sábado, 13 de agosto de 2011

XX DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano A – 14 de agosto de 2011)



I Leitura: Is 56, 1. 6-7
Salmo Responsorial: Sl 66 (67), 2-3. 6 . e 8 (R/. 4)
II Leitura: Rm 11, 13-15. 29-32
Evangelho: Mt 15, 21-28 (Cura da filha da cananeia)


“Quia apud Dominum misericordia et copiosa apud eum redemptio” (Ps 129, 7)
No Senhor se encontra toda graça e copiosa redenção (Sl 129, 7)

                                                 



Queridos irmãos,



Deus ama todos os homens! Como sabemos, esta é uma verdade que para nós cristãos não é uma novidade; o amor de Deus pela humanidade é evidenciado claramente. Louvado seja Deus por isso! Por que estamos iniciando a nossa reflexão com esta observação aparentemente sem sentido? Porque, durante muitos séculos, no contexto do povo de Israel, esta realidade era, como que, suplantada por um sentimento ufanista de que apenas os judeus eram amados por Deus por serem o povo da promessa. É inegável que, primordialmente, Deus se revelou de forma pedagógica a Israel e, como bem sabemos, esta manifestação paulatina alcançou o seu ápice e termo em Jesus Cristo, Verbo Encarnado, Filho de Deus, consubstancial ao Pai, que veio para revelar, não somente a Israel, mas a toda a humanidade, a verdadeira identidade de Deus: “Pois a lei foi dada por Moisés, a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17). E, revelando o Pai, revela-se Filho, cuja missão é a de congregar os dispersos para formar um povo, o Povo de Deus, Povo da Nova e Eterna Aliança.
Para a ortodoxia judaica, a concepção de povo da Aliança estava reservada aos nascidos em Israel, considerados descendentes de Abraão. Com este dado, eles excluíam os estrangeiros, considerando-os pessoas impuras, inferiores, por isso as chamam pagãs. Alguns profetas do Antigo Testamento, como o próprio Isaías na Primeira Leitura de hoje, se contrapõe a esta ideia. Bem, o capítulo do trecho de Isaías proclamado hoje localiza a perícope como posterior ao exílio da Babilônia; logo estamos no fim do século IV a.C.. O povo de Israel, cheio de vida porque havia retornado do exílio, reconstrói o Templo de Jerusalém que havia sido destruído por Sedecias, oficial do exército de Nabucodonor, monarca da Babilônia. A partir do evento da reconstrução do Templo, o povo de Israel polariza a vida nacional em torno da Casa de Deus. Em si mesma esta iniciativa não era ruim, já que Israel estava em busca de realçar a sua identidade nacional. Porém, os israelitas estavam indo longe demais com este sentimento. Estavam com exclusivismos nacionalistas, principalmente no que se refere à frequência ao Templo e quem podia, ou não, pertencer ao povo da Aliança Mosaica. Entre estes discriminados pelos judeus estavam os estrangeiros. Isaías vai de encontro a este bairrismo e denuncia tal prática com as palavras que ele mesmo recebeu do Senhor: “Aos estrangeiros que aderem ao Senhor, prestando-lhe culto, honrando o nome do Senhor, servindo-o como servos seus, a todos os que observam o sábado e não o profanam, e aos que mantêm aliança comigo, a esses conduzirei ao meu santo monte e os alegrarei em minha casa de oração; aceitarei com agrado em meu altar seus holocaustos e vítimas, pois minha casa será chamada casa de oração para todos os povos”. (Is 56, 6-7).
Com a afirmativa acima, o profeta quer deixar bem evidente que o critério para a pertença ao Povo de Deus não é a raça, mas a prática da fé que, no judaísmo, vem acoplado à observância da Lei mosaica: “Cumpri o dever e praticai a justiça, minha salvação está prestes a chegar e minha justiça não tardará a manifestar-se” (Is 56, 1). Este trecho, contemplado com o prisma cristão, nos enche de alegria. Isaías fala para além de seu tempo; profetiza algo vindouro. Ele anuncia não uma realidade presente, mas futura. É como se ele quisesse dizer: “Preparai-vos para a vinda do Senhor, não vos inquieteis por não pertencerdes ao núcleo dos judeus. O Senhor vai formar um povo novo, um povo autêntico, não pelos laços consanguíneos de Abraão, mas o sereis no próprio Deus; esta é a sua justiça. Preparai-vos com o que o judaísmo oferece: cumpri o dever e praticai a justiça, ainda que estes elementos sejam deficientes se comparados com a realidade do porvir. Tudo isto acontecerá brevemente, pois o Senhor vos vai salvar”. E, se já tivéssemos nascido nesta época, seríamos tidos como patrícios judeus ou como forasteiros? Logicamente, seríamos forasteiros, pois, para os fundamentalistas do judaísmo, seríamos pagãos. Dissemos que o texto de Isaías nos enche de alegria porque “este povo, que jazia nas trevas, viu resplandecer uma grande luz; e surgiu uma aurora para os que jaziam na região sombria da morte” (Is 9,1; Mt 4, 16). O que, ou quem, seria esta luz? É lógico que é o próprio Cristo, lux mundi, que traz a salvação para os que Nele esperam, independentemente de cor, raça e condição social.
À nossa expectativa, que já se hodierna, se junta o júbilo do refrão do Salmo Responsorial: “Que as nações vos glorifiquem, ó Senhor, que todas as nações vos glorifiquem” (Sl 66, 4). Percebamos que o salmista não disse “que a nação”, “que Israel”, mas que as nações, porque a mensagem do Evangelho foi destinada pelo próprio Deus às nações do mundo: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações” (Mt 28, 19); e, consequentemente a salvação: “Que na terra se conheça o seu caminho e a sua salvação por entre os povos” (Sl 66, 3). O texto salmódico também faz referência ao julgamento do Senhor, bem como ao seu plano de amor para com todos os povos e nações: “Exulte de alegria a terra inteira, pois julgais o universo com justiça; os povos governais com retidão, e guiais, em toda a terra, as nações” (v. 5).
Na sua Epístola aos Romanos, São Paulo, na Segunda Leitura, tal como na passagem refletida no domingo passado (cf. Rm 9, 1-5), manifesta à comunidade de Roma a sua preocupação com a possível perdição dos judeus, já que estes não crêem em Jesus, ao tempo em que o Apóstolo vibra pelo alcance da mensagem do Evangelho no coração dos gentios. Os pagãos, sempre rejeitados pelos judeus, tornam sensíveis e abraçam a salvação. São Paulo não perde a “esperança de despertar ciúme” (Rm 11, 14) nos da sua raça a fim de que alguns deles se salvem, ainda que seja por uma mera arremedação provocada pelo despeito.

O versículo 15 nos intriga: “Se a rejeição deles foi reconciliação para o mundo, o que não será a admissão deles! Será como passagem da morte para a vida!”. Neste sentido, auxilia-nos Santo Tomás de Aquino: “De nenhuma maneira caíram inutilmente. Mas que a caída dos judeus vem a servir ocasionalmente para a salvação dos gentios. Por isso, disse o Senhor: “A Salvação vem dos judeus” (Jo 4, 22). O qual se pode entender triplamente. De um primeiro modo porque o delito que cometeram com a morte de Cristo se seguiu a salvação dos gentios pela redenção do sangue de Cristo. ‘De vossa vã maneira de viver, herança de vossos pais, fostes redimidos, não com coisas corruptíveis, prata e ouro, e sim com o precioso sangue de Cristo, como de cordeiro sem mácula e defeito’ (1Pd 1, 18-19). De um segundo modo se pode entender do delito e caída consistente em ter rejeitado a doutrina dos Apóstolos, do qual resultou que os Apóstolos pregaram ao gentios, segundo Atos 13, 46: ‘Era necessário que a palavra de Deus fosse anunciada primeiramente a vós; porém, como vós a haveis rejeitado, julgando-vos indignos da vida eterna, é que nos dirigimos aos gentios’. Do terceiro modo se pode entender que por sua impertinência tem sido dispersos em todas as nações. E assim Cristo e a Igreja tiveram nos livros judaicos o testemunho da fé cristã para converter aos gentios que pudessem pensar que as profecias sobre Cristo que os pregadores da fé apresentavam eram uma pura invenção ou coisa parecida, se não eram provadas com o testemunho dos judeus” (Super Epistolam Sancti Pauli Apostoli ad Romanos Expositio, 51).

E Paulo continua: “Pois os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis”. Dentre os atributos divinos está o da onisciência. Ele de nada se arrepende, por isso nunca revogará o dom da graça e do chamado aos que elegeu, mesmo com a desobediência dos que foram avocados. Paulo reconhece que os pagãos abandonaram a desobediência e por isso foram validos pela misericórdia, enquanto que os judeus regrediram. Mas, se voltarem a obedecer a Deus, agora pelo Filho, estes também alcançarão misericórdia.

No Evangelho, temos uma cena muito conhecida e, porque não dizer, excêntrica. Jesus está em Tiro e Sidônia.  Dirige-se para uma região pagã por conta da incredulidade dos fariseus e caluniadores (cf. Mt 15, 1-12). Segundo Remígio: “Foi ali para curar aos de Tiro e Sidônia, ou para livrar do demônio a filha dessa mulher e condenar por sua fé a perversidade dos escribas e fariseus”, pois Mateus só apresenta esta passagem quando faz referência a esta visita de Jesus a região dos cananeus. E completamos este nosso pensamento acerca da geografia religiosa do Oriente Médio com um breve comentário de São João Crisóstomo acerca do porquê de Jesus está ali, na Cananeia: “O evangelista a chama (a mulher) cananeia. [...] Os cananeus haviam sido expulsos para que não pervertessem os judeus, se mostraram mais sábios que os judeus, saindo de suas fronteiras e acercando-se a Cristo” (Homiliae in Matthaeum, hom. 51,1).

Eis que uma aflita mulher aparece em brados implorando a piedade do Senhor para a sua filha. O que mais chama a atenção é a forma com a qual ela se dirige a Jesus: “Senhor, filho de Davi...” (Mt 15, 22). Com isto, o Evangelista faz questão de ressaltar que ela reconhece em Jesus a sua divindade (Senhor), mas, igualmente, ela reconhece a sua humanidade (filho de Davi: cf. 2Sm 7), realidades que os judeus não conseguem vislumbrar, pelo menos a primeira, pois era óbvio para eles que Jesus era homem; Jesus, um ser divino e humano que, compadecido, pode fazer algo, não somente por ela diretamente, mas pela sua filha e, secundariamente, por ela: “ [...] tem piedade de mim: minha filha está cruelmente atormentada por um demônio!” (Ibidem, 22).  

Jesus silencia. O que seria este calar do Senhor? Indiferença? Não! Para provar-lhe a paciência e a insistência? Exatamente! Para ver qual seria a reação dos discípulos e dos ouvintes? Também!
A mulher implora, humilha-se, grita. Vejamos quanto é grande seu desespero por conta da situação de sua filha, mas, paradoxalmente, quão imensa é a sua esperança: Ele, verdadeiro Deus e verdadeiro homem tem poder de libertar a menina daquela mulher, dando-lhe a paz. Aos berros da pagã, os discípulos se incomodam: “Manda embora essa mulher, pois ela vem gritando atrás de nós”. São Jerônimo é categórico ao afirmar, comentando esta atitude dos Doze: “Os discípulos, que ainda não sabiam nesse tempo os mistérios de Deus, rogavam pela mulher cananeia, ou bem movidos de compaixão, ou bem porque desejavam livrar-se de sua importunidade”. Assim, se o que levou os discípulos a pedir por ela foi a primeira motivação, eles já estavam sintonizados com dinâmica do Reino trazido pelo Mestre: a complacência; se foram levados pelo segundo elemento, eles demonstraram que não conseguiram se desvencilhar do costume judeu de considerar os pagãos como irritantes.

Jesus, embora sondasse os corações, queria ver e demonstrar até que ponto a mulher evidenciaria a sua humildade e lhe responde abruptamente: “Eu fui enviado somente às ovelhas perdidas da casa de Israel [...] Não fica bem tirar o pão dos filhos para jogá-lo aos cachorrinhos”. O Senhor lhe responde de tal forma para ver qual seria a sua reação, não apenas para lhe experimentar, mas para demonstrar aos discípulos e aos presentes o grande poder da oração simples e insistente: “Pedi e se vos dará. Buscai e achareis. Batei e vos será aberto” (Mt 7, 7). Jesus, mais do que ninguém, tem a consciência da universalidade da sua missão redentora (cf. Is 61, 1; Lc 4,18). No Cristo, as fronteiras de Israel são ampliadas.Não mais devemos entender a casa de Israel com uma idéia meramente geográfica; a casa de Israel é o mundo; as ovelhas perdidas da casa de Israel somos nós que, outrora não éramos seu povo, mas agora somos povo de Deus; nós que outrora não tínhamos alcançado misericórdia (cf. Os 2,25), mas agora alcançamos misericórdia (cf. 1Pd 2, 10).

A cananeia rebaixa-se. Por analogia, considera-se um cachorrinho que recolhe migalhas ao chão, atribuindo a si própria uma dignidade inumana. Jesus, mais sensibilizado do que já estava, volta-se para ela. Restitui-lhe a dignidade humana ao chamá-la com o predicativo “mulher de fé”. Cura não apenas a sua filha, mas restaura-lhe o interior. Quantas vezes, nós, que nos arrogamos de conhecer Deus, temos demonstrações de fé que contradizem o nosso ser cristão? Não raras vezes não temos coragem de ser humildes e de dobramos a nossa cerviz em adoração e súplica ao nosso Deus, rico em bondade e misericórdia, que veio em nosso socorro, fazendo de nós, não apenas seu povo, mas seus filhos no Filho. Quando este desventurado pensamento nos abater, tenhamos sempre na consciência que fomos salvos não por nossos méritos, mas pelo amor de Deus que nos quer, independentemente da raça a qual pertençamos, junto de si.

Que o exemplo desta mulher anônima, mas repleta de fé e humildade, nos contagie e nos ajude a manifestar ao mundo carente de testemunho a certeza de que Deus está conosco, com o seu povo universal, pois Nele “se encontra toda a graça e copiosa redenção” (Sl 129, 7), como nos vai relembrar a Antífona da Comunhão da Liturgia deste domingo.

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