quarta-feira, 27 de março de 2013

SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO DO SENHOR


(29 de março de 2013)


I Leitura: Is 52, 13-53,12
Salmo Responsorial: Sl 30, 2.6;12-13;15-16;17.25
II Leitura: Hb 4, 14-16; 5,7-9
Evangelho: Jo 18, 1-19,42


“Ele foi ferido por causa de nossos pecados, esmagado por causa de nossos crimes; a punição a ele imposta era o preço da nossa paz, e suas feridas, o preço da nossa cura” (Is 53, 5).

Com este sentimento trazido pelo profeta Isaías no cântico do Servo Sofredor, é que relembramos e revivemos este dia em que Jesus nos salva, dando-nos uma nova vida, abrindo para nós os portais do seu Reino. É pelo Cordeiro estirado na Ara do madeiro da Cruz, sacrifício perfeito, que o Senhor nos oferece o penhor da nossa salvação. Os sacrifícios judeus, até então oferecidos como recordação de uma aliança já defasada e figurativa, perde o seu ínfimo valor. Eis que o Cristo, Filho de Deus, se oferece: ele é o sacrifício por excelência. O Seu sangue substitui de maneira plena e eficaz o que antes era representado pela sangria de animais. O que não tinha pecado, assim o fez por nós, entregando-se a morte, sendo-nos infindavelmente propício e benevolente.
Eis que estamos diante do escandaloso e sublime mistério da cruz. Desfigurado, ensanguentado, posteriormente inanimado, vendo o Senhor, calamo-nos, extasiados, emocionados. São Josemaría Escrivá, em uma de suas homilias, afirma: “Convém que meditemos naquilo que nos revela a morte de Cristo, sem ficarmos nas formas estereotipadas. É necessário que nos metamos de verdade nas cenas que vivemos durante estes dias da Semana Santa: a dor de Jesus, as lágrimas de sua Mãe, a debandada dos discípulos, a fortaleza das santas mulheres, a audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor. Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume do Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar o recolhimento interior que é sinal de maturidade cristã. Os acontecimentos, divinos e humanos, da Paixão penetrarão desta forma na alma como palavra que Deus nos dirige para desvelar os segredos do nosso coração e revelar-nos aquilo que esperava das nossas vidas”.
Vamos refletir as sete palavras que Jesus pronunciou na cruz. Mesmo sofrendo e agonizando, o Verbo encarnado cumpre até o fim as Escrituras e nos dá um grande exemplo de obediência à vontade do Pai.
No primeiro brado do Senhor, temos: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34) – Com esta sua exclamação, o Salvador do gênero humano dá-nos um extremo exemplo de perdão. São João Crisóstomo, meditando esta atitude, afirma: “Como o Senhor disse, rogai pelos que perseguem, o levou à prática quando subiu à cruz. Por isto, dizia: ‘Pai, perdoa-lhes’. Não porque Ele não podia perdoar, mas para ensinar-nos a rogar pelos que nos perseguem, não somente com a palavra, mas também com a obra”. A oração de Jesus leva a sério a lei dos setenta vezes sete.
Na segunda fala de Jesus em seu madeiro – “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23, 43) – vemos que o Senhor promete ao “bom ladrão” o Paraíso, o céu, sua morada eternal. O Cristo não fecha a sua graça àqueles que fizeram coisas más, mas que, num processo de conversão, ainda que seja no final de suas vidas, se abriram a ação de Deus. “Quem teria instruído o ladrão em mistérios tão profundos? Chama Senhor a esse homem a quem percebe desnudo, ferido, desgraçado, insultado, depreciado e pendido em uma cruz ao seu lado, este mesmo que diz que, após a sua morte, quereria entrar no seu Reino. Assim podemos aprender que o ladrão não pensou o reino de Cristo como temporal, como o imaginaram os judeus, mas que depois da sua morte seria Rei para sempre no céu. Quem foi o seu instrutor em segredos tão sagrados e sublimes? Ninguém, por certo, a menos que seja o Espírito da Verdade, que o esperava com as Suas mais doces bênçãos” (São Roberto Belarmino). Assim, percebemos que, mesmo sendo pecadores, se reconhecemos o Cristo como Senhor e o professamos, arrependendo-nos dos crimes outrora cometidos, as portas do Paraíso não nos serão fechadas. Isso é para nós a expectativa da bem-aventurança eterna. Se o antigo paraíso, prefiguração do verdadeiro, foi-nos fechado pelo pecado da desobediência de Adão, as portas do autêntico Paraíso, da morada de Deus, são-nos abertas pelo Cristo pendente no lenho da cruz, o Novo Adão: "Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão". (1Cor 15,22).
Às vezes, formamos uma falsa ideia deste ‘bom ladrão’. Pensamos diversas coisas sobre a sua vida, as quais muitas vezes não condizem com a realidade. Ponderamos sobre os possíveis crimes que ele tenha cometido para chegar ao ápice da cruenta e extenuante morte de cruz, a pior e mais desumana das penas de morte existentes na época. Porém, no fundo, muitos dos nossos pecados são superiores aos que ele, possivelmente, tenha cometido. Sabemos que ele é ladrão. Não porque tenha usurpado algo de outrem, mas porque até na última hora adquiriu o céu. Olhando para ele, temos a certeza que, para nós também, o céu é-nos aberto.
Um terceiro grito é ouvido da cruz e que ressoa doravante os séculos: “Mulher, eis o teu filho; filho, eis a tua mãe” (Jo 19, 26-27). Não achando suficiente a sua morte na cruz para a nossa salvação, ter-nos dado a Eucaristia, perpetuação do seu sacrifício redentor, Jesus oferece-nos a sua Mãe. Imaginemos, pois, Jesus sem forças, na agonia, dizendo esta belíssima frase. Meditemos acerca da dor de Maria, a Virgem das Dores, aos pés da cruz, vendo o seu filho morrer. Mergulhemos no coração de Maria, a Senhora aos pés da cruz, marcada em um misto de dor e de fé em ver o seu amado Jesus, seu Filho e Filho de Deus, em situação tão crítica. Com esta palavra do Senhor da cruz, igualmente somos convidados a olhar João, o Discípulo Amado, que, ao escutar tão grande expressão, foi invadido pela surpresa de que ele haveria de ser o guarda da Santíssima Virgem Mãe de Deus; que foi surpreendido pelo papel a ele reservado pelo Senhor: o de representar toda a humanidade que, a partir daquela hora de agonia, era patrocinado pela Virgem Maria.
Na quarta expressão de Jesus no alto de seu lenho, temos: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? – Eli, Eli, lamá sabactâni?” (Mt 27, 46; Mc 15, 34) – Jesus, em agonia, reza. Este trecho “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é o início do salmo 21. Dor e oração, eis as expressões do Cristo. A crucificação de Jesus coaduna toda a Escritura em si; Jesus encarna a salmodia, as profecias, as Escrituras. Neste sentido, São João Crisóstomo afirmará: “Portanto falou com as palavras do profeta, dando assim testemunho do Antigo Testamento até a última hora; e para que vejam como honra a seu Pai e que não o contraria. Por isso falou em hebraico, para que todos entendessem o que dizia” (Homiliae in Matthaeum, hom. 88,1). Também poderíamos entender tal exclamação do Salvador com outro sentido que não diverge do primeiro, antes, está em íntima consonância. Jesus Verdadeiro Deus e Verdadeiro Homem, ao fazer-se pecado por nós, sente-se como que abandonado pelo Pai. Pode parecer até uma situação paradoxal: “Deus abandonou o seu Filho? Deus se abandona?”. As sombras tenebrosas que cobriam a terra naquele instante testemunhavam o abandono de Deus, ao tempo em que o representa. E Orígenes reflete: “Devemos perguntar-nos: O que se entende quando se diz que Jesus Cristo é abandonado por Deus? Alguns, na insuficiência de explicar, dizem que Jesus a diz por humildade. Porém, claramente, se poderia entender que disse fazendo uma comparação de sua glória, a mesma que tinha junto do Pai, e a turbação que padeceu desprezado na cruz. Depois que viu o Salvador que as trevas se tinham estendido por toda a Judeia, disse estas palavras dando a entender que o Pai o havia abandonado. Isto é, que o havia entregado quando ele já não tinha forças, a tantas calamidades, para aquele povo que tinha sido tão honrado pelo Pai, recebera o que merecia, pelo que se atreveu a fazer com Ele. Isto é, que ficasse privado da luz de sua proteção, já que Ele foi abandonado para a salvação das gentes. Que mérito adquiriram os que creram entre os gentios para que merecessem ser comprados do poder do inimigo pelo sangue precioso de Jesus Cristo derramado sobre a terra? O que haviam de fazer os homem adiante, para serem dignos de que Jesus padecesse por eles toda classe de tormentos? Acaso, vendo os pecados dos homens por quem sofria, disse: Por que me tens abandonado? Para que parecesse àquele que colhe restolhos na ceifa ou cachos na vindima? Não creias que o Salvador disse essas coisas  como costumam dizê-las os homem quando experimentam sofrimentos como Ele padecia na cruz. Porque se o crês neste sentido, não ouvirás a sua grande voz, a que manifesta que algo grande se encerra nela” (In Matthaeum, 35).
O “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” é oração, não de desespero, mas de certeza jubilosa do triunfo final, como alude mais adiante o mesmo Salmo 21, 20: “Porém, vós, Senhor, não vos afasteis de mim; ó meu auxílio, bem depressa me ajudai” (Sl 21,20). Diante da extremada situação vivenciada no Calvário, sentindo-se abandonado por Deus e por seus amigos, sentindo o peso dos nossos pecados sobre si, o Filho não perde a confiança em seu Pai.
“Tenho sede!” (Jo 19, 28), eis a quinta fala do Cordeiro Imaculado. Obedecendo as Escrituras, Jesus sente sede. O suor, o sangue perdido, a poeira, a dor… tudo leva a “Fonte de Água Viva” (cf. Jo 4, 10) a reclamar estar sedento. Que espécie de sede é esta que Jesus sentira? Seria sede física apenas? Ou sede de Deus; ou por almas; ou mesma causada pela humilhação, pelos incontáveis opróbrios que sofreu?
No versículo 34 deste mesmo Evangelho, vemos o soldado romano traspassar-lhe o lado. E, do peito aberto de Jesus, sai sangue e água. A água que purifica é a mesma água do batismo; é a mesma água que sai do seu lado, símbolo dos sacramentos.
Eis que lhe oferecem por bebida o vinagre, o fel. Neste sentido, afirma-nos Santo Agostinho: “Padecia tudo isso o que aparecia homem, e o dispunha tudo o que se ocultava Deus. Por isso diz: ‘Depois, sabendo que tudo se havia consumado, a fim de que se cumprissem as Escrituras’, isto é, o que havia predito a Escritura: ‘E, em minha sede, ofereceram-me vinagre’ (Sl 68, 22), disse: ‘Tenho sede’, como se dissesse: Isto falta fazer, dai o que sois. Como que os judeus eram o vinagre, degenerado do vinho dos patriarcas e profetas. Havia, pois, ali, um vaso cheio de vinagre, como um coração cheio de iniquidade deste mundo, a maneira de esponja, cheia de cavernosas e enganosas tortuosidades. E segue: ‘E eles, colocando uma esponja empapada em vinagre sustentado por um hissopo, aplicaram em sua boca’” (In Ioannem, tract., 119).
Na sexta declaração do Crucificado, temos o imperativo “Tudo está consumado!” (Jo 19, 30). Assim com autoridade de um Verdadeiro Rei, Jesus declara acabada a sua missão de Redentor, obra que o Pai lhe confiara e que Ele prontamente abraça: “Tunc dixi ecce venio in capite libri scriptum est de me ut facerem voluntatem tuam Deus meus volui et legem tuam in medio cordis mei” -  Então eu disse: Eis que eu venho. No rolo do livro está escrito de mim: fazer vossa vontade, meu Deus, é o que me agrada, porque vossa lei está no íntimo de meu coração (Salmos 139, 8-9); ou ainda, como alude São João no seu Evangelho: “Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste mundo ao Pai, como amasse os seus que estavam no mundo, até o extremo os amou” (Jo 13,1). O Cristo morre amando. A Palavra do Pai que tudo criou por meio dela ao dizer “Fiat – Faça-se”, melhor do que ninguém cumpre a sua missão, e, por isso, morre amando; ama até a consumação da sua vida. Por isso, diz: “Tudo está consumado”, pois, além do amor perfeitamente cumprido, o Cordeiro de Deus leva a feito tudo o que as Escrituras afirmam acerca de si. Ele, no escândalo da cruz, como ovelha diante do tosquiador não abriu a boca, mas o pouco que falou foi para que toda a Escritura se cumprisse. Por este motivo serem sete as exclamações do Senhor na cruz. Sete na Bíblia é a conta da perfeição: Jesus, até a consumação, foi perfeito, inclusive nas suas ditosas palavras dirigidas ao Pai, dirigidas aos que estavam presentes, dirigidas a nós.
Por fim, caríssimos irmãos, chegamos a sétima e última das benditas palavras pronunciadas pelo Cristo em sua cruz: “Pai, em tuas mãos, eu entrego o meu espírito” (Lc 23, 46). O Senhor reza, pronunciando, em agonia de morte, o salmo 30, 6. Interessante notarmos que o Filho de Deus encerra o setenário de suas palavras da mesma forma que iniciou: clamando pelo Pai, dirigindo-se a Ele. Se no primeiro brado de Jesus tivemos: “Pai, perdoa-lhes, eles não sabem o que fazem” (Lc 23, 34), agora temos o grande grito “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito” (v. 46), tal como, costumeiramente, fazia em suas orações, chamando Deus de Pai, fazendo jus à sua filiação.
Aquele que veio do Pai para Ele retorna. Nesta Hora, a missão de Jesus se encerra definitivamente. Jesus morre, é certo, mas não é o fim. A morte de Cristo é a sua libertação nas mãos de Deus, por quem foi enviado, da parte de quem veio. É também a nossa libertação, pois com a sua obediência “até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,8), rompe os grilhões da nossa escravidão com o poder do pecado e da morte. Jesus desce à mansão dos mortos, tal com o afirmamos no Credo; lá há de libertar os justos que também precisavam de salvação: Moisés, Abraão, os patriarcas e profetas. Entregando-se ao Pai, o Cristo declara a sua confiança em Deus, seu Pai.
O Senhor Jesus Cristo é rei, seu trono é a cruz: é rei pela Santa Cruz. Assim como, prefigurativamente, Moisés levantou a serpente de bronze no deserto, curando os que eram feridos pelas serpentes, quando estes olhavam para a estátua erguida em uma vara, o Cristo, estendido na haste cruz e desfalecido, é remédio de vida para a humanidade morta pelo pecado. Por isto, dizemos: ‘Bendita e louvada seja a Paixão e Morte de Jesus Cristo, nosso Senhor. Que quis padecer e morrer na cruz por nosso amor!’   

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