domingo, 28 de junho de 2015

O sangue dos Apóstolos fecunda a vida da Igreja (Solenidade de São Pedro e São Paulo)

A liturgia do domingo hodierno nos convida à jubilosa celebração da Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo. Reunida em torno do túmulo destas duas grandes colunas da Igreja nós veneramos e fazemos memória dos tempos iniciais da nossa fé cristã, quando a Igreja fora fecundada pelo testemunho e pelo sangue daqueles chamados por Cristo para uma intimidade maior com Ele. Celebrar a Solenidade de Pedro e Paulo é conjugar missão e unidade, fé e vida, evangelização e doutrina. A Igreja, alicerçada nos apóstolos, é continuadora da missão de Cristo e transmissora da sua mensagem de salvação e de esperança. Somos, portanto, estimulados a fazer da nossa vida um kerigma, anunciando Aquele que é a Boa Nova do Pai e tornando-nos espelhos do evangelho.

Esta novidade nos impulsiona e nos retira do comodismo da nossa existência. Jesus suscita no homem a verdadeira esperança, suscita-se a Si mesmo, Ele: a esperança. Por isso as leituras fazem-nos perceber nos dois apóstolos os sentimentos de amor e esperança que nutriram por Cristo a tal ponto que verteram o seu sangue por Ele. Não é uma expectativa vazia aquela que os sustentava. Para Pedro sobretudo, que convivera com Jesus, aquela experiência lhe havia dado um rumo existencial diferente. Sabia ele que o convite daquele desconhecido – “Vem e segue-me” (Mt 4,19) – não era qualquer convite, mas possuía algo diverso em si, na força arrasadora daquelas palavras que eram capazes de mobilizar mesmo um coração difícil como o seu. Embora os três evangelhos sinóticos não se encontrem em detalhes precisos na chamada de Pedro, mas o plano de fundo permanece sempre o mesmo: seguir o Salvador, morrer por Ele e, com Ele, participar da glória. Os dois apóstolos deram este passo da mesma maneira, na mesma medida e de formas diferentes.

Ainda sobre Pedro, é curioso que o “vem e segue-me” no Evangelho de João esteja inserido posteriormente a ressurreição (Jo 21,22) e não antes, como nos sinóticos. De fato, ali se encontra não apenas uma redescoberta da sua identidade de Cefas, mas também o imperioso mandato de guiar a Igreja e apascentar as ovelhas antes que Jesus ascendesse aos céus. É certo que, ainda que não fosse proposital, quisera João inserir esta passagem após aquela tríplice pergunta: “Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes? (Jo 21,15)”. Não bastava que se respondesse a Jesus com um amor philia, mas com o amor ágape, que era a resposta por Ele necessitada para confiar-lhe a missão de conduzir a grei. Aliás, nisto me parece consistir um aspecto essencial da fé: o cristão não permanece na superfície, mas é chamado sempre a dar “algo mais” a Deus: a própria vida, a si por inteiro. O “segue-me” surge, então, como um consentimento último para este ofício. Para onde o Senhor conduziria Pedro naquele instante? Nunca saberemos! Mas sabemos que mais tarde o Senhor o levaria à Cidade Eterna onde ali deveria testemunhar de forma audaz e destemida o amor de Deus, tendo como paga por tamanha lealdade a crucifixão.

Também aos pastores da Igreja em nosso tempo de crises espirituais, existenciais, psicológicas e políticas continua a ecoar o convite salvífico: “Vem e segue-me!”. É preciso que redescubramos o sentido de uma existência marcada pela aceitação incondicional do chamado, ainda que com as exigentes demandas impostas pelo mesmo e que parecem tornar-se sempre mais desafiadoras. Quem segue a Cristo deve conhecê-Lo primeiramente, amá-Lo e testemunhá-Lo. Diferente desta relação corremos o grave risco de cair num ativismo ou ainda numa fé que desconhece os motivos que nos levam a crer, vazia e, portanto, inconsistente.

“Segue-me!” Isto o diz Cristo não somente aos pastores mas a todos os homens que, de boa vontade, desejam segui-Lo. Quantos são os que ouvindo ao chamado de Cristo deixam tudo para abraçar a sua causa? Estes homens que muitas vezes tem apenas a própria esperança e a fé para sustenta-los, mas que diante do mundo não possuem nenhum bem material. Como não pensarmos nesta hora nos inúmeros santos, papas, bispos e sacerdotes que possuíram e possuem para si tão somente a expectativa de ganharem a “coroa da justiça” (2 Tm 4,8). De fato, seguir ao Senhor requer de nós uma disposição cotidiana, remediando nossas vontades ao seu querer e suportando com paciência a tribulação. Somente assim os pastores poderão responder como Pedro: “Senhor, tu sabes que te amo!” (Jo 21,15). O amor comporta em si também os sinais de sofrimento, e isto devem saber fazer os pastores: sofrer em Deus e por Deus; estar dispostos a tudo, mesmo às baixezas da humilhação para que Deus seja glorificado.

Paulo, por sua vez, é vencido pela força do amor, como celebramos todos os anos na festa da sua conversão. É este o apelo que urge do nosso coração para o mundo, mas que também marca as páginas paulinas: deixemo-nos vencer pelo amor! Deixemo-nos ser vencidos! A segunda carta a Timóteo, já escrita pelo apóstolo na iminência da sua morte, provoca-nos, instiga-nos, inquieta o nosso coração para uma abertura sincera ao querer de Deus. Ele agora confia tudo ao Senhor, pelo qual lutara desde a sua conversão. Aquele que se ofereceu em Sacrifício pela salvação dos homens recebe agora o sacrifício de Paulo e com ele compartilha a sua glória. O convite reforçado do anúncio insistente da palavra, alguns versículos precedentes, junta-se agora quase que a um testamento antes da sua partida: “O Senhor esteve a meu lado e me deu forças, ele fez com que a mensagem fosse anunciada por mim integralmente, e ouvida por todas as nações; e eu fui libertado da boca do leão” (2Tm 4,17).

O Senhor sustenta a Paulo porque Paulo sustentara o Senhor. Em princípio pode-nos parecer um tanto equivocada ou assustadora esta afirmação, mas devo contextualizá-la. No capítulo nove dos Atos dos Apóstolos, Saulo, segundo nos narra Lucas, “só respirava ameaças e morte” contra os cristãos (v.1). Durante o caminho para Damasco, a fim de prender os cristãos, é interpelado pela voz do próprio Jesus: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9,4). Mas perseguia Saulo a Igreja, não a Cristo. Contudo, perseguindo Cristo perseguia também a Igreja. E aqui vemos que Cristo e a Igreja são uma só coisa, como nos recordará posteriormente em seu hino cristológico, na carta aos Colossenses: “Ele é a Cabeça da Igreja que é o seu Corpo” (1,18).

Na catolicidade da Igreja o Senhor manifesta o dom da unidade. Hoje é também para nós este dia! No dia em que somos convidados a rezar pelo Papa peçamos que o Senhor nos ajude a descobrirmos o dom da unidade. Ele que nunca abandonou a sua Igreja tampouco o fará agora, em tempos de tamanhos desafios e de tantas dúvidas.

Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16). O reconhecimento da identidade cristã passa essencialmente pelo reconhecimento da identidade de Cristo. O cristão, chamado a ser alter Christus, deve reconhecer-se como aquele que leva em seu próprio corpo os sinais de Jesus (Gl 6,17). Levar estes sinais em si é perceber a sacralidade da própria vida e do próprio corpo diante de Deus. Chamados a dar testemunho da verdade, os homens perderam-se no abismo das próprias concepções e nas definições variadas para realidades não variáveis. Tornaram-se seus próprios algozes e depreciaram sua própria natureza. Recordo-me das palavras desafiadoras da carta petrina: "Purificai as vossas almas com a obediência à verdade" (cf. 1Pd 1, 22). Somente a verdade purifica o homem! A mentira, ao contrário, o polui. A verdade conjuga-se sempre com a salvação e com o amor. Estas três dimensões tornam-se inseparáveis e devem ser buscadas concomitantemente.

Que nesta Solenidade dos Santos Apóstolos Pedro e Paulo os sinais de Cristo impressos em nosso corpo e em nossa alma possam manifestar-se como compromisso com a verdade e prenúncio da salvação. Reafirmemos, a exemplo destas duas colunas da fé, a nossa disponibilidade ao evangelho e o destemor de darmos o nosso próprio sangue pela causa do Reino de Deus.

Ian Farias de Carvalho


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