(Ano B – 04 de março de 2012)
I Leitura: Gn
22,1-2.9a.10-13.15-18
Salmo Responsorial:
Sl 115 (116B),10.15.16-17.18-19 (R/. Sl 114,9)
II Leitura: Rm 8,
31b-34
Evangelho: Mc 9,2-10
(Transfiguração)
Queridos irmãos,
À medida que adentramos no Tempo
da Quaresma, rumo à Páscoa do Senhor, somos convidados pela Sagrada Liturgia a
nos inserirmos no mistério do ápice da vida de Jesus na terra, em meio aos
homens. Não podemos ficar imunes e estáticos diante da grandiosa profundidade
que a nossa Redenção comporta, pois ela é a Aliança irrevogável entre Deus e a
humanidade que, em Cristo, encontra-se restaurada. A transfiguração de Jesus
não é somente prenúncio da glória de sua Ressurreição, mas, através desta, da
libertação da angústia do Pecado, em cujas lamas estávamos mergulhados. Neste
sentido, a Antífona de Entrada, inspirada em um trecho salmódico, põe na boca
da comunidade reunida para a Celebração dos Divinos Mistérios uma súplica a
Deus: “Lembrai-vos Senhor, de vossa misericórdia e de vosso amor, pois são
eternos. Nossos inimigos não triunfem sobre nós: libertai-nos, ó Deus de toda a
angústia!” (Sl 24, 6.3.22).
A Liturgia deste Domingo, em
plena caminhada quaresmal, ao contemplar o Cristo que se transfigura e cujas
roupas adquirem uma brancura e brilho inenarráveis, prima pela pureza da
humanidade. E como chegaremos a tal meta? A Oração de Coleta, rogando a Deus
Pai, nos enceta na resposta: “Ó Deus que nos mandastes ouvir o vosso Filho
amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o
olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão de vossa glória”. É pela audição
atenta a Jesus, o Verbo eterno de Deus, que nos purificamos. É o mesmo Jesus
que, não somente ao leproso de uma cidade desconhecida por nós da região da
Galileia como também a nós, nos diz: “Eu quero; sê limpo!” (Mt 8, 3; Mc 1, 41;
Lc 5, 13), e é esta limpeza do olhar da fé: fazendo a vontade de Deus
incondicionalmente é que nós alcançaremos o Céu de Deus; é com o olhar da fé
imaculado que seremos aptos à contemplação de Deus, Suma Pureza, tal como
Pedro, Tiago e João contemplaram em prefiguração a glória de Deus.
As Leituras meditadas nesta
celebração fazem-nos recordar o dom de Deus no Filho para a Nova Aliança.
Assim, na Primeira Leitura, Isaac (e, neste texto, não somente ele) é
prefiguração de Jesus enquanto Abraão figura o Pai. Somos sabedores da história
de Abraão, de sua fé e obediência. Sabemos ainda da promessa que Deus fizera: “Levanta
os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz... Pois bem, assim será
a tua descendência” (Gn 15,5). Logo, o unigênito de Abraão era potencial de um
povo. Mas como, se na Primeira Leitura de hoje temos o Senhor que, chamando
Abraão, quer fazer com ele uma aliança selada com o sangue de Isaac, seu único
rebento. Percebamos a fala de Deus: “Toma teu filho único, Isaac, a quem tanto
amas, dirige-te à terra de Moriá, e oferece-o aí em holocausto sobre um monte
que eu te indicar”. ‘A quem tanto amas’, é com este termo que Deus refere-se a
Isaac. A perícope não contempla, mas o texto do Gênesis, afirma que “Abraão
tomou a lenha do holocausto e a pôs aos ombros de seu filho Isaac” (Gn 22, 6) e
Isaac foi atado e posto sobre a lenha. Depois, temos o silêncio do filho de
Abraão. E em Jesus, o que temos? Enquanto, na Primeira Leitura Isaac, figura do
Cristo, é conduzido ao monte por Abraão, Jesus, ao contrário, não é conduzido,
mas vai livremente a Jerusalém para sofrer, morrer e ressuscitar: Se Isaac,
silenciosamente, leva a lenha do seu sacrifício às costas, Jesus, sem nada
pronunciar, levará o lenho do seu sacrifício redentor. Assim sendo, se Isaac é
figura do Cristo, Abraão é representação de Deus Pai que, a partir da Cruz,
oferece o seu Filho “o amado” (cf. Mt 3, 17; 12, 18; 17, 4; Mc 1, 11; 9, 7; Lc
9, 35). Se Isaac iria ser sacrificado em Moriá, e 2Cr 3,1 identifica esta terra
com a que posteriormente se edificou o Templo de Jerusalém, também em uma
colina hierosolomitana Jesus entrega-se em sacrifício. Isaac, o amado de Abraão
não morre; Jesus, o Amado do Pai, entrega-se e dá a vida. Isaac iria ser
sacrificado como aliança que, embora não fosse eterna, iria abarcar toda uma
posteridade numerosa: os filhos de Abraão; Cristo foi sacrificado de uma vez
por todas como Aliança Nova e Perpétua para integrar em um só povo uma multidão
incomparável: os filhos de Deus. Isaac, enquanto sinal de Cristo, cessa aí. A
partir da interrupção do anjo ele não mais prefigura Jesus, mas há uma
transferência de figura, agora será o carneiro que, oferecido em holocausto no
lugar de Isaac, é sinal do Cristo, cujo sangue redimiu a humanidade,
aproximando-a, em Aliança irrevogável, a Deus.
No desfecho da passagem de hoje,
temos mais uma vez a promessa que Deus faz a Abraão. O interessante é notarmos:
“Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, por que me
obedeceste” (Gn 22, 18). Não é por Isaac que o Senhor abençoará, mas é Cristo
que, descendente de Abraão enquanto a carne (cf Mt 1), é sinal da bênção de
Deus, não somente para o povo judeu, mas para toda a humanidade representada
pelo termo “todas as nações da terra”.
Pelo mesmo caminho da Primeira
Leitura, a Carta de São Paulo aos Romanos, cujo trecho lemos na Segunda
Leitura, afirma-nos, só que em outras palavras, que a entrega de Cristo por
todos nós é prova inquestionável de que Deus está junto aos seus escolhidos,
somente ele nos justifica, e é por Jesus que somos presenteados com toda a
sorte de dádivas e bênçãos do céu: “Deus que não poupou seu próprio filho, mas
o entregou por todos nós, como não nos daria tudo junto com ele?”.
No Evangelho de hoje vemos São
Marcos que apresenta Jesus, após ter ineditamente anunciado aos discípulos a
sua Paixão, predizendo-a (“E começou a ensinar-lhes que era necessário que o
Filho do homem padecesse muito, fosse rejeitado pelos anciãos, pelos sumos
sacerdotes e pelos escribas, e fosse morto, mas ressuscitasse depois de três
dias” – Mc 8, 31), mostra-lhes o seu esplendor na montanha, já que os
discípulos ficaram atordoados. Neste sentido, o Papa Bento XVI, alude-nos que
“Jesus queria que os seus discípulos, em particular aqueles que teriam a
responsabilidade de guiar a Igreja nascente, fizessem uma experiência direta da
sua glória divina, para enfrentar o escândalo da cruz” (Ângelus, 8 de março de
2009). Folheando a Escritura Sagrada, sempre encontramos na montanha, nas
alturas geograficamente escarpadas, o lugar eminente da manifestação do poder
de Deus. Tal como o Calvário, o monte onde ocorreu a transfiguração é um exímio
local para uma epifania. Por que o Cristo transfigura-se? Para que os
discípulos antevejam que é a partir da sua Paixão na Cruz que será, como nunca
se viu, manifestada a glória de Deus.
O texto detalha a cena afirmando
que “suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre
a terra poderia alvejar” (Mc 9, 3). Mas o que significa isso, senão a descrição
de que a glória de Deus é pura e somente os puros em Cristo são nela inseridos.
Aqui, faz-nos recordar o que outrora refletíamos quando tecíamos um comentário
acerca da Oração de Coleta, ou mesmo na Oração Sobre as Oferendas: “Ó Deus, que
estas oferendas lavem os nossos pecados e nos santifiquem inteiramente para
celebrarmos a Páscoa”. ainda
comentando este dado da Transfiguração, Santo Agostinho afirma: “Isto se refere
à purificação da Igreja, da qual o Profeta disse: ‘Também se os vossos pecados
são escarlates como a púrpura, far-se-ão brancos como a neve (Is 1, 18)’”
(Sermo 791). Jesus transfigurado é sinal da entrega na Cruz, entrega para a
Aliança tão em voga na Liturgia deste domingo.
Diante da aparição de Moisés e Elias, cujas figuras
referem-se à Lei e aos Profetas, Jesus conversa. Isto para dizer que o
Evangelho de Cristo é superior à Lei e aos Profetas, ainda que seja cumprimento
dessas. No dizer de São Leão Magno, a Lei e os Profetas, “Tudo isto servia para
o testemunho nos tempos antigos e que se unifica com o ensinamento do
Evangelho! As páginas de uma e da outra Aliança, portanto, se confirmam
eventualmente, e aquele que os antigos símbolos haviam prometido sob o véu dos
mistérios, o fulgor da sua glória presente o mostra manifesto e certo: se é que
– como afirma João: “A lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade nos
vieram por Jesus Cristo (Jo 1, 17) -, no qual são unidas tanto as promessas das
figuras proféticas, tanto o significado dos preceitos da Lei; assim, com a sua
presença, ele ensina a verdade da profecia, e, com a sua graça, torna possível
a prática dos mandamentos (Sermo 38,
4).
Pedro, extasiado e com medo, sentimentos presentes também em
Tiago e João, toma a palavra e diz: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer
três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Este recorte,
na visão dos Padres da Igreja e dos exegetas, possui múltiplos significados,
desde o simplório entendimento de tenda como local de permanência e abrigo, até
como a falsa equiparação valorativa da Lei, dos Profetas e do Evangelho, e com
isso, de um judaísmo cristão. Mas, dando continuidade ao seu sermão, o Papa São
Leão I, esclarece-nos: “Animado pela revelação dos mistérios e preso ao
desprezo e ao desgosto das coisas terrenas, o Apóstolo Pedro era como que
raptado pelo desejo daquela visão de eternidade, e, cheio de gáudio, queria
habitar com Jesus onde a sua glória era manifestada, constituindo a sua
alegria. […] Mas o Senhor não responde a tal sugestão, com certeza não para
mostrar que aquele desejo era ruim, mas para significar que era fora de lugar,
não podendo o mundo ser salvo sem a morte de Cristo; assim, o exemplo do Senhor
invitava a fé do crente a compreender que, sem dúvida nenhuma, nos confrontos
da prometida felicidade, devemos, contudo, em meio às provas desta vida,
implorar a paciência antes da glória; a felicidade do Reino não pode preceder o
tempo do sofrimento”.
Queridos irmãos, enquanto não nos chega as maravilhas da
eterna bem-aventurança da Glória de Deus, realização plena das promessas que a
Nova e Eterna Aliança nos embute, sigamos a ordem do Pai referente a Jesus:
“Este é o meu Filho amado. Escutai o que ele diz!”, e com o Cristo Sofredor,
com o olhar esperançoso na Ressurreição, sigamos em frente em meio aos desafios
e sofrimentos que a vida pode nos apresentar.
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