A liturgia do domingo
hodierno nos convida à jubilosa celebração da Solenidade dos Santos Apóstolos
Pedro e Paulo. Reunida em torno do túmulo destas duas grandes colunas da Igreja
nós veneramos e fazemos memória dos tempos iniciais da nossa fé cristã, quando
a Igreja fora fecundada pelo testemunho e pelo sangue daqueles chamados por
Cristo para uma intimidade maior com Ele. Celebrar a Solenidade de Pedro e
Paulo é conjugar missão e unidade, fé e vida, evangelização e doutrina. A
Igreja, alicerçada nos apóstolos, é continuadora da missão de Cristo e transmissora
da sua mensagem de salvação e de esperança. Somos, portanto, estimulados a
fazer da nossa vida um kerigma,
anunciando Aquele que é a Boa Nova do Pai e tornando-nos espelhos do evangelho.
Esta novidade nos
impulsiona e nos retira do comodismo da nossa existência. Jesus suscita no
homem a verdadeira esperança, suscita-se a Si mesmo, Ele: a esperança. Por isso
as leituras fazem-nos perceber nos dois apóstolos os sentimentos de amor e
esperança que nutriram por Cristo a tal ponto que verteram o seu sangue por
Ele. Não é uma expectativa vazia aquela que os sustentava. Para Pedro
sobretudo, que convivera com Jesus, aquela experiência lhe havia dado um rumo
existencial diferente. Sabia ele que o convite daquele desconhecido – “Vem e
segue-me” (Mt 4,19) – não era qualquer convite, mas possuía algo diverso em si,
na força arrasadora daquelas palavras que eram capazes de mobilizar mesmo um
coração difícil como o seu. Embora os três evangelhos sinóticos não se
encontrem em detalhes precisos na chamada de Pedro, mas o plano de fundo
permanece sempre o mesmo: seguir o Salvador, morrer por Ele e, com Ele,
participar da glória. Os dois apóstolos deram este passo da mesma maneira, na
mesma medida e de formas diferentes.
Ainda sobre Pedro, é
curioso que o “vem e segue-me” no Evangelho de João esteja inserido
posteriormente a ressurreição (Jo 21,22) e não antes, como nos sinóticos. De
fato, ali se encontra não apenas uma redescoberta da sua identidade de Cefas, mas também o imperioso mandato de
guiar a Igreja e apascentar as ovelhas antes que Jesus ascendesse aos céus. É
certo que, ainda que não fosse proposital, quisera João inserir esta passagem
após aquela tríplice pergunta: “Simão, filho de João, tu me amas mais do que
estes? (Jo 21,15)”. Não bastava que se respondesse a Jesus com um amor philia, mas com o amor ágape, que era a resposta por Ele
necessitada para confiar-lhe a missão de conduzir a grei. Aliás, nisto me
parece consistir um aspecto essencial da fé: o cristão não permanece na
superfície, mas é chamado sempre a dar “algo mais” a Deus: a própria vida, a si
por inteiro. O “segue-me” surge, então, como um consentimento último para este
ofício. Para onde o Senhor conduziria Pedro naquele instante? Nunca saberemos!
Mas sabemos que mais tarde o Senhor o levaria à Cidade Eterna onde ali deveria
testemunhar de forma audaz e destemida o amor de Deus, tendo como paga por
tamanha lealdade a crucifixão.
Também aos pastores da
Igreja em nosso tempo de crises espirituais, existenciais, psicológicas e políticas
continua a ecoar o convite salvífico: “Vem e segue-me!”. É preciso que
redescubramos o sentido de uma existência marcada pela aceitação incondicional
do chamado, ainda que com as exigentes demandas impostas pelo mesmo e que
parecem tornar-se sempre mais desafiadoras. Quem segue a Cristo deve conhecê-Lo
primeiramente, amá-Lo e testemunhá-Lo. Diferente desta relação corremos o grave
risco de cair num ativismo ou ainda numa fé que desconhece os motivos que nos
levam a crer, vazia e, portanto, inconsistente.
“Segue-me!” Isto o diz
Cristo não somente aos pastores mas a todos os homens que, de boa vontade,
desejam segui-Lo. Quantos são os que ouvindo ao chamado de Cristo deixam tudo
para abraçar a sua causa? Estes homens que muitas vezes tem apenas a própria
esperança e a fé para sustenta-los, mas que diante do mundo não possuem nenhum
bem material. Como não pensarmos nesta hora nos inúmeros santos, papas, bispos
e sacerdotes que possuíram e possuem para si tão somente a expectativa de
ganharem a “coroa da justiça” (2 Tm
4,8). De fato, seguir ao Senhor requer de nós uma disposição cotidiana,
remediando nossas vontades ao seu querer e suportando com paciência a
tribulação. Somente assim os pastores poderão responder como Pedro: “Senhor, tu
sabes que te amo!” (Jo 21,15). O amor
comporta em si também os sinais de sofrimento, e isto devem saber fazer os
pastores: sofrer em Deus e por Deus; estar dispostos a tudo, mesmo
às baixezas da humilhação para que Deus seja glorificado.
Paulo, por sua vez, é
vencido pela força do amor, como celebramos todos os anos na festa da sua
conversão. É este o apelo que urge do nosso coração para o mundo, mas que
também marca as páginas paulinas: deixemo-nos vencer pelo amor! Deixemo-nos ser
vencidos! A segunda carta a Timóteo, já escrita pelo apóstolo na iminência da
sua morte, provoca-nos, instiga-nos, inquieta o nosso coração para uma abertura
sincera ao querer de Deus. Ele agora confia tudo ao Senhor, pelo qual lutara
desde a sua conversão. Aquele que se ofereceu em Sacrifício pela salvação dos
homens recebe agora o sacrifício de Paulo e com ele compartilha a sua glória. O
convite reforçado do anúncio insistente da palavra, alguns versículos precedentes,
junta-se agora quase que a um testamento antes da sua partida: “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças, ele fez
com que a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as
nações; e eu fui libertado da boca do leão” (2Tm 4,17).
O
Senhor sustenta a Paulo porque Paulo sustentara o Senhor. Em princípio pode-nos
parecer um tanto equivocada ou assustadora esta afirmação, mas devo
contextualizá-la. No capítulo nove dos Atos dos Apóstolos, Saulo, segundo nos
narra Lucas, “só respirava ameaças e morte” contra os cristãos (v.1). Durante o
caminho para Damasco, a fim de prender os cristãos, é interpelado pela voz do
próprio Jesus: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4). Mas perseguia Saulo a Igreja, não a Cristo. Contudo, perseguindo
Cristo perseguia também a Igreja. E aqui vemos que Cristo e a Igreja são uma só
coisa, como nos recordará posteriormente em seu hino cristológico, na carta aos
Colossenses: “Ele é a Cabeça da Igreja que é o seu Corpo” (1,18).
Na catolicidade da Igreja o Senhor
manifesta o dom da unidade. Hoje é também para nós este dia! No dia em que
somos convidados a rezar pelo Papa peçamos que o Senhor nos ajude a
descobrirmos o dom da unidade. Ele que nunca abandonou a sua Igreja tampouco o
fará agora, em tempos de tamanhos desafios e de tantas dúvidas.
“Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). O reconhecimento da
identidade cristã passa essencialmente pelo reconhecimento da identidade de
Cristo. O cristão, chamado a ser alter
Christus, deve reconhecer-se como aquele que leva em seu próprio corpo os
sinais de Jesus (Gl 6,17). Levar estes
sinais em si é perceber a sacralidade da própria vida e do próprio corpo diante
de Deus. Chamados a dar testemunho da verdade, os homens perderam-se no abismo
das próprias concepções e nas definições variadas para realidades não variáveis.
Tornaram-se seus próprios algozes e depreciaram sua própria natureza.
Recordo-me das palavras desafiadoras da carta petrina: "Purificai
as vossas almas com a obediência à verdade" (cf. 1Pd 1, 22). Somente a verdade purifica o homem! A mentira, ao
contrário, o polui. A verdade conjuga-se sempre com a salvação e com o amor.
Estas três dimensões tornam-se inseparáveis e devem ser buscadas
concomitantemente.
Que
nesta Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo os sinais de Cristo
impressos em nosso corpo e em nossa alma possam manifestar-se como compromisso
com a verdade e prenúncio da salvação. Reafirmemos, a exemplo destas duas
colunas da fé, a nossa disponibilidade ao evangelho e o destemor de darmos o
nosso próprio sangue pela causa do Reino de Deus.
Ian Farias de Carvalho
Nenhum comentário:
Postar um comentário