sexta-feira, 14 de novembro de 2014

XXXIII DOMINGO DO TEMPO COMUM

(Ano A – 16 de novembro de 2014)


I Leitura: Pr 31,10-13.19-20.30-31
Salmo Responsorial: Sl 127(128),1-2.3.4-5ab (R/. cf. 1a)
II Leitura: 1Ts 5,1-6
Evangelho: Mt 25,14-30



“Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). É com esta certeza que o autor do Livro dos Gênesis conclui o primeiro relato da criação. Tudo, inclusive os homens, Deus cria, e assim o faz tendo em vista a Sua bondade, enquanto Criador, e a utilidade de toda criatura para a glória divina e para o bem da criação. Logo, como criaturas de Deus, fomos pensados com um talento primário: a bondade, e, por este caráter, refletimos o próprio Criador. Entretanto, alguns não fazem caso deste ‘proto-talento’ – fazer o bem, ser do bem – e obstinam-se no mal. Mas, o que é talento?
Talento era uma unidade de medida relativa ao ouro. Um talento equivalia a um montante de quase trinta e cinco quilo de ouro. Logo, não é uma moeda, mas uma fortuna considerável. O Evangelho diz-nos que o homem da parábola, ao viajar para o estrangeiro, “chamou os seus empregados e lhes entregou seus bens”, o que supomos que, muito rico, entregou nos oito talentos de ouro, toda a sua fortuna. Deus, em sua benevolência, oferece os bens da criação ao homem para que, na sua administração, seja capaz de fazer frutifica-los em multíplices outras benesses.
Percebam que a fortuna foi distribuída desigualmente, e o Evangelho deixa claro o porquê: [deu] “a cada um de acordo com a sua capacidade” (Mt 25,15). No original grego, encontramos o termo dynamis (dynamin), o que em latim se traduz por virtus (virtutem), ou seja, de acordo com as forças de cada um. Deus conhece-nos muito mais do que nós pensamos nos conhecer, sabe de quanto somos disponíveis a oferecer. Entretanto, ninguém pense que nasceu desprovido de dom, de talento que possa servir a Deus e ao próximo. Neste sentido, São João Crisóstomo nos afirma: “Esta parábola se apresenta contra aqueles que não só com dinheiro, nem com palavras, nem com qualquer outro modo querem ser úteis a seus próximos, mas, pelo contrário, não lhes servem” (Homiliae in Matthaeum, hom. 78,2). Todos possuímos algo para o oferecimento ao Reino e ao irmão, pois ninguém é tão pobre que não tenha nada a ofertar, já que o Senhor nos infunde os seus valorosos dons para que os desenvolvamos.
O patrão se ausenta. Sequer diz quando retornará para tomar posse do que lhe pertence e receber a devida prestação de contas, esperando que cada um tenha feito multiplicar aquilo que Lhe pertence, mas que foi dado para que outrem administre. Este homem é o nosso Redentor, que subiu ao céu. Aparentemente está distante, alheio às nossas obras, ao desenvolvimento dos talentos que Dele recebemos, mas esta viagem “para o estrangeiro” significa unicamente que Ele, doador dos talentos e dos dons provenientes de Sua bondade, nos deixa livres para administrá-los como quisermos, porém que esta liberdade não dispensa a responsabilidade e a justiça de, quando da sua volta, pedir satisfação do que lhe pertence e que havia-nos confiado.
Percebam ainda que, com seu o retorno, o homem, além de pedir contas do que é seu, ele não se escusa de tecer juízos de valores, ou seja, não deixa de realizar o seu julgamento. De imediato, vislumbramos que, além de dono dos talentos, ele também é juiz. Aos dois primeiros, que foram multiplicadores dos talentos do seu patrão, não economizando esforços, trabalhos, lutas, coragem para enfrentar as dificuldades no conseguimento do lucro, o homem, igualmente à competência dos seus servos, não economiza nos elogios e na recompensa: “Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!” (Mt 25,21.23). Por terem sido conscientes da sua responsabilidade, por terem levado adiante e a bom termo o pouco desigual que lhes fora confiado, os dois empregados recebem do Divino Patrão e Juiz título igual ao de Moisés: ‘Homem de confiança para toda a minha casa’ (cf. Nm 12,7). Já quanto a recompensa, o patrão lhe confia, por incrível que pareça mais trabalho, uma responsabilidade maior e, mormente, mais sublime: a participação na alegria do seu senhor. Onde se dará esta alegria? No Céu. Lá gozaremos da alegria, da festa, da contínua presença do Senhor, o Divino Patrão e Justo Juiz. Neste sentido, a Oração de Coleta, dirigindo-se ao Senhor, reza: “[…] fazei que a nossa alegria consista em vos servir de todo o coração, pois só teremos felicidade completa, servindo a vós, o Criador de todas as coisas”.
Mas, vocês podem me questionar: E no céu existe maior e mais sublime trabalho do que aqui na terra? Sim, meus irmãos, lá há trabalho incansável e prazeroso. Como partícipes da alegria do Senhor, reinaremos com Ele; ser-nos-á, por exemplo, nos confiada a intercessão dos servos que ainda ficarão no campo, desenvolvendo os talentos do homem justo e exigente. Enquanto no céu estaremos unidos num labor mais eminente do reinado de Cristo, na terra, os bons empregados, entoarão, mediante o exemplo que tivermos deixado, os elogios a nós destinados, tal como a Primeira Leitura deste Domingo se encerra: “Proclamem o êxito de suas mãos, e na praça louvem as suas obras” (cf. Pr 31,31).
Debrucemo-nos agora sobre o terceiro servo. “Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão” (Mt 25,18). Na sua comodidade, infidelidade, covardia, preguiça, pensamento baixíssimo e irresponsabilidade, o terceiro homem, mesmo sabendo da severidade do seu senhor, prefere ocultar o que de precioso recebeu e que é conforme à sua capacidade, às suas forças. O terceiro homem é reflexo daqueles que apegam e se teimam ao que é terreno. Por isso, na parábola, o homem não esconde em outro lugar, mas num buraco, envolto em terra. Estes receberão um adjetivo e uma recompensa proporcionada às suas atitudes de inutilidade e desleixo, similares ao do terceiro empregado do Evangelho: “Servo mal e preguiçoso”, jogar-te-ei “lá fora, na escuridão”, onde “haverá choro e ranger de dentes”. Às fortíssimas dores de ser atirado, jogado fora, une-se a humilhação de ser condenado aos tormentos infernais.
O que estamos fazendo com os talentos que recebemos do Divino Patrão? Se o dia do Senhor, [que] virá como ladrão, nos advier hoje, estaremos dormindo, apegados à terra, desguarnecidos, como os outros, ou estaremos vigilantes e sóbrios para lhe retribuir com lucro o que Ele nos concedeu? Ouçamos o conselho de São Paulo na Segunda Leitura de hoje. Obriguemo-nos a empregar todos os bens que Deus nos concedeu fazendo a Sua vontade, na mesma consciência de que, com apenas um talento, podemos ser gloriosos, já que, no dia de nossa morte teremos de prestar estritas contas ao nosso Juiz, Jesus Cristo, a quem sejam dadas honras e glórias infindas.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

FESTA DA DEDICAÇÃO DA BASÍLICA DO LATRÃO

(09 de novembro de 2014)



I Leitura: Ez 47,1-2.8-9.12
Salmo Responsorial: Sl 45(46),
II Leitura: 1Cor 3,9c-11,16-17
Evangelho: Jo 2,13-22

           
           

Hoje, celebramos a antiquíssima festa da Dedicação da Basílica do Latrão, Catedral de Roma, em recordação à sua consagração pelo Papa Silvestre em 09 de novembro de 324. Esta igreja, construída pelo Imperador Constantino, é a mais antiga e a primeira em dignidade das igrejas do Ocidente, sendo, por isso mesmo, considerada a “Mãe e Cabeça de todas as igrejas de Roma e do mundo” (Urbi et Orbe).
            Na realidade, celebrar a festa de hoje é celebrar Cristo Jesus, morada de Deus entre nós; Ele que montou a Sua ‘tenda’ em nosso meio, o Sheninah. Aquele que é Deus, e, portanto, atemporal e não pode ser contido em espaço algum, vem até nós, encarnando-se, para congregar-nos em Si, em Seu interior. Mesmo existindo na história, Cristo Senhor, morada eminentíssima de Deus entre nós, continua a congregar tantos em Si e a Si pelo mistério da Igreja. Ele, a Cabeça; nós, os membros que só temos vida e sentido se interligados ao cerne do corpo, fonte das emoções e da razão.
            A Primeira Leitura de hoje, que nos traz a visão profética de Ezequiel em relação ao Templo, é, de fato, uma visão prefigurativa do mistério de Cristo e da Igreja. Cristo é o Templo, cuja contemplação absorve o olhar de Ezequiel; a sua Graça é escorrida pela correnteza da Igreja; o curso desta correnteza, ou seja, a sangria deste rio esplendoroso é a história e a Terra inteiras, desbravadas por este majestoso e fecundo rio; às suas margens observa-se o crescimento de toda espécie de árvores frutíferas, cujas folhas são imarcescíveis e frutos infindáveis, porque às pessoas de todos os séculos e lugares aos quais chegou, chega e chegará a Graça Divina através da Igreja, única despenseira da vida imperecível para a humanidade, produziram frutos incalculáveis e insondáveis. Como poderíamos medir ou quantificar o bem produzido pelos cristãos ao longo destes dois milênios, se a Graça de Deus transmitida a eles pela Igreja através dos Sacramentos age neles? Nossa vida só frutifica e remedia o mundo se estamos fincados na Igreja, Corpo Místico de Cristo.
            Creio, meus irmãos, que a cena de Cristo no Calvário, crucificado, com o seu peito dilacerado, jorrando sangue e água em abundância, é a concretização desta visão de Ezequiel. É do peito aberto do Senhor que nasce a Igreja, que, por ser Sacramento de Cristo, congrega, revitaliza a vida de tantos quantos estão mortos, ressequidos, cujas ramagens estão secas. E como isto acontece senão pelos sete sacramentos simbolizados no sangue e na água que irromperam do Crucificado, do Verdadeiro Templo de Deus?
            Também nós somos habitação de Deus pelo Espírito que age e mora em nós.  Esta é a reflexão da Segunda Leitura. A Igreja, por sua prática sacramental, infunde em nós esta condição de santuário de Deus, alicerçados em Cristo – que também nos é pedra angular, pedra de amarração da construção que somos nós. Santo Agostinho afirma com toda clareza: “Aqueles que habitam na casa de Deus, são também eles mesmos casa de Deus”. Logo, entrevemos a importância de estarmos congregados na única Igreja de Cristo, a Igreja Católica, Corpo Místico do Senhor, ao tempo em que também nós somos, por participação, esta Igreja, este Corpo.

            No Evangelho, temos o Senhor, consumido de zelo pela casa de Deus, purificando-a de vendilhões, trapaças e crimes. Na realidade, movido de ímpeto, Nosso Senhor, com chicote de cordas não quer expulsar somente os cambistas do templo. A mensagem vai além: Cristo Senhor decreta o fim da importância do judaísmo profanado pela infidelidade e pelo desrespeito a Deus. O templo a ser purificado não é aquele, mas o que será fundado sobre o seu Corpo – por este motivo, Jesus fala de reconstruí-lo em três dias. Jesus quer fundar a Sua Igreja límpida, purificada, a tão ponto bela que faz dela a Sua Esposa; o Senhor ao falar do Seu corpo, fala também de nós, da nossa pureza, da nossa limpidez, da nossa purificação e da nossa beleza garantidas pelo Seu triunfo pascal – Paixão, Morte, Ressurreição e Ascensão. No Corpo Majestoso do Senhor, estamos nós.
            São Cesário de Arles, no distante século VI, ilustra-nos a necessidade de prezarmos pela beleza do Templo de Deus, em seus dois aspectos: o interior (que somos nós) e o edifício de pedras, ao qual, por conveniência, também denominamos igreja: “Todos nós, caríssimos, antes do batismo fomos templos do demônio; depois do batismo, obtivemos ser templos de Cristo. E se meditarmos com atenção sobre a salvação de nossa alma, reconheceremos que somos o verdadeiro templo vivo de Deus. Deus não habita somente em construções de mão de homem (At 17,24) nem em casa feita de pedras e madeira; mas principalmente na alma feita à imagem de Deus e edificada por mãos deste artífice. Desse modo pôde São Paulo dizer: O templo de Deus, que sois vós, é santo (1Cor 3,17). […] Queres ver bem limpa a basílica? Não manches tua alma com as nódoas do pecado. Se desejas que a basílica seja luminosa, também Deus quer que tua alma não esteja em trevas, mas que em nós brilhe a luz das boas obras, como disse o Senhor, e seja glorificado aquele que está nos céus. Do mesmo modo como tu entras nesta igreja, assim quer Deus entrar em tua alma, conforme prometeu: E habitarei e andarei entre eles (cf. Lv 26,11.12)”.
            Que esta festa hoje celebrada nos encha de zelo para cuidarmos da propriedade de Deus neste mundo: a Igreja, habitação interior de Deus, que somos nós; e a igreja-edifício, sublime casa onde nos reunimos para nos nutrir dos Sacramentos e da Palavra de Deus pela fé, e para a reunião dos crentes em Jesus.
                  


quinta-feira, 14 de novembro de 2013

ETERNAMENTE VIVOS EM CRISTO

Queridos irmãos,

“Creio na Ressurreição da Carne”. O undécimo artigo da Profissão de Fé Católica é categórico quanto à convicção de que a vida do homem não encontra termo aqui neste mundo passageiro no qual somos transeuntes, mas transcende-o até alcançar a realização plena de viventes, imortais no Cristo, ressuscitados Nele.
Afirma-nos o Apóstolo dos Gentios, São Paulo: “Ora, se se prega que Jesus ressuscitou dentre os mortos, como dizem alguns de vós que não há ressurreição de mortos? Se não há ressurreição dos mortos, nem Cristo ressuscitou. Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé. Além disso, seríamos convencidos de ser falsas testemunhas de Deus, por termos dado testemunho contra Deus, afirmando que ele ressuscitou a Cristo, ao qual não ressuscitou (se os mortos não ressuscitam). Pois, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, é inútil a vossa fé, e ainda estais em vossos pecados. Também estão perdidos os que morreram em Cristo” (1Cor 15,12-18). Logo, podemos entrever duas coisas: 1) O acreditar na ressurreição da carne é uma atitude de fé que vê na ressurreição de Jesus a garantia da ressurreição de todos os homens; Ele é o “Ele o primogênito dentre os mortos” (Cl 1,18), portanto, o décimo primeiro artigo do Credo é uma espécie de adendo de uma outra parte do Símbolo de Fé: “[Creio em Jesus Cristo que] ressuscitou ao terceiro dia”. 2) Sob à luz do Ressuscitado nasceu e se desenvolveu o cristianismo: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim do mundo” (Mt 28,19). A verdade do Ressuscitado é conteúdo base de toda pregação da Igreja, desde seus primórdios: “A este Jesus, Deus o ressuscitou: do que todos nós somos testemunhas” (At 2,32). Logo, o ato de crer na ressurreição é um distintivo do ser cristão, tal como Tertuliano coadunava: “A confiança dos cristãos é a ressurreição dos mortos; crendo nela, somos cristãos”. Em síntese: só é cristão de fato quem crê na ressurreição, pois é promessa do próprio Senhor: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá. E todo aquele que vive e crê em mim, jamais morrerá” (Jo 11,25-26). Com os olhos da fé no Ressuscitado, São Paulo professa esta certeza quando escreve: “Se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dos mortos habita em vós, ele, que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos, também dará a vida aos vossos corpos mortais, pelo seu Espírito que habita em vós” (Rm 8,11).
A compreensão acerca desta temática não foi instantânea no cabedal dogmático judaico. A Lei não se referia diretamente ao assunto; existiam divergências no judaísmo acerca disto (cf. Mt 22,23-33; Mc 12,18-27; Lc 20,27-39; At 23,8). Entrementes, o Segundo Livro dos Macabeus (2Mc 7) já nos oferece uma centelha teológica no Antigo Testamento acerca da ressurreição, e olhe que eles ainda não possuíam a garantia da promessa da imortalidade feita pelo próprio Cristo, Ressurreição e Vida.
“Ora, Deus não é Deus dos mortos, mas dos vivos; porque todos vivem para ele” (Lc 20,38). Mas, por que morremos? Fisiologicamente, a ciência tem seus motivos para explicar o porquê da morte. Teologicamente, a morte é consequência do pecado. No entanto, com a salvação do homem, a morte é vencida, é redimensionada a uma passagem para a entrada numa vida, a vida eterna, ou, no dizer de Santa Teresa de Lisieux, a “verdadeira vida”. Santo Ambrósio, já no século IV, refletia: “Na verdade, a morte não era da natureza, mas converteu-se em natureza. No princípio, Deus não fez a morte, mas deu-a como um remédio. Pela prevaricação, condenada ao trabalho de cada dia e ao gemido intolerável, a vida dos homens começou a ser miserável. Era preciso dar um fim aos males, para que a morte restituísse o que a vida perdera. Pois a imortalidade seria mais penosa que benéfica, se não fosse promovida pela graça”. Se a morte entrou no mundo como castigo, ela é transformada por Deus, em Suas magníficas sabedoria e providência, em descanso. Se parássemos aqui, tendo a morte apenas na conta de repouso, excluindo a esperança de vida que ela embute, poderia até soar que a morte, de per si, é algo bom e necessário para o esfalfamento do homem, graças aos seus labores e lutas. Porém, este tirocínio de ter a morte como um pouso apenas não se caracteriza uma visão cristã acerca da morte. A morte é descanso? Sim, o é. Mas, descasaremos na paz do Senhor vivendo, vivendo na Sua luz. Morreremos para viver; viveremos para reinar, gozar da intimidade de Deus e encontrarmos o nosso ser no Seu ser: “Assim como em Adão todos morrem, assim em Cristo todos reviverão. […] Como está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente (cf. Gn 2,7); o segundo Adão é espírito vivificante” (1Cor 15,22.45); ou ainda: “Eis uma verdade absolutamente certa: Se morrermos com ele, com ele viveremos.Se soubermos perseverar, com ele reinaremos” (2Tm 2,11-12).
E o que é ressuscitar? Não é apenas uma mera reanimação de um corpo cadavérico. Não. Ressuscitar é, semelhantemente ao corpo de Cristo, a transformação do nosso corpo corruptível em glorioso, ou seja, que não se detém às condições físico-geográficas, etárias, fisiológicas, seremos imortais (cf. Lc 24,31; Jo 20,17.19.27). Segundo o Concílio de Latrão IV, “todos serão ressuscitados com seu próprio corpo, que têm agora” (Dz 801). No último dia, o Justo Juiz, Jesus, vindo em Sua glória, ressuscitará bons e maus e os julgará (cf. Jo 5,29), mas nem todos ressuscitarão da mesma forma. No dizer de São Pio X em seu Catecismo: “Haverá enorme diferença entre os corpos dos eleitos e os corpos dos condenados; porque somente os corpos dos eleitos terão, à semelhança de Jesus Cristo ressuscitado, os dotes dos corpos gloriosos. Os dotes que adornarão os corpos gloriosos dos bem-aventurados são: 1) a impassibilidade, pela qual eles não mais poderão estar sujeitos a males, nem dores de espécie alguma, nem às necessidades de alimento, de repouso e de qualquer outra coisa; 2) a claridade, pela qual eles resplandecerão como o sol e as estrelas; 3) a agilidade, pela qual eles poderão passar num momento sem fadiga, de um lugar para outro e da terra ao Céu; 4) a sutileza, pela qual eles poderão, sem obstáculo, passar através de qualquer corpo, como fez Jesus Cristo ressuscitado. Os corpos dos condenados serão destituídos dos dotes dos corpos gloriosos dos bem-aventurados, e trarão o horrível estigma da reprovação eterna” (Questões 242-244).
Mas, quando da nossa morte, qual o nosso destino? É conveniente tratarmos ainda sobre o duodécimo artigo do Credo: “Creio na Vida Eterna”. Como dissemos anteriormente, a morte não é o fim do homem, e sim o fim de um tempo de peregrinação por esta vida terrena. Ao fecharmos os olhos para esta realidade e pela morte adentrarmos na porvindoura, seremos julgados por Cristo: é o juízo particular, onde prestaremos contas de tudo quanto fizemos em nosso trilhar na terra (cf. Mt 16,26; Lc 16,22; 23,43; 2Cor 5,8; Fl 1,23; Hb 9,27; 12,23): “Ao morrer, cada homem recebe na sua alma imortal a retribuição eterna, num juízo particular que põe a sua vida em referência a Cristo, quer através duma purificação, quer para entrar imediatamente na felicidade do céu, quer para se condenar imediatamente para sempre” (Catecismo da Igreja Católica, 1022). Logo, dizemos, amparados pelo Magistério da Igreja, que três são os destinos da alma humana após a passagem da morte: o Céu, o Purgatório e o Inferno. Como já refletimos outrora quando falávamos do sétimo artigo do Credo (em um texto nosso intitulado “A Glória de Cristo e o seu julgamento”), “entendamos por Céu a vida em comunhão definitiva com Jesus; a bem-aventurança e a felicidade eterna de ver a Deus e estar junto dele. O Purgatório, por sua vez, significa que há pessoas que, no dia de sua morte, ainda não estão preparadas para um encontro com Deus em uma plena comunhão com ele. Nós acreditamos que Deus, em sua misericórdia, os purifica e lhes dá o perdão para que entrem, posteriormente, no Paraíso, no Céu. Ele prepara-os para esse encontro. Daí a importância de rezarmos pelos mortos, principalmente intercedendo pelas almas do Purgatório. Por Inferno, entendamos a exclusão definitiva da comunhão com Jesus, a infelicidade e a miséria dos que se separaram voluntariamente de Deus. Por isso, o Inferno ser tido como um estado de alma de tormentos e de sofrimentos. Um estado irreversível”. E com que parâmetros seremos julgados? São João da Cruz, permeado por uma mística admirável, poderá nos alentar ou não: “No entardecer da nossa vida, seremos julgados sobre o amor”.
A Palavra de Deus, piamente crida e ensinada pela Igreja, também nos fala do juízo final. Igualmente consoante ao sétimo artigo, retomamos: “No fim do mundo Jesus Cristo, cheio de glória e de majestade, há de vir do Céu para julgar todos os homens, bons e maus, e para dar a cada um o prêmio ou o castigo que tiver merecido. Podemos questionar-nos: Se cada um, logo depois da morte, há de ser julgado por Jesus Cristo no juízo particular, por que haveremos de ser julgados todos no Juízo universal? Isso acontecerá por várias razões: primeiramente, para glória de Deus; depois, para glória dos Santos, que alcançaram o Céu por uma vida de amizade com Deus; para confusão dos maus, que conquistaram a sua própria condenação; finalmente, para que o corpo, depois da ressurreição universal, tenha juntamente com a alma a sua sentença de prêmio ou de castigo. No Juízo universal, há de manifestar-se a glória de Deus, porque todos hão de reconhecer, transparentemente, a justiça com que ele governa o mundo, embora se vejam às vezes na presente realidade que os bons estão a sofrer e os maus em prosperidade. Sendo um único Deus com o Pai e o Espírito Santo, no Juízo universal também há de manifestar-se a glória de Jesus Cristo, porque, tendo Ele sido injustamente condenado pelos homens, aparecerá à face do mundo inteiro como Juiz supremo de todos. Dissemos, amparados pela sã doutrina da Mãe e Mestra ‘Senhora’ Católica, que no Juízo universal há de manifestar-se a glória dos Santos, porque, tendo sido muitos deles desprezados e mortos pelos maus, hão de ser glorificados em presença de todos os homens. No Juízo universal, a confusão dos maus será enorme, especialmente aqueles que oprimiram os justos, e aqueles que, durante a vida, procuraram ser tidos, falsamente, por homens virtuosos e bons, pois verão manifestados, à vista de todos, os pecados que cometeram, ainda que ocultamente” (cf. “A Glória de Cristo e o seu julgamento”).
            Queridos irmãos, disse-nos o Senhor: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo” (Jo 6,51). Pela Eucaristia, entramos, ainda que momentaneamente, na intimidade de Deus; antegozamos o céu, o convívio dos bem-aventurados em Deus, a vida eterna. Se pelo Batismo nos tornamos membros do Corpo de Cristo, pela Eucaristia travestimo-nos do Ressuscitado, que antecipará a Sua vida em nossa vida já nesta realidade terrenal. Que o Sacramento do Altar nos confirme nesta nossa adesão de fé na ressurreição e na vida gloriosa infindável reservadas para o fiel crente.

domingo, 27 de outubro de 2013

NA IGREJA CATÓLICA SUBSISTE A IGREJA DE CRISTO QUE, ALIMENTADA PELOS SACRAMENTOS, É ENVIADA


Caríssimos,
           

No quase crepuscular do ‘Annus Fidei’, convocado pelo Papa Emérito Bento XVI em outubro passado e que se concluirá em novembro próximo dentro da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, na Cidade Eterna e em todo o ‘orbe católico’, é mister refletirmos acerca desta magna verdade: na Igreja Católica subsiste a Igreja de Cristo. Decerto, poucos foram os crentes regenerados do lavacro batismal que pensaram acerca. Nesta perspectiva, somos também, no mês em curso, além de ser consagrado ao Rosário de Maria Virgem, a Conferência Episcopal do Brasil, a CNBB, convidados a pensar acerca da missionariedade da Igreja de Cristo.
            Por que os documentos da Igreja são incisivos em ratificar que ‘a Igreja é essencialmente missionária’? Com muita clarividência, logo em seu limiar, a Constituição Dogmática Lumen Gentium, do Concílio Vaticano II, pontua: “Sendo Cristo a Luz dos Povos, este Sacrossanto Sínodo, congregado no Espírito Santo, deseja ardentemente anunciar o Evangelho a toda criatura e iluminar todos os homens com a claridade de Cristo que resplandece na face da Igreja. E porque a Igreja é em Cristo como que o sacramento ou o sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo gênero humano, ela deseja oferecer a seus fiéis e a todo mundo um ensinamento mais preciso sobre sua natureza e sua missão universal, insistindo no tema dos Concílios anteriores” (cf. LG 1).
            Essas palavras da cinquentenária constituição evidenciam quão presente é o apostolado da Igreja de Cristo presente na Senhora Católica. Neste ínterim, podemos pensar acerca da missão da Igreja. Por que quis o Senhor, na consumação da sua peregrinação terrestre, posteriormente ao mistério da sua Páscoa, permitir que a Sua Missão continuasse? Eis: porque Ele deseja a salvação de todos. Lembremo-nos de quando Lho indagam: “‘Senhor é verdade que são poucos os que se salvam?’ Responde-lhe: ‘Fazei todo o esforço possível de passar pela porta estreita’” (Lc 13,23-24). Por esta verdade, a missão redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo, haurida do Mistério da sua Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição, foi legada à Esposa-Igreja. “Fazei Isto em memória de Mim!” (Lc 22,19). Antes da imperativa exclamação do Filho de Deus no Monte das Oliveiras, quando da sua Ascensão, ordenou naquela ceia sacrificial a atualização da sua Páscoa no Sacramento da Sagrada Eucaristia para quem, segundo São Tomás, “todos os outros sacramentos estão ordenados.”.
            Desta feita, entendemos a primordial missão da Igreja: perpetuar nos sacramentos o evento salvífico de Nosso Senhor. Assevera: “A missão universal da Igreja nasce do mandato de Jesus Cristo e realiza-se, ao longo dos séculos, com a proclamação do mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, e do mistério da encarnação do Filho, como acontecimento de salvação para toda a humanidade” (cf. Dominus Iesus, 1).  A missão da Igreja outra não é senão a de atualizar a presença de Cristo, o que acontece de maneira solene pela Celebração da Sagrada Liturgia, nos demais sacramentos e por meio da pregação da Palavra de Deus. Assim quis o Senhor para a sua Igreja, “sacramento universal da salvação”, visivelmente presente, ininterruptamente, na Igreja Católica. Há uma mentalidade o quanto pragmática e dissociada do Evangelho, ao se conceber a missão, como a execução de ‘fazer coisas’. Não! A missionariedade acontece quando nos encontramos essencialmente com a pessoa de Jesus Cristo e o descobrimos na comunidade de fé, isto é, na Igreja. Nela se encontra, genuinamente, ‘o Jesus’, crido e transmitido pela fé Católica e Apostólica, guardado pela sã Tradição. É por essa razão que o então purpurado Joseph Ratiznger, com maestria,  no-lo exorta na Declaração Dominus Iesus, quando tece acerca do ’Ide’. Assim o escreve: “A missão universal da Igreja nasce do mandato de Jesus Cristo e realiza-se, ao longo dos séculos, com a proclamação do mistério de Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, e do mistério da encarnação do Filho, como acontecimento de salvação para toda a humanidade” (Dominus Iesus, 1).
            Neste sentido, a Igreja, Esposa de Cristo, é a fidedigna depositária da missão  e, Nela, através dos seus ministros ordenados, por primeiro, o ministério de Cristo Cabeça é continuado. “Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como uma sociedade, subsiste [subsistit in] na Igreja Católica (grifo meu), governada pelo Sucessor de Pedro e pelos Bispos em comunhão com ele. Com a expressão substit in, o Concílio Vaticano II quis harmonizar duas afirmações doutrinais: por um lado, a de que a Igreja de Cristo, não obstante as divisões dos cristãos, continua a existir plenamente só na Igreja Católica e, por outro, a de que existem numerosos elementos de santificação e de verdade fora da sua organização, isto é, nas Igrejas e Comunidades eclesiais qua ainda não vivem em plena comunhão com a Igreja Católica” (Dominus Iesus, 16)

            Ao contemplarmos estupenda declaração, vemos a Igreja de Cristo presente na Igreja Católica. De que maneira? Pela Tradição Apostólica, pela transmissão sólida e íntegra da fé, dada por Jesus aos Doze e estes aos seus sucessores, a Celebração dos Sacramentos, o culto à Virgem Maria e aos santos. Quando periodízamos tais caracteres chegamos ao Mistério de Cristo que, com a Igreja, forma o ‘Cristo Total’. Cônscios desta certeza, a Igreja, desde o dia de Pentecostes, apregoa a centralidade da pessoa de Cristo e faz com que a fé seja transmitida a todos os povos, para que os mesmos, conforme diz o Apóstolo, “cheguem à estatura do Homem Perfeito” (Ef 4,13).

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O ‘BANHO’ DO PERDÃO


Queridos irmãos,

A Igreja, que é Mãe e Mestra, é a única depositária da salvação operada pelo Cristo. Ao tempo em que ela custodia também distribui tal graça eminente. Entrementes, muitos, inclusive os ‘cristãos desinformados’, não acreditam que a Igreja tem o poder de perdoar pecados, duvidam-lhe na sua extrema autoridade espiritual dada pelo próprio Deus. Não obstante aos incrédulos, temos em vista outros tantos ‘cristãos desleixados’ que não se deixam reconciliar com Deus pelo meio ordinário da Igreja que são os sacramentos. “Creio na remissão dos pecados”: eis o décimo artigo da Profissão de Fé da Igreja de Cristo.
Em algumas páginas do Evangelho, encontramos o fundamento para esta prática da Igreja. O próprio Senhor, ao demonstrar com o seu perfeito exemplo o modo de libertar as pessoas integralmente, curando-lhes principalmente o coração, o interior, não raramente afirmava aos miseráveis que o procuravam, pedindo-lhe vida nova: “Os teus pecados estão perdoados” (cf. Mt 9,2; Mc 2,5; Lc 5,20; 7,47-48). Esta prática não se bastou ao Cristo, que a confiou a Sua Igreja, continuadora de Sua missão redentora, conferindo ao Colégio Apostólico, as “colunas de Seu Corpo Místico”, o seu exercício baseado em um poder inigualável, procedente do próprio Deus: “Tudo o que ligares na terra será ligado nos céus, e tudo o que desligares na terra será desligado nos céus” (Mt 16,19); “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ser-lhes-ão retidos” (Jo 20,23); “Está alguém enfermo? Chame os sacerdotes da Igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor. A oração da fé salvará o enfermo e o Senhor o restabelecerá. Se ele cometeu pecados, ser-lhe-ão perdoados. Confessai os vossos pecados uns aos outros, e orai uns pelos outros para serdes curados. A oração do justo tem grande eficácia” (Tg 5,14-16).
A limpeza operada por Deus através da Igreja e dos seus sacramentos se dá primariamente no banho da regeneração: o Batismo. Já constatamos esta verdade no Símbolo Niceno-Constantinopolitano: “Professo um só Batismo para a remissão dos pecados”. O principal efeito deste proto-sacramento, ao ser recebido pelo indivíduo com fé e conversão, é introduzi-lo no universo da graça, fazendo com que, ao serem-lhe perdoados os pecados, mergulhe na morte para o pecado e ressurja, regenerado e renovado pelo Espírito Santo, revestido de Cristo, santificado Nele.
A justa adesão de fé ao que crê a Igreja de Cristo, a ‘Senhora Católica’, encaminha o nosso olhar e vida para o Sacramento da Confissão (ou Reconciliação). Sabendo da debilidade humana que, mesmo regenerada em Si, ainda seria propensa ao pecado, Jesus, sapiente e providentemente, instituiu à Igreja o poder de anular todos os pecados por meio do sacramento que sana as faltas que cometemos após o banho batismal, reintegrando-nos a Deus e à comunidade cristã, ‘desencardindo a nossa alva veste batismal, enodoada pela infidelidade a Deus, pelo mal que cometemos’. O Senhor brindou-nos com o Sacramento da Penitência no dia da Sua ressurreição, no dia do Seu maior triunfo, quando, ressurgindo, venceu o pecado e a morte (cf. Jo 20,23). Por antonomásia, ao instituir tal sacramento no dia mesmo de Sua Páscoa, Jesus quer a ressurreição de nossa alma, tendo em vista que, se o pecado é a morte de nossa alma, o perdão que recebemos sacramentalmente é a sua ressurreição.
Quem já bebeu da graça sacramental da confissão, certamente sentiu o doce alívio que o ‘estar quite’ com Deus e Sua Igreja traz ao nosso interior. Imaginemos se Cristo não tivesse tal iniciativa de instituição, fruto do Seu coração misericordioso; se Cristo não tivesse dado à Sua Igreja o poder de perdoar os pecados, quantas pessoas não estariam em paz com Deus, com os irmãos, com a sua própria consciência? Quantos não viveriam no desespero e nos remorsos produzidos pelos pecados graves, comprometendo até mesmo a esperança da salvação? Poderíamos afirmar sem o medo do exagero: A confissão é a salvação dos pecadores. Alguns poderiam retrucar: “A salvação é Cristo!”. Treplicamos: Mas, quem é que salva o homem pela realidade sacramental, não é o próprio Jesus que confia à Sua Igreja tão grande mistério para oferecê-lo aos homens? Em um anoso manual de catequese (o livro “Leitura de Doutrina Cristã”, publicado pela Editora Vozes, em 1958), encontramos uma curiosa analogia: “A corda que salva o pecador da morte eterna e do poço do inferno é a confissão. Devemos agarrar-nos a ela quando cairmos em algum pecado. E foi Jesus que deu à sua Igreja esta corda de salvação dando-lhe o poder de perdoar os pecados” (p. 247).
Quem na Igreja exerce tal ministério de perdoar iniquidades? São Pio X, em seu famoso catecismo, responderá: “Os que na Igreja exercem o poder de perdoar os pecados são, em primeiro lugar, o Papa que é o único que possui a plenitude de tal poder; depois os Bispos e, sob a dependência dos Bispos, os Sacerdotes” (Questão 236). Solenemente, Cristo reveste os Apóstolos, seus sucessores e seus colaboradores imediatos, os sacerdotes, deste poder único. Ele poderia ter feito diferente, mas não o quis, pois desejou que esta faculdade do perdão passasse pelas mãos e voz dos homens, instrumentos de Sua misericórdia, quando dizem: “Deus, Pai de misericórdia, que, pela morte e ressurreição de seu Filho, reconciliou o mundo consigo e enviou o Espírito Santo para a remissão dos pecados, te conceda, pelo ministério da Igreja, o perdão e a paz. E eu te absolvo dos teus pecados, em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”. Muitos, entretanto, se queixam da vergonha e do medo que se lhes invadem em auto-acusar-se na Confissão, chegando até a introjetar em suas mentes: “Eu não sei me confessar!”. Temos que ter muito cuidado: o demônio pode estar se utilizando dos nossos receios de humilhar-nos diante da poderosa misericórdia de Deus para fazer-nos, pecadores, subservientes seus. E outra: se temos vergonha de apontar os nossos erros, por que não temos acanhamento em cometê-los? São Pio de Pietrelcina afirmava, encorajando os penitentes: “A confissão é o único tribunal em que os ‘réus’ se acusam e saem inteiramente absolvidos”. Já Tertuliano compara o cristão que prescinde do Sacramento da Penitência (seja por ignorá-lo, seja por embaraço), de confessar os seus delitos ao sacerdote a um doente que, por bloqueio, não quer mostrar ao médico as feridas. Santo Agostinho de Hipona insistia: “Não basta confessar os pecados a Deus, para quem nada é oculto, é preciso também acusá-los ao sacerdote, que é o Seu ministro”.

Como sacramento que traduz esta potência da Igreja no perdão dos pecados temos também a Unção dos Enfermos, cuja instituição encontramos quando o Senhor Jesus Cristo envia os Apóstolos em missão: [Eles] “Ungiam com óleo a muitos enfermos e os curavam” (Mc 6,13). Igualmente nas Escrituras averiguamos a prática da Igreja mediante a ordem do Senhor (cf. Tg 5,13). O efeito da Unção dos Enfermos é a comunicação da graça, apagando as faltas que o doente ainda tem que expiar, inclusive aquilo que o Concílio de Trento chamará de “reliquias peccati” – sequelas do pecado, consolando e confirmando a alma do doente, excitando-o maiormente na confiança da divina misericórdia, por quem, reanimado, aprende a suportar com mais docilidade os desconfortos e sofrimentos impostos pela enfermidade, ao tempo em que adquire crescente resistência às insídias do demônio. Tudo isto sem olvidar da possibilidade de reaver a saúde do corpo, quando for importante para a alma (cf. Dz 1696).

Deus nos ama, e, por amar-nos, nos dá o seu perdão. Se desesperarmos de Sua infinita misericórdia, por quem esperaremos? Caríssimos irmãos, busquemos sempre o Senhor que se deixa, continuamente, encontrar por um coração arrependido, contrito, mas confiante em sua bondade e com desejo de servi-Lo (cf. Sl 129). Não paremos em nossas misérias. Não! Mergulhemos nesta senda de amor infinito que nos quer purificados e junto a Si, imirjamos sempre em Deus, banhemo-nos desta fonte que a Igreja nos oferece que é a divina misericórdia.  

sábado, 12 de outubro de 2013

SOLENIDADE DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA, RAINHA E PADROEIRA DO BRASIL

“Gaudens gaudébo in Dómino, et exsultábit ánima mea in Deo meo: quia índuit me vestiméntis salútis: et indumento iustítix circúmdedit me, quase sponsam ornátam monílibus suis.’’



  
   Caros irmãos,
           
            Hoje a Igreja, aqui no Brasil, celebra a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira dessas terras de Santa Cruz. Em todo o país erguem-se louvores à Mãe de Deus sob tal advocação. Entoam-se os versos: “Viva a Mãe de Deus e nossa sem pecado concebida, viva a Virgem Imaculada a Senhora Aparecida”. A celebração da hodierna solenidade é uma epifania viva e singular da fé do Povo de Deus. Neste aspecto, vale-nos: “A luz de Deus brilha para Israel, através da comemoração dos fatos realizados pelo Senhor, recordados e confessados no culto, transmitidos pelos pais aos filhos. Desse modo, aprendemos que a luz trazida pela fé está ligada com a narração concreta da vida, com a grata lembrança dos benefícios de Deus e com o progressivo cumprimento de suas promessas” (cf. Lumen Fidei, 12).
           
      Desde aquele dia em que os pescadores encontraram em as profundezas do Rio Paraíba uma esfinge da Imaculada Conceição, muitas são as narrações dos crentes pelos benefícios recebidos por adjutório da Mãe de Deus. Neste sentido, sempre vislumbramos a presença maternal de Maria Santíssima junto àqueles que o Unigênito, na ara da obediência, o madeiro da cruz, concedeu como filhos na pessoa de João, dito o discípulo amado: “Mulher, eis aí o teu filho. Filho, eis aí a tua Mãe!” E sublinha com solenidade o evangelista: “Daquela hora em diante o discípulo a acolheu consigo!” Que significados podemos concluir desta palavra? Eis: a presença da Senhora Maria na vida de tantos! Neste solo brasileiro, quantos testemunhos! Quantas experiências por mediação da Virgem Santíssima. Caras são as palavras de São Bernardo quando diz: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus, não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem Gloriosa e Bendita”. É a mesmíssima Virgem Maria de Nazaré que hoje é louvacionada e reverenciada como a Mãe da Conceição Aparecida.
             As leituras da Missa de hoje são compendiadas num único período: Maria é a medianeira da Nova e Eterna Aliança. À Primeira Leitura, ouvimos a solicitude da rainha Ester que, achando os favores do rei, olha para a vida de Israel. Diz-lhe: “Concede-me a vida. Eis o meu pedido! E a vida do meu povo. Eis o meu desejo!’’ Um paralelo há entre Ester e Maria: ambas são dispostas para estar à disposição de outrem e, neste, de Deus. Recordemos o quadro da visitação de Maria à Isabel. Daquela que às pressas fora encontrar a parenta para comunicar-lhe o autor da vida encerrado em suas puríssimas entranhas. À Segunda Leitura, ouvimos a narração apocalíptica de São João. “Apareceu no céu um grande sinal: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos pés e sobre a cabeça uma coroa de doze estrelas. E ela deu à luz um filho homem, que veio para governar todas as nações com cetro de ferro”.  Esta alegoria faz-nos pensar em Maria como aquela que engendrou, como diz a Epístola aos Hebreus, “o Consumador da nossa fé”. Desta maneira, Maria, tal como o Concílio Vaticano II, ratificou “é o Tipo Perfeito da Igreja”. Esta que, como ela, a Toda Santa, milita na existência, para que no Dia do Senhor, seja desposada pelo Esposo Divinal. Como Maria deu à luz ao Menino, hoje, a Igreja, dá-nos a Jesus Cristo: na Palavra, nos Sacramentos, no ensinamento dos pastores de almas. Nas vicissitudes dos acontecimentos, há a incompreensão de muitos, porquanto seus projetos dissociam da vontade de Deus. No Evangelho, é-nos proposto, no princípio do chamado ‘’Livros dos Sinais’’ de São João, o capítulo segundo. Trata-se das Bodas em Caná da Galileia. A Escritura menciona: “Houve Bodas no terceiro dia em Caná da Galileia e Jesus, sua Mãe e seus discípulos tinham sido convidados às Núpcias”. De repente perguntamo-nos: Quem são os nubentes? Por que o casamento aconteceu no terceiro dia? Como é peculiar ao evangelista São João, ele é riquíssimo nos detalhes. Possuídos de relevantes significados aos seus leitores. João, desde o Hino ao Verbo de Deus, deseja deixar clarividente: aquele Jesus que fez prodígios e portentos ao decurso do seu ministério messiânico é Deus Sempiterno. O ‘Kadosch’, o Santo de Israel. Jesus é o Ícone perfeito do ‘Eu Sou’!
           

         A presença do terceiro dia é um dado presente no Livro dos Sinais como o sinal da recriação da humanidade executada pelo Mistério Pascal. É justamente no terceiro dia que o Novo Adão reintegra toda a Humanidade, Nele! No mistério da sua Páscoa, Nosso Senhor, faz, por antonomásia, a aliança, desposa o que estava decaído. Nesta perspectiva, averigua-se a seis talhas vazias e a ausência de vinho. Nesta certeza, vemos a presença de Maria, corredentora, e Daquele, o Redentor. “Eles não tem mais vinho!” e Jesus declara: “Mulher, minha hora ainda não chegou!” Eis a ordem da Senhora Imaculada: “Fazei o que ele vos disser”. As seis talhas é a presença do Antigo Povo da Aliança. Um povo que ainda não havia conhecido uma aliança perfeita e eterna e por este motivo estavam vazios, uma vez que o Emanuel-Deus veio suplementá-la. “A Lei nos veio por Moisés, mas a graça e a verdade no-lo chegaram por Jesus Cristo!” Por que falta o vinho? Por que a palavra misteriosa dentre os versículos: “Todo mundo serve o vinho melhor e quando os convidados já estão embriagados serve o vinho menos bom. Mas tu guardaste o vinho melhor até agora!”? Este vinho é a presença de Cristo-Esposo. Nele todas as coisas são renovadas. Com Ele o vinho é melhor.

Caná também é prefiguração do Banquete Sacrifical da Eucaristia. Vê-se no relato deste primeiro ‘sinal’ de Jesus a atuação de Nossa Senhora como aquela que ‘apressa’ a Nova Criação. Vê-se Maria em Caná que intercede, contempla-se Maria na soledade da cruz do seu Filho. Eis a Hora! Celebrando a Solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Padroeira da Terra de Santa Cruz, peçamos a sua maternal mediação, para, não obstante os acontecimentos transitórios, fincarmos uma fé inquebrantável como ela que é a primeira dentre os crentes. A Bem-Aventurada porque creu. Salve Maria da Conceição Aparecida!

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A COMUNHÃO ENTRE OS AMIGOS DE DEUS


Queridos irmãos,

“Cremos na comunhão dos santos!” Esta é uma verdade cuja profissão de fé fazemo-la no Credo. Quem são os santos? De maneira simples, resumimos: os santos são os amigos de Deus. Dizemos amigos para designar um relacionamento de profunda intimidade com o Cristo de tal forma que, de tanta proximidade com Ele, o santo ganha as feições do Senhor, galgando cotidianamente uma vida de perfeição que ruma para o “perder-se” no Divinal Amigo. Ora, mergulhando nesta simplificada denominação, chegamos a pensar que o mundo hodierno carece de santos. Sim, urge o aparecimento de pessoas corajosas que, despojando-se de si mesmas, trilham, asceticamente, para uma vida cada vez mais conformada a de Jesus. A santidade não vem como num toque de mágica, mas acontece cotidianamente, dentro da humanidade do indivíduo que a abraça, através da superação das limitações, a partir das pequenas dificuldades.
Pelo Batismo, todo cristão é santo. Por isso que, no Credo, a Igreja afirma: “Creio na comunhão dos santos”. Comunhão, do latim communio, “união com”, assim, somos santos (da Igreja peregrina) unidos com os santos (da Igreja triunfante e da Igreja padecente); os santos pelo Batismo, os quais ainda estão no convívio com as coisas perecíveis do mundo que intercambiam com os santos que já consumaram a sua via e hoje gozam da Perpétua Glória do Coração de Deus ou se purificam no Purgatório para alcançar o prêmio eterno que lhes foi resguardo pelo Senhor; formamos uma única família: a do Corpo Místico de Cristo, embora este esteja inserido em uma dupla dimensão: temporalidade e eternidade.
É interessante que falemos sobre a intercessão dos santos. Tal como rezamos uns pelos outros, diante de Deus Nosso Senhor, os que já adentraram na amizade com Deus (aqueles que estão no Céu) ou mesmo os que se depuram no Purgatório rezam por nós, valendo-nos com a sua intercessão. A Lumen Gentium afirmará a este respeito: “Recebidos na pátria celeste e presentes diante do Senhor (cf. 2Cor 5,8), por Cristo, com Cristo e em Cristo, não deixam de interceder na terra por nós junto do Pai, mostrando os méritos que alcançaram na terra pelo único Mediador de Deus e dos homens, Jesus Cristo. […] Por conseguinte, por sua fraterna solicitude nossa fraqueza é grandemente auxiliada” (LG 49). Como as nossas preces e rogos chegam a eles? Deus, no esplendor de sua luz divina em que os santos estão envolvidos, mostra-lhes os pedidos e os louvores que lhes endereçamos. Pela via dos santos, as nossas preces e louvores se tornam menos indignas diante de Deus, mais possível de serem atendidas por serem mais aptas (cf. Ap 8,3), daí Santo Tomás de Aquino afirmar: Os santos “têm maior crédito frente a Deus após a morte do que em vida (pois estão mais próximos de Deus; nesta vida ‘peregrinamur longe a Domino’). Ora, já poderíamos pedir sua intercessão quando ainda viviam, segundo o exemplo do apóstolo São Paulo, que escrevia: ‘Eu vos exorto, irmãos, por Nosso Senhor Jesus Cristo e pela caridade do Espírito Santo, a que me ajudeis por vossas preces junto a Deus’ (Rm 15,30). Com maior razão devemos então pedir aos santos do céu o auxilio de suas preces” (S. Th., Suppl., p 72,a 2) . Em resumo, a comunhão dos Santos estende-se a terra, ao Céu e ao Purgatório, porque a caridade une as três igrejas - triunfante, padecente e militante - e os santos rogam a Deus por nós e pelas almas do Purgatório, enquanto que nós lhes tributamos honra e glória já que alcançaram a Bem-Aventurança eterna, ao tempo em que podemos aliviar as almas em via de purificação, aplicando, em sufrágio delas, Missas, esmolas, indulgências e outras boas obras.
Dissemos que os santos são amigos de Deus. Se somos santos pela graça batismal, logo, somos invitados a estreitar os laços com o Senhor. E como faremos esta proeza? O evangelho das bem-aventuranças (cf. Mt 5,1-12; Lc 6,20-23) responde-nos: através do alcance da felicidade. No entanto, não a entendamos como uma pseudo-felicidade, tal como o mundo apregoa com o oferecimento de prazeres, de bens e outras realidades que aumentam – ainda mais – o vazio no coração do homem, mas a atinjamos como vida realizada, plenificada em Deus já na angústia dos dias desta vida mortal, enquanto somos “travestidos em homem do nosso século”, como afirmara Jacques Maritain. Jesus, na perícope de Mateus acerca das bem-aventuranças, por nove vezes, utiliza a palavra “Bem-aventurados”, “Felizes”, por esta quantidade, entendemos o ‘Sermão das Bem-aventuranças’ como um projeto de realização pessoal e de Deus na vida do fiel. O homem sabe que, somente contando com os seus esforços, nunca conseguirá uma satisfação plena; sabe ainda que Deus não viola a liberdade do ser humano. Destarte, indubitavelmente somos cônscios de que a santidade é proporcionada pela Graça, mas deve haver a contribuição pessoal do cristão que a busca. Por isso, Jesus, a cada bem-aventurança, apresenta uma atitude ativa do fiel e, seguidamente, uma ação receptiva emanada do próprio Deus (“Bem-aventurados... porque...”).
É salutar termos diante dos olhos todo o ambiente físico em que acontece esta prédica do Senhor. Mateus situa Jesus em um monte. Subir, na Sagrada Escritura designa aproximar-se do próprio Deus. Percebamos, caríssimos, que as grandes manifestações de Deus acontecem em elevações geológicas. Notemos que Jesus não vai para lá sozinho, os discípulos se aproximam, afastam-se da baixeza da terra. Assim, sabemos que o Mestre quer atrair os seus para o Pai, de quem procede a santidade (Ele que, no superlativo, é o Santo dos Santos). O termo “santo”, que em hebraico é traduzido como kadosh, significa separado, apartado da transitoriedade. Quem, por essência, tem este caráter senão Deus? Através de Jesus, da sua encarnação como homem, obtemos, pelo Batismo, este afastamento, tornamo-nos “concidadãos do céu” (cf. Ef 2, 19).
Jesus, no monte, senta. Sentar-se, na linguagem litúrgica e até mesmo pedagógica é típico de quem ensina, é comum ao Mestre. A ação de instruir é de direito a quem tem autoridade sobre o aprendizando (discípulo) e sobre o que é ensinado. Jesus senta-se para falar da santidade de Deus e dos homens porque, como Verdadeiro Homem e Verdadeiro Deus, é santo. Jesus, sentado no monte, fala aos seus discípulos. Aos discípulos e não às multidões. Embora o chamado à santidade seja uma vocação universal, Jesus é consciente de que poucos – apenas os sensíveis à Boa Nova do Reino – são capazes de absorvê-la, pois a dinâmica das Bem-aventuranças soa aos ouvidos do mundo como irracionalidade. São João Crisóstomo afirma: “Nisto de pregar sobre um monte e na solidão, e não na cidade nem no fórum, nos ensinou a não fazer nada por ostentação e a separar-nos do tumulto, principalmente quando convém dialogar sobre coisas importantes” (Homiliae in Matthaeum, hom. 15,1). Pelo dito de João Crisóstomo, intuímos que a santidade não é uma realidade de vida que causa estardalhaços, mas que se prima em uma silenciosa violência contra os nossos quereres, principalmente quando não estão de acordo com a vontade divina, pois “o Reino dos Céus é para os violentos” (Mt 11, 12), o que é incompreensível e frustrante para o mundo.
Falávamos que a santidade é uma via de perfeição, um caminho para configurar-se a Cristo Deus. E que via é esta? Ela acontece, como dissemos, no cotidiano, através de pequenas atitudes silenciosas e profundas: pobreza em espírito; fortaleza nas aflições; mansidão; anseio e promoção da justiça; coração humilde e misericordioso; pureza de vida e costumes; pacificidade; enfim, alegria diante dos sofrimentos, injúrias, calúnias causadas pelas perseguições infligidas aos que seguem o Cristo.
O caminho para ser bem-aventurado (santo) não é fácil. E, sabendo das nossas condições, o próprio Deus nos cumula com suas recompensas à medida que lhe oferecemos a nossa disponibilidade para o projeto de santidade. Prova disto, temos as nove recompensas trazidas pelas Bem-Aventuranças. Ao escalarmos as escarpadas montanhas de uma vida pautada pela santidade, restar-nos-á a magna recompensa: o céu. Se formos perseverantes nesta boa ventura, diremos tal como São Paulo: “Combati o bom combate, terminei a minha carreira, guardei a fé” (2Tm 4,7), pois alcançaremos a imortalidade pela salvação.
São João, na sua celeste visão, enche-nos da certeza de que os santos contemplam e adoram Deus face a face. No fim dos tempos, os que foram marcados na fronte com a insígnia do Cordeiro serão levados para o festim do céu. O autor sagrado oferece o número dos que foram marcados: cento e quarenta e quatro mil de todas as tribos de Israel. Este número é prenhe de significado, pois é o quadrado de doze (algarismo que designa o sagrado na numerologia bíblica) multiplicado por mil. Logo após oferecer-nos esta quantia, São João traduz qual o desígnio do número doze vezes doze vezes mil: “uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos e línguas, e que ninguém podia contar” (Ap 7, 9). Primeiramente, João diz que os cento e quarenta e quatro mil eram da casa de Israel; depois, que são de todos os recantos do mundo. O que ele realmente quer afirmar é que esta multidão pertence à Igreja, a Nova Israel, que congrega em si os filhos de Deus, a legião dos santos espalhada por todo o orbe. Estes eleitos estavam revestidos na veste da pureza, empunhavam a palma da vitória sobre o poder da morte, a palma do martírio, e estavam de pé contemplando algo que nunca ninguém era capaz de ver: o próprio Deus.
Esses felizardos não estavam sós, compartilham os céus e a visão do Cordeiro com os anjos, ao tempo em que, com eles, misturavam as vozes em louvor, tal como fazemos na Eucaristia quando invocamos a santidade de Deus (Sanctus, Sanctus, Sanctus...), nosso louvor mistura-se ao dos entoados pela corte celeste. Meus caros, esses felizardos seremos nós se formos perseverantes. Imaginemos, quando chegarmos ao céu e perguntarem a nosso respeito: “De onde vieram esses?” E quando disserem de nós: “Esses vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas vestes no sangue do Cordeiro” (v. 14). Em outras palavras, dirão: - Esses souberam sofrer com valentia as agruras da vida, guardaram a fé; não sujaram as mãos e coração nas obras do mal, por este motivo merecem entrar e estabelecer morada no coração de Deus (cf. Sl 23, 4).
Se já nos é um grande presente de amor a adoção divina, esta adoção que nos faz filhos de Deus, o que poderíamos dizer acerca da manifestação de Deus em nós, já nesta vida, quando o transparecemos, até o momento da manifestação perenal, quando seremos um nele?
Que sigamos os conselhos de Paulo: “A noite vai adiantada, e o dia vem chegando. Despojemo-nos das obras das trevas e vistamo-nos das armas da luz” (Rm 13,12). Que nos travistamos de Cristo, com as vestes da santidade e tudo o que, em si, ela embute. Que o exemplo daqueles que já gozam da feliz eternidade nos inspire a força e a coragem no rompimento do pecado, a fim de que, auxiliados por sua intercessão, cheguemos à nossa meta: o Céu, a Vida em Deus, onde nos “perderemos de amor Nele”.