Na
primeira parte de nossa redação, tratávamos acerca da criatura angélica. Hoje,
como nos propusemos anteriormente, falaremos sobre a criatura humana. Para
tanto, cremos que seja interessante fazermos desde já uma citação bíblica que
nos norteará, aguçando o nosso tino de fé. Assim, com o salmista,
questionamo-nos: “Quid est homo, quod
memor es eius, aut filius hominis, quoniam visitas eum?” – Que é o homem,
digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos
ocupeis com eles?” (Sl 8,5).
Com
a sua ação criadora, Deus cunha o homem e o dota de uma nobreza inigualável a
nenhuma criatura da terra: “Faciamus
hominem ad imaginem et similitudinem nostram; et praesint piscibus maris et
volatilibus caeli et bestiis universaeque terrae omnique reptili, quod movetur
in terra” – Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine
sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e
sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastem sobre a terra (Gn
1,26); e ainda, no Salmo 8: “Minuisti eum
paulo minus ab angelis, gloria et honore coronasti eum et constituisti eum
super opera manuum tuarum. Omnia subiecisti sub pedibus eius” – Entretanto,
vós o fizestes quase igual aos anjos, de glória e honra o coroastes. Destes-lhe
poder sobre as obras de vossas mãos, vós lhe submetestes todo o universo (Sl
8,6-7).
Mesmo
possuidor de um corpo, cujo arquétipo fisiológico é único, o homem é também
constituído de uma alma animal, que lhe faz um ser vivo, tal como as feras, as
aves e os demais componentes do reino animália, mas também de uma alma
espiritual, parte mais sublime do seu ser, porque é substância espiritual,
detentora de inteligência e de vontade, capaz de conhecer a Deus e de O possuir
eternamente. E toda esta realidade transcendental por conta da racionalidade
que lhe é característica. Não se pode ver nem apalpar a alma, porque é
espírito. Porém, esta realidade espiritual é imortal, ao contrário da corporal.
O
homem, dotado de transcendentalidade, e, por conta desta, de racionalidade, é
livre em todas as suas ações, em suas escolhas, inclusive para não optar por
Deus, o que se constitui uma tremenda negação ao Ser Supremo, Absoluto, Doador
de Vida, o que sintetizamos na palavra ‘soberba’ ante Deus, ao tempo em que
contribuímos, portanto, para a desarmonia e desordem causadas pelo ato de pecar.
Única criatura terrena capaz de amar Deus – ou como denominara Santo Agostinho “capax Dei”[1]
(capaz de Deus), o homem é chamado a experimentar a infinita grandeza do
Altíssimo. Igualmente por isto é que se reforça a ideia afirmada pelo Gênesis
de que o homem foi criado à Sua imagem e semelhança.
Ao
fazer o homem, representado nas Sagradas Escrituras pelas figuras de Adão
(etimologicamente, o que é proveniente do barro) e Eva (“mãe de todos viventes”
– Gn 3,20), Deus o coloca no estado de inocência e de graça, não obstante a
rapidez com que ele perde, pelo pecado, tal condição originária, atraindo para
si, junto com o pecado, a morte. Além da
inocência e da graça santificante, Deus concedeu aos nossos primeiros pais,
Adão e Eva, e a partir deles, outros dons que eles deveriam transmitir,
juntamente com a graça santificante, aos seus descendentes: a integridade, isto
é, a perfeita sujeição dos sentidos à razão; a imunidade de todas as dores e misérias;
e a ciência proporcionada ao seu estado; e, como já dissemos anteriormente a
imortalidade, pois “Stipendia enim
peccati mors” – O preço do pecado é a morte (Rm 6,23).
Todo
o pecado cometido por nós parte da soberba, tal como prefigura a desobediência
de Adão, também proveniente de sua presunção: “Scit enim Deus quod in quocumque die comederitis ex eo, aperientur
oculi vestri, et eritis sicut Deus scientes bonum et malum. Vidit igitur mulier
quod bonum esset lignum ad vescendum et pulchrum oculis et desiderabile esset
lignum ad intellegendum; et tulit de fructu illius et comedit deditque etiam
viro suo secum, qui comedit” – Mas Deus bem sabe que, no dia em que dele
comerdes, vossos olhos se abrirão, e sereis como deuses, conhecedores do bem e
do mal. A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom para comer, de agradável
aspecto e mui apropriado para abrir a inteligência, tomou dele, comeu, e o
apresentou também ao seu marido, que comeu igualmente (Gn 3,5-6).
E
qual a consequência de tudo isto? Adão e Eva, bem como toda a sua descendência,
perderam a graça de Deus e o direito que tinham ao céu, foram expulsos do
Paraíso Terrestre, sujeitos a muitas misérias na alma e no corpo, e condenados
a morrer (cf. Gn 3).
Diante do que, sinteticamente, já
foi apresentado por nós, principalmente no tocante a esta última afirmativa,
poderemos, levados pelo anseio investigativo da fé, indagarmos: Se Adão e Eva
não tivessem pecado, ficariam livres da morte? A Sã Doutrina responder-nos-á: “Se
Adão e Eva não tivessem pecado, mas se tivessem conservado fiéis a Deus, depois
de uma permanência feliz e tranquila neste mundo, teriam sido levados por Deus ao
Céu, sem morrer, a gozar uma vida eterna e gloriosa” (Terceiro Catecismo
Romano, 60). Se o homem não tivesse pecado, ou seja, tivesse permanecido fiel a
Deus pela obediência, estas benesses originárias, inclusive a da vida eterna e
gloriosa, dar-se-iam pelo beneplácito divino e não por seus próprios méritos e
esforços, sendo por isso gratuitas e preternaturais.
Muito
embora, o primeiro pecado tenha sido cometido por Adão, porque todo pecado é
pessoal, esta má escolha, fruto de sua vontade, resultou em desgraça para toda
a humanidade: “Sicut enim per
inoboedientiam unius hominis peccatores constituti sunt multi...” – Assim como
pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores... (Rm
5,19); e ainda: “Propterea, sicut per
unum hominem peccatum in hunc mundum intravit, et per peccatum mors, et ita in
omnes homines mors pertransiit, eo quod omnes peccaverunt” – Por isso, como
por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte
passou a todo o gênero humano, porque todos pecaram (Rm 5,12), tendo em vista
que a santidade originária que habitava em Adão também seria transmitida a toda
a humanidade. É nosso porque, tendo Adão pecado como cabeça e fonte de todo o
gênero humano, é transmitido por geração natural a todos os seus descendentes,
e por isso para nós é pecado original. Por pecado original, o Catecismo da
Igreja Católica definirá: “É um pecado que vai ser
transmitido a toda a humanidade por propagação, quer dizer, pela transmissão
duma natureza humana privada da santidade e justiça originais. E é por isso que
o pecado original se chama ‘pecado’ por analogia: é um pecado ‘contraído’ e não
‘cometido’; um estado, não um ato. Embora
próprio de cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão,
caráter de falta pessoal. É a privação da santidade e justiça originais, mas a
natureza humana não se encontra totalmente corrompida: está ferida nas suas
próprias forças naturais, sujeita à ignorância, ao sofrimento e ao império da
morte, e inclinada ao pecado (inclinação para o mal, que se chama concupiscência). O Batismo, ao conferir a vida da graça
de Cristo, apaga o pecado original e reorienta o homem para Deus, mas as
consequências para a natureza, enfraquecida e inclinada para o mal, persistem
no homem e convidam-no ao combate espiritual” (CIC 404-405).
A
Doutrina Católica afirma que todos os homens (exceto a Virgem Maria que foi
reservada sem pecado pelos méritos e em vista da encarnação do Filho de Deus) nascem manchados com o pecado original, e, por
este, a natureza humana tornou-se rebelde a Deus, e, por isto, inclinada ao
mal. Assim, de pai para filho, junto com a essência humana, há uma transmissão
do pecado original. Não que o pecado seja genuinamente inerente ao homem e à
sua ontologia, mas foi-lhe adicionada. Destarte, pecar não é humano, mas é uma
‘anomalia’ do espírito do homem, já que o mal, por não ter sido querido por
Deus, invadiu a Sua obra criadora, inclusive o homem pelo mesmo homem,
perturbando-a.
Após
o seu pecado, a porta do Paraíso Terrestre foi fechada ao homem, que foi
expulso da feliz existência nesta terra, que se tornou, um ‘vale de lágrimas’
(cf. Gn 3,23-24). O homem perde a expectativa de vida, não poderia salvar-se.
No entanto, por muito querer o que criara, a obra-prima de seu amor, Deus nunca
abandonou o gênero humano, muito embora a infidelidade do homem para com Ele;
Deus não nos esquece à nossa própria sorte. Em Sua misericórdia infinda,
prometeu, de imediato, a Adão um Redentor divino (cf. Gn 3,15), enviando-o na ‘plenitude
dos tempos’ (cf. Gl 4,4) para libertar os homens da escravidão do demônio e do
pecado. Este Salvador do gênero humano é Jesus Cristo, o ‘Novo Adão’, como o
designara São Paulo (cf. 1Cor 15,45).
Queridos
irmãos, com estas considerações acerca do homem, encerramos a nossa sintética
‘catequese’, neste Ano da Fé, acerca do proto-artigo do nosso Credo: “Creio em
Deus Pai Todo-Poderoso, Criador do céu e da terra”. Em nosso próximo encontro
iniciaremos a nossa reflexão acerca do segundo e do terceiro artigos desta
mesma Profissio Fidei: “Creio em
Jesus Cristo, seu único Filho, nosso Senhor, que foi concebido pelo poder do
Espírito Santo”. Esperamos que estes nossos encontros, embora breves e um tanto
pobres por serem superficiais, estejam sendo uma ocasião propícia para um maior
despertar e enraizar da nossa adesão a Deus pela Igreja, pelo que ela, Sua
Esposa fiel, piamente acredita e ensina. Que o Espírito Santo nos auxilie com
os seus sete dons!
[1] "A
mente é a imagem de Deus, na medida em que é capaz de ele e pode ser
também participante dele". Santo Agostinho, De Trinitate, XIV: 8.
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