e esforços, sendo por isso gratuitas e preternaturais.
Muito embora, o primeiro pecado tenha sido cometido por Adão, porque todo pecado é pessoal, esta má escolha, fruto de sua vontade, resultou em desgraça para toda a humanidade: “Sicut enim per inoboedientiam unius hominis peccatores constituti sunt multi...” – Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores... (Rm 5,19); e ainda: “Propterea, sicut per unum hominem peccatum in hunc mundum intravit, et per peccatum mors, et ita in omnes homines mors pertransiit, eo quod omnes peccaverunt” – Por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram (Rm 5,12), tendo em vista que a santidade originária que habitava em Adão também seria transmitida a toda a humanidade. É nosso porque, tendo Adão pecado como cabeça e fonte de todo o gênero humano, é transmitido por geração natural a todos os seus descendentes, e por isso para nós é pecado original. Por pecado original, o Catecismo da Igreja Católica definirá: “É um pecado que vai ser transmitido a toda a humanidade por propagação, quer dizer, pela transmissão duma natureza humana privada da santidade e justiça originais. E é por isso que o pecado original se chama ‘pecado’ por analogia: é um pecado ‘contraído’ e não ‘cometido’; um estado, não um ato. Embora próprio de cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão, caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e justiça originais, mas a natureza humana não se encontra totalmente corrompida: está ferida nas suas próprias forças naturais, sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao império da morte, e inclinada ao pecado (inclinação para o mal, que se chama concupiscência). O Batismo, ao conferir a vida da graça de Cristo, apaga o pecado original e reorienta o homem para Deus, mas as consequências para a natureza, enfraquecida e inclinada para o mal, persistem no homem e convidam-no ao combate espiritual” (CIC 404-405).
A Doutrina Católica afirma que todos os homens (exceto a Virgem Maria que foi reservada sem pecado pelos méritos e em vista da encarnação do Filho de Deus)  nascem manchados com o pecado original, e, por este, a natureza humana tornou-se rebelde a Deus, e, por isto, inclinada ao mal. Assim, de pai para filho, junto com a essência humana, há uma transmissão do pecado original. Não que o pecado seja genuinamente inerente ao homem e à sua ontologia, mas foi-lhe adicionada. Destarte, pecar não é humano, mas é uma ‘anomalia’ do espírito do homem, já que o mal, por não ter sido querido por Deus, invadiu a Sua obra criadora, inclusive o homem pelo mesmo homem, perturbando-a.
Após o seu pecado, a porta do Paraíso Terrestre foi fechada ao homem, que foi expulso da feliz existência nesta terra, que se tornou, um ‘vale de lágrimas’ (cf. Gn 3,23-24). O homem perde a expectativa de vida, não poderia salvar-se. No entanto, por muito querer o que criara, a obra-prima de seu amor, Deus nunca abandonou o gênero humano, muito embora a infidelidade do homem para com Ele; Deus não nos esquece à nossa própria sorte. Em Sua misericórdia infinda, prometeu, de imediato, a Adão um Redentor divino (cf. Gn 3,15), enviando-o na ‘plenitude dos tempos’ (cf. Gl 4,4) para libertar os homens da escravidão do demônio e do pecado. Este Salvador do gênero humano é Jesus Cristo, o ‘Novo Adão’, como o designara São Paulo (cf. 1Cor 15,45).
Queridos irmãos, com estas considerações acerca do homem, encerramos a nossa sintética ‘catequese’, neste Ano da Fé, acerca do proto-artigo do nosso Credo: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”. Em nosso próximo encontro iniciaremos a nossa reflexão acerca do segundo e do terceiro artigos desta mesma Profissio Fidei: “Creio em Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo”. Esperamos que estes nossos encontros, embora breves e um tanto pobres por serem superficiais, estejam sendo uma ocasião propícia para um maior despertar e enraizar da nossa adesão a Deus pela Igreja, pelo que ela, Sua Esposa fiel, piamente acredita e ensina. Que o Espírito Santo nos auxilie com os seus sete dons!    


[1] "A mente é a imagem de Deus, na medida em que é capaz de ele e pode ser também participante dele". Santo Agostinho, De Trinitate, XIV: 8.